terça-feira, 30 de outubro de 2012

marcadores


Arrumo um livro e cai-me aos pés a fotografia dos pés dele.
O livro está cheio de crimes. Em capítulos, secções, subsecções. Não consigo perceber porque utilizei esta fotografia, como marcador, no livro que nos transforma a todos em criminosos.
Apanho-a do chão e volto a colocá-la, ao acaso, entre as páginas do livro. Algures entre a burla e a falsificação.
Esse espaço onde cabe o amor.

domingo, 28 de outubro de 2012

sábado, 27 de outubro de 2012

Disney Channel is back



Seria de supor que a itinerância constante nos abre a vida a um imenso rol de rostos e a uma roda viva de experiências novas e irrepetíveis. Estatisticamente sim. Mas comigo não. O meu mundo é tão minúsculo e feito de repetições de personagens que às vezes temo que tudo não passe de uma conspiração ao jeito de “The Truman Show”. As seis pessoas que conheço insistem em aparecer-me, com toda a improbabilidade do mundo, onde quer que eu esteja e sem a menor colaboração da minha parte.
Uma hora depois, sentados num muro:
 - Kierkegaardiana? Mas que raio é isso?
- oh, esqueça. Daria muito trabalho a explicar e não tem assim tanto interesse.
- Foi alguma doença que apanhaste nas ilhas?
- Não me trate por tu. Já falámos sobre essa questão do excesso de familiaridade.
- Mas agora já não sou teu senhorio… não temos impedimentos de ordem ética.
- Você não sabe o que está a dizer, pois não? E não use essa expressão na minha frente que me desencadeia pensamentos angustiantes.
- Pensamentos angustiantes tenho eu por tu usares esse vestidinho na minha frente.

Devolver ao mar o que o mar apenas nos emprestou


Escolhi uma noite sem lua nem estrelas. Por ser para ti, usei o meu melhor vestido de seda cinzenta e calcei uns sapatos prateados. A hora era aquela em que o mundo é entregue aos insones e aos desesperados e as praias são cantos esquecidos de existência. Cheguei contigo pela mão absortos no silêncio e na escuridão total. Para que a música não me distraísse dos batimentos do coração. Para que com a luz não viesse a sombra e nela a denúncia da demência no reflexo onde tu não aparecerias.
Apertei-te a mão com mais força quando entrámos no mar gelado e fomos varridos pela primeira onda de noite e vazio e escuro e nada. Deixei-me enrolar na turbulência e afundar e emergir. Nadei até ao limite das minhas forças na direção de coisa nenhuma. Reconheci a derrota para o mar e negociei o preço da minha vida.
O mar deixou-me fazer a viagem de regresso da escuridão.
Apenas para voltar à praia. Nua e de mãos vazias.
Talvez, ao fundo, houvesse um barco a afastar-se na direção da linha do horizonte.
Nunca o saberei. O preço que paguei pela minha vida foi a promessa de não olhar para trás.     

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Soren & Choo



It is told that there was once a man who through his misdeeds deserved the punishment which the law meted out to him. After he had suffered for his wrong acts he went back into ordinary society, improved. Then he went to a strange land, where he was not known, and where he became known for his worthy conduct. All was forgotten. Then one day there appeared a fugitive that recognized the distinguished person as his equal back in those miserable days. This was a terrifying memory to meet. A deathlike fear shook him each time this man passed. Although silent, this memory shouted in a high voice until through the voice of this vile fugitive it took on words. Then suddenly despair seized this man, who seemed to have been saved. And it seized him just because repentance was forgotten, because the improvement toward society was not the resigning of himself to God, so that in the humility of repentance he might remember what he had been. For in the temporal, and sensual, and social sense, repentance is in fact something that comes and goes during the years. But in the eternal sense, it is a silent daily anxiety. It is eternally false, that guilt is changed by the passage of a century. To assert anything of this sort is to confuse the Eternal with what the Eternal is least like -- with human forgetfulness.

Purity of Heart is to Will One Thing, Soren Kierkegaard

Os sapatinhos são Jimmy Choo

Das coisas que são realmente graves e têm a capacidade de me chatear

Há uns iogurtes gregos que vêm anunciados como sendo de "amoras pretas" mas que, depois, quando se abrem, constata-se que têm amoras cor de amora.
Se vou comer amoras, para mais dentro de iogurtes gregos, acho que o mínimo exigível é que não tenham cor de amora.

sábado, 20 de outubro de 2012


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Aos costumes disse nada


Mas no final do dia havia sol na praia. E um grupo de italianos a fazer aquele barulho que os italianos fazem. E gente a dançar nas mesas ao ritmo de copos de Moet & Chandon. E não restava mais trabalho nenhum para eu fazer. E um dos italianos perguntou-me porque é que não me ria.
E eu pensei por um instante na minha razão.
E ri-me. 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

