terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

chuva no molhado

Há, naquilo que já correu mal, um desenganado alívio.
Vestem-se as casas vazias e a sensação é igual à das calças velhas.
O silêncio é um conhecido que nos compreende por inteiro.
Quase consigo ficar feliz por já não ter que ficar à espera da decepção.
Posso dobrá-la e arrumá-la no fundo de uma das gavetas da cómoda.
São pesadas e fazem barulho quando se abrem.
É um alívio. Quase que fico feliz.

...

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Grandes Filósofos

What´s a weekend?

Violet, in Downton Abbey

lição n.º1

May 22, 1948
Dear Ms. Rondeau:
You asked me to explain the meaning of my sentence in The Fountainhead: "To say 'I love you' one must first know how to say the 'I.


"The meaning of that sentence is contained in the whole of The Fountainhead. And it is stated right in the speech on page 400 from which you took the sentence. The meaning of the "I" is an independent, self-sufficient entity that does not exist for the sake of any other person.


A person who exists only for the sake of his loved one is not an independent entity, but a spiritual parasite. The love of a parasite is worth nothing.


The usual (and very vicious) nonsense preached on the subject of love claims that love is self-sacrifice. A man's self is his spirit. If one sacrifices his spirit, who or what is left to feel the love? True love is profoundly selfish, in the noblest meaning of the word — it is an expression of one's highest values. When a person is in love, he seeks his own happiness — and not his sacrifice to the loved one. And the loved one would be a monster if she wanted or expected such sacrifice.


Any person who wants to live for others — for one sweetheart or for the whole of mankind — is a selfless nonentity. An independent "I" is a person who exists for his own sake. Such a person does not make any vicious pretense of self-sacrifice and does not demand it from the person he loves. Which is the only way to be in love and the only form of a self-respecting relationship between two people.




Ayn Rand






terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

o dia esteve ensolarado.

entretanto, dei conta que depois de lhe ter pedido para parar nem que fosse só por um pouco, o mundo já girou 730 vezes. e eu, continuo descompassada.

tenho bilhetes para o boxe.
e negociei o upgrade na cilindrada do carro, como tinhas sugerido.
o resto, digo-te todos os dias desta vida que passei a viver sem ti.


Ficou apenas uma dor de cabeça

A característica que distingue tudo quanto existe é a monotonia. Ingerimos comida a horas predeterminadas porque os planetas nunca se atrasam, partem e chegam a horas predeterminadas. (…) No entanto, a monotonia do mundo é interrompida de vez em quando, esplêndida, radiosamente, pelo livro de um génio, por um cometa, por um crime ou por uma única noite insone. Mas as leis que nos regem, a nossa pulsação, a nossa digestão estão ligadas ao movimento harmonioso das estrelas e toda a tentativa para perturbar esta regularidade é punida, no pior dos casos com a decapitação, no melhor com uma dor de cabeça. Por outro lado, o mundo foi criado com boas intenções e não foi por culpa de ninguém que se tornou enfadonho e que a música das estrelas sugere a alguns de nós as infindáveis repetições de um realejo.


Contos Completos de Vladimir Nabokov I, “La Veneziana”, Teorema.


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Do medo

Conheci uma nova espécie de medo: o medo do desejo pela certeza da incapacidade de resistência à frustração.

Também tenho algum medo daquilo que esta espécie de medo possa dizer sobre mim.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Ficou noite

Abri a janela num quarto às escuras e pendurei-me no parapeito.
Ali ao lado os campos e os montes e as vacas adormecidas e menos de uma dezena de luzes a lembrar-me a existência dos outros. Ali em cima duas nuvens, as estrelas e a lua. Aqui dentro o frio da noite e um leve odor da cameleira que plantaram por baixo da minha janela.

Bem sei que tudo isto são os sinais da vida.
Mas eu hoje preciso da morte lenta dos prédios devolutos e da esterilidade do asfalto e do conforto de uma sarjeta por onde me possa deixar escorrer.
Até um rio.
Qualquer.




uma bala na câmara

não é virtude com que se nasça, nem conceito da razão pura.

