A única raça canina registada com olhos triangulares. Só eu mesmo.
quarta-feira, 30 de junho de 2010
Esta semana, lá no meu trabalho (quando a realidade supera a ficção)
Foto: DDiArte
À hora marcada, aparece uma senhora na central dando entrada de um papel.
O papel havia-o ela recebido via correio convocando-a para comparecer naquele dia, sob pena de ser condenada em multa.
No verso escrevera duas pequenas e esforçadas frases:
"Srª Drª, peço que não me multe porque sou pobre.
Hoje não posso vir porque estou a dencansar."
terça-feira, 29 de junho de 2010
Tiques burgueses
O quê: socialismo / comunismo-caviar
Local: bom restaurante
O quê: perguntar se o bacalhau está bom ou se está salgado
Local: boa loja
O quê: perguntar, depois de estar horas a ocupar a funcionária, se a peça escolhida está perfeitinha
Local: qualquer
O quê: gente que não é nada e que escreve a autobiografia
Local: clube solidário internacional
O quê: caridade organizada
Local: campo
O quê: quinta brasonada comprada em hasta pública
Local: qualquer
O quê: referir-se ao próprio carro pela marca/modelo como em: “Queres que guarde essa caixa no Bentley?”
Pretérito Mais-Que-Imperfeito
Não é de futuro que se trata quando as pessoas decidem relacionar-se. Na verdade, labora-se na ânsia de armazenar uma história comum.
A inabilidade de conexão com um ou outro é fruto da falta de uma afeição xifópaga a algo em comum, que é sempre passado – o que se foi, o que se fez, do que sempre se gostou.
Por isso, as amizades antigas são adoradas como sagradas. Pensa-se sempre que nunca serão conseguidas novas relações com o mesmo conforto - ainda que essas amizades já tenham desbotado à custa da falta de afinidade que deriva da falta de convivência. E mesmo que esses amigos antigos, siameses no pretérito, se tenham metamorfoseado em estúpidos, ou tenham simplesmente desvoluído: ainda relativamente a esses é mantido um respeito reverencial, em nome da memória partilhada que pode ser de brincadeiras de infância ou bebedeiras de juventude.
O apego torna difícil deitar fora aquilo que já não tem serventia. Mas é imperativo fazer a limpeza.
segunda-feira, 28 de junho de 2010
sábado, 26 de junho de 2010
O rapaz do surf
Fez uma reentrada estrondosa na minha vida em finais de 1998. E, confirmando uma tendência do destino que ainda se mantém actual, como todas as outras bizarrias que me acontecem, tal aparição teve qualquer coisa a ver com a dona doutora Estrelita.
A última vez que o tinha visto, ele era um desses bad boys que passavam o verão na praia da minha adolescência e eu uma pré-adolescente com precoces tiques nerd. O que vale por dizer que ele nunca antes tinha dado pela minha existência.
Em 1998, o destino devolveu-mo numa noite da Kapital, para um relacionamento mais instantâneo que as sopas knorr.
A explicação é simples: o rapaz parecia-me miseravelmente giro, cheirava e sabia a mar e, apesar de já ser Outubro, eu estava em estado de negação perante o fim dos dias de verão.
Tivemos uma relação de sucesso durante três meses exactos, com a inestimável vantagem, relativamente a todos os que o antecederam e que o precederam, de nunca me ter chateado. Admito como possível que o facto de ter consciência que estava apenas a prolongar as férias tenha feito parte da receita do sucesso.
Não me lembro do que fazíamos quando não estávamos dentro de casa. E também não consigo imaginar uma única conversa possível entre mim e o meu namorado surfista que, nas horas vagas, dava aulas de natação aos filhos dos ricos. Tendo em conta que a amnésia não é uma característica normal em mim, desconfio que passámos três meses dentro de portas e que nunca trocámos mais de quatro palavras seguidas. Sei que rapidamente desisti de lhe contar anedotas, porque me afligia ter que lhe explicar a graça, esperar três minutos e finalmente sacar-lhe uma gargalhada genuína.
Dele, conservo a memória de dois episódios distintos, um no início e o outro no fim da relação.
O primeiro, foi num dia em que, depois da quinta imperial, esqueci-me das limitações metafísicas do meu surfista e decidi perguntar-lhe porque raio achava ele que estava apaixonado por mim.
Depois de muito pensar, coçando os lindos caracóis louros, adiantou-me três profundas razões:
- Tens uma boca lindíssima, ris-te muito e estás sempre bem-disposta.