I must down to the seas again


I must down to the seas again, to the lonely sea and the sky,
And all I ask is a tall ship and a star to steer her by,
And the wheel's kick and the wind's song and the white sail's shaking,
And a grey mist on the sea's face, and a grey dawn breaking.
I must down to the seas again, for the call of the running tide
Is a wild call and a clear call that may not be denied;
And all I ask is a windy day with the white clouds flying,
And the flung spray and the blown spume, and the sea-gulls crying.
I must down to the seas again, to the vagrant gypsy life,
To the gull's way and the whale's way where the wind's like a whetted knife;
And all I ask is a merry yarn from a laughing fellow-rover
And quiet sleep and a sweet dream when the long trick's over.


in, John Masefield

Gestão danosa


Uma análise aturada do meu espólio sentimental leva-me a concluir pela saída possível:
Apresentar a alma à insolvência.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

o banquete dos chacais


Numa sala com vista para uma rua chique de Lisboa, os chacais sentam-se em cadeiras de falso cabedal preto e reúnem-se em torno do meu coração. Um deles tira-o do interior de uma pasta de plástico e pousa-o na mesa de vidro. Com cuidado. Para que não se suje a carpete cinzenta. Depois pesam-no numa balança de pesar farinha. Anotam números incompreensíveis e entreolham-se com ar grave. Há murmúrios de desaprovação. Escolhem um deles e encarregam-no de o espremer. Pelo puro interesse científico em determinar quantas gotas deita. Explicar-me-ão mais tarde.
Nunca nada foi tão reduzido à sua objetiva realidade como o meu coração na mesa dos chacais.
Um montinho de carne crua e ensanguentada.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Um grito

Eco de silêncios reprimidos

O silêncio não matará aquilo que calas.
Ecoa os sons de piano que tatuaram os meus ouvidos.

domingo, 7 de outubro de 2012

Dia non-sense


E houve um dia em que se percebeu que toda aquela gente tinha enlouquecido. Não durante a noite, como um efeito adverso do sono ou da sua falta. Aos poucos. Perdendo a razão todos os dias em ínfimas mas contínuas doses de estricnina social. Enlouqueceram presos num pântano de incapacidade, de frustração, de angústia e de solidão profunda. E até aqueles que foram tendo consciência da perda sua lucidez, deixaram-se ensandecer enganados pelo placebo da artificialidade. A promessa de alívio que não chegou a tempo.
E os loucos tinham sempre frio e procuravam uma fonte de calor qualquer. Não interessa qual. Não interessa junto de quem. 

sábado, 6 de outubro de 2012

homicídios

Se ele é maior e mais forte do que tu e sabe disso, será, com toda a certeza, menos cauteloso.
Envenena-o.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Beach Barbie in the winter



Por agora, neste lounge a três metros do sítio onde as ondas vêm morrer mansas, ainda nos servem o vinho gelado ao som de Erykah Badu.
Mas os toldos e as gaiolas de pássaros de louça que por cima das nossas cabeças abanam ao ritmo do vento contam tudo. Não estariam aqui nesta altura se tivessem passado o verão inteiro a mover-se com tanto frenesim.
Em breve, os casais bronzeados deitados nas camas a trocar protetor solar darão lugar a ingleses de meia idade e galochas a apanhar conchas na praia.
Por trás de nós, na fila de restaurantes, bares e pequenas lojas de recordações, já se adivinha uma plateia de gaivotas expulsas do mar. Cadeiras de vime amontoadas de encontro a janelas sujas. Sacos de plástico a esvoaçar sem dono nem destino. Uma bola vazia esquecida. Restos do verão que se acumulam nas esquinas.
Deitada ao sol, neste sofá branco, esqueço o vinho e agarro-me a essa promessa de outono. O lounge será desmontado, a Erykah deixará de dizer, enquanto se ri, que ooh i´m so in love with you, ooh badhi, badhou,  não será necessário fingir a felicidade e eu e o meu espaço exterior estaremos, finalmente, em sintonia: seremos ambos uma estância balnear abandonada.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

compra-se

Uma pequena dose de indiferença.

O trabalho liberta

A minha nova terra é um campo de concentração com o mar ao fundo. A ausência de fornos não é um resquício de humanidade. Deve-se ao facto de, no trabalho intelectual, o número de incapacitados ser desprezível. Especialmente porque nem sequer têm que nos alimentar.
Entretanto, percebi que a minha conjuntura pessoal dá veracidade à frase. O trabalho liberta porque nos liberta de nós próprios. Liberta-nos de coisas penosas como o pensamento livre e descontrolado. Liberta-nos da angústia existente na ausência de uma vida para vivermos fora dos muros.
Na falta de coragem para me internar num sanatório e passar o dia com um canivete suíço na mão a esculpir corações nas árvores do jardim enquanto marco o tempo pela hora da distribuição dos comprimidos cor de rosa, parece-me que o campo de concentração é um sucedâneo satisfatório.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Para Roma com amor

Aproveitando esse luxo que ainda me parece estranho e que consiste em ter "uma nova terra" com cinema, fui ver o "Para Roma com Amor" do Woody Allen.
Não há nenhum amor no filme, mas há alguma Roma e muito Woody Allen. 
Digam o que disserem, ao contrário dos últimos dois, é um Woody Allen típico. E neste novo mundo de incertezas é reconfortante entrar-se numa sala para ver um Woody Allen e servirem-nos exatamente aquilo que comprámos.