é consequência de se ter o céu, o inferno e a terra pelo meio - tudo num cenário dentro do espírito.

partir para não voltar, apesar dos amuletos, das rezas, das promessas. manter os olhos no troféu, mesmo sem o ver. mesmo sem saber se ele vai existir. em todas as investidas, cada golpe como o último e todos com a estamina do primeiro.

o bom perder é tudo menos gostar de perder. é ter lutado sem pensar na derrota, é ter ficado na arena, inconsequentemente, até que o estoque brandido ao sol desceu sobre o pescoço latejante da fervura no sangue.

como sempre, desta vez lutei assim.

sou habituada no vencer mas, acreditem ou não, há tudo de vitória no sabor de uma derrota das minhas.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Tu erras, Ele erra, Vós errais, Eles erram

erro ê
s. m.
s. m.
1. Acto.Ato.Ato de errar.
2. Inexactidão.Inexatidão.Inexatidão.
3. Apartamento, desvio do bom caminho.
4. Engano.
5. Desacerto.
6. incorrecção.incorreção.incorreção.
7. Pecado, ilusão.
erro de caixa: erro de composição tipográfica.
salvo erro: se não houver erro.

in www. Priberam.pt

Acções que tendem a reflectir-se na única pessoa que não conjuga o verbo.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Os santos e o martírio

- um presente?
- nem pensar.
- a sério?
- a sério.
- um postal, ao menos.
- não.
- vá lá, um postal.
- só se for uma carta.
- ?
- ...de alforria.

Seis meses: o balanço

Passei muitas horas ao telemóvel. Fiz milhas e milhas de avião. Aprendi de cor dois aeroportos. Alterei o meu conceito de vento forte. Li como não lia desde antes de os 18 anos. Descobri que gueixa é uma subespécie da vaca. Comprei umas galochas. Reduzi a velocidade. Voltei a ter paciência para sonhar. Introduzi-lhes o conceito de prisão. Passei a dormir com a porta do quarto trancada. Viciei-me em pão pita e bolo lêvedo. Troquei com vantagem uma governanta alemã por uma tia adoptiva. Desisti de pintar. Fiz trilhos pedestres com chapéus urbanos. Alimentei um incontável número de patos. Engoli o pôr-do-sol sobre o mar nas tardes de sábado. E nas outras também. Curei-me do vício das compras. Melhorei as relações institucionais com a polícia. Vi os filmes que me faltava ver. Só consumo produtos lácteos regionais. Percebi que a solidão é orgânica e não geográfica. Entendi-os. Sei quantos bezerros tem o pasto da frente. Desesperei duas vezes. Cantei em plenos pulmões a música deles sem me lembrar que não “sou das ilhas de bruma”.
Já posso voltar para Lisboa?

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Metamorfoses

Havia uma casa minúscula com vista para Monsanto. Uma varanda acanhada com cadeiras desiguais onde se sentavam a beber vinho tinto barato. Copos de vidro fosco também desaparceirados. Como eles. O barulho dos carros lá em baixo. Nos dias de chuva, ela sentada na cadeira de bambu da sala. Descalça. Ele no chão de alcatifa manchado. A ensaiar acordes numa viola adolescente e a olhá-la à espera de aprovação. Ela a tentar mentir-lhe sobre a falta de talento. Ele a abandonar a viola e a rasgar o silêncio com poesia dita com raiva. Uma gargalhada despropositada a proibir a nostalgia do instante. Os lençóis amarelos na cama demasiado grande para dois. Teatro de sombras ao luar com enredos de pulp fiction. Demasiadas pulseiras sobre um peito tão nu. O sono que o levava a ele a deixava a ela presa numa interminável insónia. O elevador que chiava entre o terceiro e o quarto piso onde toda a cidade parecia morar. O contínuo ruído do rádio comprado por ele nos chineses. Mal sintonizado, a impor a irritante intermitência da música ao sono dela para que ele pudesse dormir embalado no caos. De manhã o sol entrava pela janela sem cortinas e magoava-lhes os olhos. Também esse desconforto o divertia. Ela tinha sempre pressa. Já estava ausente quando ele lhe puxava uma madeixa de cabelo e a ficava a enrolar em silêncio. Como se lhe pertencesse. Já tinha partido quando ele lhe prometia ao ouvido que haveriam de ficar sempre juntos. Mas voltava todas as noites para fingir que dormia. Sem saber como dizer-lhe ser incapaz dormir numa vida em que a falta de harmonia geométrica lhe insultasse os sentidos.
Havia uma casa minúscula com vista para Monsanto. Duas crianças deitavam-se numa cama grande com lençóis amarelos. Ele dizia-lhe que se fosse flor seria papoila. E ela imaginava-o a tingir de vermelho um campo de girassóis. Ele dizia-lhe que se fosse animal seria pássaro. E ela pressentia-se a gaiola de encontro à qual as asas dele acabariam por mirrar. Ele dizia-lhe que se fosse homem seria criança. E ela sabia que tinha pressa de crescer.
Uma manhã ele esqueceu-se de lhe prometer que ficariam sempre juntos. À noite, ela lembrou-se que precisava mesmo era de dormir.
Sem grades, ele foi papoila, pássaro e criança numa existência plena de sons e desassossego.
Sem música, ela foi um corpo adormecido, aprisionado dentro das harmónicas grades dos adultos.