Naquela altura, eu ainda me levava demasiado a sério para não ficar desconcertada com uma resposta que envolvendo o tema “EU”, não contivesse alusões a uma única das minhas incontáveis características profundas.
Pelo sim, pelo não, decidi imediatamente que jamais voltaria a repetir a pergunta a um homem e jamais me submeteria a idêntico escrutínio.
Demorei muitos anos a perceber que, em matéria de razões para amar, aquela foi a resposta mais sincera e genial que ouvi em toda a minha vida.
O segundo episódio que retive na memória coincidiu com o último.
Na passagem do ano, fui atrás dele para o Algarve representar o meu papel de namorada do surfista. O cenário condicente era uma casa manhosa e uns amigos de tal forma indescritíveis que, na tarde em que desisti de os demover do projecto “passeio na marina de Vilamoura”, fui obrigada a seguir uns metros à frente, para fazer de conta que não os conhecia no caso de encontrar alguém das minhas relações.
Nesse final de ano, naquela casa manhosa, nem sequer faltava um cão. Era um pastor alemão preto, com quem desenvolvi uma empática relação de solidariedade, já que, por sermos os únicos dois seres vivos que se recusavam a fumar ganzas, passámos uma boa parte das noites com as respectivas cabeça e língua de fora da varanda.
Quando, no primeiro dia do ano, saí da cama e entrei na sala caótica, constatei que o cão, invejoso da atenção que eu dispensava à literatura, tinha comido metade do meu livro preferido do Raymond Carver.
Até hoje, não sei que raio de dique se partiu dentro de mim diante da imagem do meu livro meio comido, abandonado numa sala cheia de surfistas com falta de banho, léxico e treino mental.
Sei que me rendi ao que terá sido, muito provavelmente, o maior pranto público da minha vida. Foram dez minutos de lágrimas, choro dobrado, guinchos histéricos e muito ranho espalhado por todo o lado.
O cão foi chamar o meu surfista que, surfando a onda ranhosa, abraçou-me de encontro a uma t-shirt cor-de-rosa e teve o instante mais inteligente de toda a sua vida. Enquanto eu acentuava o choro diante da antevisão de um “não chores mais que eu compro-te outro livro” ou “se ele tivesse feito isto ao haxixe eu também chorava assim”, o meu surfista abraçou-me com força e atirou-me com um “às vezes ser muito inteligente não é uma coisa boa”.
Nessa noite, quando parou o jipe carregado de pranchas à minha porta e se despediu de mim com o seu característico sabor a mar, embora não o soubesse, era um homem profundamente respeitado.
Foi a última vez que o vi.
sexta-feira, 25 de junho de 2010
Just fake it!
A produção de melanina é feita pelos melanócitos ou melanoblastos, células da camada basal da epiderme que mantêm contacto com os queratinócitos por intermédio de projecções citoplasmáticas. São esses prolongamentos que permitem que os pigmentos melânicos produzidos se depositem nos queratinócitos.
A síntese de melanina é teoricamente explicada pela presença de uma enzima - tirosinase - concentrada no aparelho de Golgi dos melanócitos. O pigmento é originado a partir da polimerização do aminoácido tirosina por intermédio da acção da tirosinase, a qual passa de aminoácido incolor a um pigmento castanho. A tirosina polimerizada deposita-se em vesículas denominadas melanossomas, as quais se deslocam pelos prolongamentos citoplasmáticos dos melanócitos, sendo transferidos para os queratinócitos através de um processo de secreção, denominado secreção citócrina (de célula para célula). Os grânulos de melanina permanecem no citoplasma dos queratinócitos.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
terça-feira, 22 de junho de 2010
Atlântico
segunda-feira, 21 de junho de 2010
Amigo:
Os dias continuam mais ou menos tão chatos como eram quando te foste embora.
Tal como tu, tenho que esperar horas no restaurante quando cometo a insensatez de ir jantar no momento em que joga a selecção do Brasil. Imagino que não seja a isso que se queriam referir com aquela conversa do futebol como factor de aproximação dos povos...
Se não fosses uma criatura tão egoísta enviavas-me um poema. Tenho saudades da tua poesia.
P.S. Aproveito para te informar que o Saramago morreu.
P.S.1 Evita andar por aí de ónibus com esse ar de maluco que te caracteriza.
sábado, 19 de junho de 2010
Esta semana, lá no meu trabalho (Quando a realidade supera a ficção)
- O senhor está aqui como testemunha e tem que responder com verdade a tudo quanto lhe for perguntado sob pena de incorrer em responsabilidade criminal. Jura dizer a verdade?
- ãhhh? Quê?
- Tem que jurar dizer a verdade.
- …
- Tem que dizer juro.
- Ya!
- Não é ya. É juro! Tem que dizer juro.
- Porquê?
- Porque na qualidade de testemunha, a lei obriga-o a prestar juramento antes de depor.
- Antes do quê??? E o que é disse sobre não sei quê do crime?
- O senhor percebe português? Está a perceber aquilo que lhe estou a dizer?
- pá, não é preciso estar a ofender…
- (suspiro profundo) Pronto, está bem! Diga juro, vá!
- ya, ya!
- (Dois tons acima daquilo que seria razoável) Olhe, eu vou explicar de-va-ga-ri-nho: Quer sair daqui com um processo-crime?
- Nãaa.
- Então vai-me fazer um favor. No preciso instante em que eu me calar, o senhor diz a palavra juro. Depois senta-se e não volta a abrir a boca até alguém lhe perguntar alguma coisa. Pode ser?
- (quarenta segundos depois, no decurso dos quais Tico e Teco se envolveram numa luta entre a necessidade de cumprir a ordem ou responder à pergunta “pode ser?”)
- Juro! Ya!
Bad Boys
Eu ainda sou do tempo em que havia maus rapazes. Desprezavam as meninas educadas e boazinhas. Gostavam das vadias e de vadiar com elas. Tinham o charme da maldade blasè. Eram giros, os maus rapazes. Gostavam de motas e faziam surf nos meses de verão. Nunca estavam apaixonados mas tinham sempre uma namorada. Que os trocava pelo melhor amigo a partir de meados de Agosto. Tinham más notas, mas isso era uma característica co-natural. Os pais tinham empresas para eles herdarem. E essa altura estava sempre demasiado longe.
Este inverno, os bad boys da minha adolescência voltaram à minha vida, via facebook, como uma alucinação ou uma miragem virtual.
Não percebo o que fizeram no interregno entre a minha, nossa, adolescência e o momento presente. Fico com a sensação que estiveram congelados no mar gelado das nossas praias e os descongelaram ontem. Vítimas de um mau processo de conservação que os deixou impróprios para consumo.
Os maus rapazes da minha vida acordaram sem as empresas dos pais que faliram entretanto. Trocaram o gosto pelas motas por automóveis topo de gama em que só entram porque se vendem nos stands onde trabalham. Ou porque o dono das empresas onde fazem qualquer coisa como recursos humanos, informática ou serviços administrativos, os deixa levar o carro à revisão.
Já não fazem surf, mas ainda vão aos domingos ver o mar. Levam as mulheres com quem se casaram. Aquelas que nunca recuperaram os quilos que ganharam na gravidez. E que continuam a usar as mesmas camisas que compraram nos anos oitenta. Agora já não trocam os maridos a meio de Agosto. Nessa altura, aproveitam as férias dos supermercados e das pastelarias onde trabalham para ir para a T1 da prima na Quarteira. Enchem as crianças com o açúcar das bolas de Berlim e os maridos com a cevada das cervejas.
Os bad boys estão demasiado gordos para se equilibrar numa prancha mas ainda se cumprimentam uns aos outros com sinaléticas de surfista. Não têm nada para dizer e quando se encontram vivem na glória dos engates de há 15 ou 20 anos atrás. Falam de bebedeiras com o orgulho de quem relembra o dia do doutoramento. Vão ao hipermercado com a mesma adrenalina de quem explora a Amazónia.
Não mudaram. Apodreceram.
quinta-feira, 17 de junho de 2010
Tragam-me uma caçadeira!
Tão lindo e tal...
Lindo quando se está na praia a apanhar sol. Ou na varanda de casa a ler um livro de poesia.
Bizarro quando dura o dia inteiro e se está a tentar trabalhar.
Impossível quando o dia inteiro são todos os dias.
quarta-feira, 16 de junho de 2010
Um lugar
Desci aquela rua empedrada há um par de séculos apoiada nos corrimãos verde-garrafa que ardiam ao sol de Lisboa.
segunda-feira, 14 de junho de 2010
Memória
s. f.
Faculdade de reter idéias, sensações, impressões, adquiridas anteriormente.