sábado, 4 de fevereiro de 2012

Wings of Desire (1987) - Win Wenders

Ninguém. Nin-guém.



E dentro do carro ouvia-se apenas o desespero cantado de uma mulher:


Gritar quem pode salvar-me

Gritar quem pode salvar-me

Do que está dentro de mim


Mas também para isso não houve resposta.



sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

big brother is watching you

Estes senhores enviaram-me um email a sugerir que dê um toque de sofisticação parisiense ao meu guarda-roupa.


Quero saber quem é que lhes foi contar que depois de chegar a esta terra aderi ao horrendo conceito de roupa confortável.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Amigo, que saudades tuas

Como deves ter reparado, deixei cair o sotaque brasileiro que antes usava nos postais inter-continentais que te escrevia. De qualquer forma, aí para onde agora te mudaste, os sotaques não fazem sentido porque devem ter formas avançadas de comunicação onde nem sequer é necessário mexer os lábios ou esforçar as cordas vocais.
Como o meu processo de realização do mundo passa por te contar todas as coisas, a tua recente indisponibilidade para me ouvires deixou-me, qual zombie, refém num mundo paralelo em que o me acontece não chega a ser verdadeiro por falta de processamento.
Depois descobri esta solução de me fazer acreditar que podes ler-me em qualquer lado. Sabes como sou. Descubro sempre uma solução. Quase sempre passa por fazer-me acreditar em qualquer coisa disparatada.
Foi uma semana com penas de gaivotas espalhadas pela areia vazia da praia. É estranha e triste a ideia da praia vazia como o local onde as gaivotas vão perder as penas. Também havia uma espécie de bolhas de pastilha elástica com tons de azul que afinal eram tentáculos de águas vivas. Tudo isto foi parar à minha praia. E também um homem corpulento e grave que juntava aqueles selos dos maços de cigarros para comprar uma cadeira de rodas eléctrica. Precisava de cinco quilos daquilo. Não lhe perguntei se não seria mais rápido organizar um peditório. Os outros também têm direito às suas soluções. Tenho pensado no homem, grande, a pesar selos, levíssimos, e a acreditar optimisticamente que agora já só lhe faltam dez milhões. É um número ao acaso porque não imagino quanto pesa cada um dos selos. Há também a questão logística, claro. Sacos de selos empilhados até ao tecto dentro de um quarto com cama de solteiro. Isto da cama de solteiro é só porque gosto do conceito. Quase tanto como cama de “corpo e meio”. Que é outra daquelas coisas que nunca consegui perceber, mas sobre a qual tu terias imenso gosto em discorrer uma tese de três horas, se me tivesse lembrado de te expor este problema a tempo.
Em vez disso perdi o tempo que não imaginava que se esgotaria a ouvir-te dizer que morrer e lavar os dentes assume a mesma importância cósmica e outras tontarias sobre transferências de energia.
Importante mesmo é dizer-te que tenho uma nova ruga na testa. Quase que a senti formar-se ao longo da semana. Penas de gaivota e tentáculos de águas marinhas espalhados pela praia, pensando melhor, até foi a coisa menos triste que me aconteceu. E agora, ainda por cima, a tal ruga tornou-se verdadeira.
Da próxima, agradeço que vás antes lavar os dentes.