Efeito da faculdade de lembrar; a própria lembrança.
Recordação que a posteridade guarda.
Dissertação sobre assunto científico, artístico, literário, destinada a ser apresentada ao governo, a uma instituição cultural etc.
Dispositivo dos calculadores eletrônicos, que registra sinais, resultados parciais etc., que são consignados no momento oportuno para fazê-lo intervir no seguimento das operações: discos de memória.
Informática Unidade funcional que pode receber, conservar e restituir dados.
Informática Memória convencional, a que é armazenada segundo os padrões de um programa altamente abrangente.
De memória, sem a ajuda de notas ou livros, só pela lembrança.
Em memória de, em homenagem a alguém que já morreu.
S.f.pl. Obra literária escrita por quem presenciou os acontecimentos que narra, ou neles tomou parte.
Memória principal ou memória RAM, v. RAM.
Memória secundária, meio de armazenamento de dados e instruções não volátil (p. ex., disquetes), usado para que estes se preservem (p. ex., quando o computador é desligado).
In Dicionário web
Nessa grande, longa, imensa noite escura que fizeste abater sobre nós, há um luar que insiste em banhar-me todas as noites na minha cama:
A memória da tua expressão de Fabergè, enquanto me pintas de vermelho escuro as unhas dos pés.
A noite em que dançaste comigo no salão vazio de um navio ao largo de Istambul.
Uma entremeada cuspida na feira popular de Lisboa.
Dois corpos febris e verdes numa cama de rede de uma varanda de hotel noutro continente.
Os vários retratos que me pintaste.
A tua mão sobre a minha a ensinar-me o traço perfeito de uma saia de bailarina em aguarela.
A madrugada em que corrigiste a minha bailarina para me tentar convencer que tinha sido eu a criá-la.
O final de tarde em que a pressa de me abraçar quase te deixou morrer debaixo de um autocarro.
domingo, 13 de junho de 2010
Feeling Punk
sábado, 12 de junho de 2010
O beijo
Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.
Sophia de Mello Breyner Andresen
sexta-feira, 11 de junho de 2010
quinta-feira, 10 de junho de 2010
Da preordenação para a infelicidade
Há dois grandes grupos de pessoas.
Aqueles que serão sempre infelizes independentemente de tudo de bom que a vida lhes traga.
Os que só conhecem a infelicidade circunstancial, objectivamente justificada e com bilhete de regresso lá para a terra dela.
A história dos homens ensina que os primeiros precisam dos segundos para sobreviver e que os segundos não precisam dos primeiros para rigorosamente nada.
Para a primeira espécie, tenho uma má notícia e três boas.
A má: Não vai passar. A vossa vida vai ser sempre uma profunda agonia miserável.
As boas notícias, à vossa escolha:
Cinco filosofias
Não a componho, não a guardo em gavetas, nem sequer a reciclo. A nostalgia é o anjo negro do inconsciente.
2. Nado todos os finais de dia numa piscina de auto-perdão.
Não acumulo culpas judaico-cristãs nem de qualquer outra espécie. A culpa é um anestésico do erro.
3. Reanimo os fantasmas do passado para que não me atormentem as noites.
Não varro o passado para debaixo do tapete da porta de entrada. Todos os fantasmas são risíveis quando sentados no sofá da casa a beber um gin bombay.
4. Rejeito formas de aprendizagem que passem pelo sofrimento.
Não reconheço à dor capacidades pedagógicas. Competências curriculares adquiridas pelo sofrimento tendem a transformar-nos em piores pessoas. O mal não tem ancas para parir o bem.
5. Assumo-me como o rei Midas da futilidade.
Não há vida mais vã do que aquela que se desperdiça numa caverna cinzenta e feia. O fútil é o quociente emocional da existência humana.
quarta-feira, 9 de junho de 2010
Psicadelismos
segunda-feira, 7 de junho de 2010
Provavelmente, a última 1ª vez
O date que quase apareceu de táxi (inspirado num comentário da Estrelita que não posso linkar porque não sei como é que isso se faz)
Cuca e Estrelita, recém-chegadas à capital, decidiram que estava uma noite demasiado boa para ficar em casa.
Sucede, porém, que Cuca e Estrelita não conheciam ninguém em Lisboa e a ideia de saírem as duas à descoberta das maravilhas da noite Lisboeta, a solo, (ainda) não lhes agradava.
Foi então que Estrelita e Cuca decidiram arranjar um date que, com glamour e sentido de estilo, as viesse buscar a casa e as introduzisse no fantástico mundo da Lisbon by night.
A organizada Estrelita tinha uma agenda com números de telefone de toda a gente que conhecera na vida (e eram muitos, tantos, demais) e depois de um brainstorming de um minuto e meio direccionado para a temática “arranjar um date decente para já, agorinha mesmo, em Lisboa” Estrelita e Cuca resolveram sair para a rua, enfiar-se na cabine telefónica em frente à mítica casa Estrelecuquiana da Roque Gameiro e explorar os números da famosa agenda.
Considerando que era sexta-feira à noite e que a agenda tinha números antigos, criteriosamente pré-seleccionados pela ordem “do mais palhaço para o mais chato”, havia uns quantos que nem os pais sabiam deles, outros que não pagavam a conta do telefone, alguns que entretanto se tinham casado, um que não se lembrava quem era Estrelita embora estivesse disposto a um blind date, tinha era que ser individual…e…dez minutos depois…
Encostadas à porta da cabine telefónica.
Estrelita, a desresponsabilizar-se:
- Pá, eu tenho ideia que ele era divertido, mas já não o vejo há uns anos.
Cuca, a desconfiar:
- Mas e o amigo? Conheces o amigo?
Estrelita, a tentar evitar o ataque de pânico:
- Não, mas se é amigo dele deve ser porreiro! Ele até disse que vinha no carro do amigo!
Cuca, a sentir o ataque de pânico ganhar terreno:
-E o amigo o que faz na vida?
Estrelita, a dividir o olhar entre as unhas e as estrelas:
- er…pois…ele disse-me ao telefone que o amigo era taxista.
Cuca e Estrelita, num momento de paragem cósmica, entreolham-se geladas e partilham uma imagem de horror.
Em coro:
- Ai! Ai! Meu deus! O que fomos fazer! E se eles aparecem de táxi?!!
Estrelita, imbuída de um falso optimismo:
- Não! O meu amigo não me fazia isso!
Cuca, totalmente desvairada, a imaginar a sua inexistente imagem social na capital desfeita em mil, igualmente inexistentes, pedaços de reputação glamourosa.
- Estás a gozar comigo? Qual amigo? Acabaste de dizer que mal conheces o gajo!
Fim de cena:
Sexta-feira, noite maravilhosa, dois minutos antes da hora marcada, no local do encontro Cuca e Estrelita agachadas atrás de um carro, a ver se o date vinha de táxi ou à civil, para decidirem se se esgueiravam cobardemente para casa ou exibiam os orgulhosos saltos de quinze centímetros.
Fim do desmame televisivo
Aristides
- Está lá?
- Sim? Mãe?
- Oh filha, minha filha, onde estás? Estás com o teu irmão?
- Sim mãe, viemos à boleia e estamos na Suíça…
Era assim. Muitas vezes. Os filhos do Ari e dela. No início dos tristes anos 80.
Ele foi quadro superior do Banco de P e desenvolveu parte da sua carreira nos calores da América do Sul.
Havia problemas: Ciúmes. Doentios. Dela.
Sempre se soube que lhe batia. Metia dó à restante família. Era muito bonita. Olhos verde-esmeralda. Ele: nem por isso. Olhos de peixe morto.
Na Bahia, cismava que ela se dava a outros nos prazeres flamejados pelo calor. Era mentira mas nada lhe tirava a desconfiança da cabeça. Nem dos punhos.
Vieram embora.
Reinstalaram-se
Continuou a surrá-la.
Os filhos, afogados em mau ambiente e boa mesada, deram-se a asneiras.
A môça fez uma vida de quedas e tombos. Três filhos. Três casamentos. Dois divórcios seguiram-se a uma viuvez resultante de atropelamento mortal. À frente da filha deles.
O rapaz deixou-se encontrar morto
Tinham o maior gato que alguma vez vi na vida, do tamanho de uma raposa: o Xana. Vivia no parapeito da janela da casa de jantar. Rosnava e mordia toda a gente. Menos à dona. Só comia pescada fresca. Sobreviveu a duas quedas do segundo andar.
O Ari era das poucas pessoas que irritava a sério o meu avô. Dizia que o Porto era uma aldeia com muitas casas.
O Xana morreu muito velho pouco tempo antes dele, que se finou numa lista de espera de transplante renal.
La Diva
Enquanto colocava o hidratante, muito devagar, lembrou-se daquilo que lhe disseram há uns 15 anos atrás.
Não és bonita, mas tens um quê inexplicável. Por isso és tão atraente.
Com ele nunca teve qualquer relacionamento: nem infantil, nem adolescente, nem adulto. Nem platónico. Nem nada.
Sorriu ligeiramente. Percebeu que enquanto as outras estão a envelhecer está apenas a refinar o seu quê inexplicável.
sábado, 5 de junho de 2010
Um blogue obrigatório
Blogue tão obrigatório que não basta linká-lo ali à direita.
A ler do primeiro ao último post.
Her Kind
haunting the black air, braver at night;
dreaming evil, I have done my hitch
over the plain houses, light by light:
lonely thing, twelve-fingered, out of mind.
A woman like that is not a woman, quite.
I have been her kind.
I have found the warm caves in the woods,
filled them with skillets, carvings, shelves,
closets, silks, innumerable goods;
fixed the suppers for the worms and the elves:
whining, rearranging the disalign.
A woman like that is misunderstood.
I have been her kind.
I have ridden in your cart, driver,
waved my nude arms at villages going by,
learning the last bright routes, survivor
where your flames still bite my thigh
and my ribs crack where your wheels wind.
A woman like that is not ashamed to die.
I have been her kind.
Her Kind, Anne Sexton
sexta-feira, 4 de junho de 2010
Diário de Bordo
Eles estavam os dois sentados a estudar numa desconfortável sala apinhada de gente. Cheirava a respiração, a medo e ao tédio.
Eram quatro da tarde e ele convidou-a para lanchar no café do outro lado da rua. Ela seguiu-o, hesitante e contrariada pela falta de tempo, a olhar para o relógio de plástico num cálculo de dividir por páginas as horas que lhe restavam antes da próxima aula.
Entraram numa tasca com ar sujo e enquanto ela olhava enjoada para os três bolos que constituam a opção disponível, ele mandou vir dois vodkas puros.
E quando ele lhe estendeu um dos copos em silêncio, ela levantou o olhar da vitrina enfeitada por moscas e, pela primeira vez, reparou naquele homem de sotaque cerrado, chegado de um uma ilha a mais de mil quilómetros, que teve a ousadia de presumir que ela bebesse vodkas puros às quatro da tarde, entre um pastel de nata e um livro de direito.
Nos anos que se seguiram, de todas as vezes que lhe perguntavam o que raio via ela numa pessoa tão obviamente diferente de si própria, haveria sempre de se lembrar do episódio do copo de vodka, ficar sem resposta convencional e atirar as culpas aos ombros de velejador treinado, herdeiro de genes de marinheiros e presidiários.
Sabia que não valia a pena explicar aos outros que se tinha apaixonado por um pirata. Assim, longe do seu navio no meio do Atlântico, ele parecia apenas uma parte daquilo que era: Alguém que não pertencia a nenhum lugar.
Grandes Filósofos
quinta-feira, 3 de junho de 2010
Desmame televisivo
Jogos de Verão
Podemos ter perdoado ao miúdo de 15 anos o facto de não estar a olhar para a porta no preciso instante em que entrámos naquela festa de aniversário onde só fomos para que ele nos visse. Acabamos sempre por não nos perdoar a nós próprios as horas que passámos ao espelho a antecipar a falhada entrada triunfal.
Vão-se coleccionando pequenos e insignificantes instantes de frustração. Com mais lágrimas ou menos ranho consoante a natureza de cada um e a habilidade na escolha do depositário de sentimentos.
Com o tempo e a idade dá-se o salto qualitativo para o amor.
Mas no código cerebral histórico inconsciente de cada adulto fica uma mensagem de alerta. Uma resistência secreta à paixão. Uma espécie de anti-vírus instalado que faz com que a paixão só seja admitida a entrar na sala quando o dono da casa está distraído.
Os adultos têm mais medo da paixão do que do amor. E compreende-se que assim seja.
Do amor sempre colhe uma outra coisa que se guarda numa cave bolorenta ou numa marquise soalheira. Consoante a natureza de cada um e a habilidade na escolha do depositário de sentimentos.
Da paixão nunca ninguém conseguiu retirar nada.
E apesar de entre os dois só a paixão ter cura, é dessa que os adultos mais fogem. Talvez por saberem que tudo o que nada nos deixa, só nos tira alguma coisa.