quarta-feira, 28 de março de 2018

Notebook

O meu amigo chegou e trouxe-me um notebook. Pensei que seria um objeto útil para depositar a saudade. Há pessoas que nos faltam tão por dentro que temos de esquecer a ausência. Um assassino ensinou-me, um dia, que é um ato de inútil masoquismo fixarmos o pensamento no que de antemão sabemos que nos trará tristeza. É por isso que prefiro só pensar no meu amigo nas duas horas que antecedem um nosso encontro. Não lhe disse que as páginas do notebook serão insuficientes para que, até à próxima vez, nelas caibam os caracteres da falta. Seria redundante. 
Um dia partiu para um país cujo nome me recusei a aprender, convencida que recusando os signos da sua nova vida renegaria a ausência. O nosso mundo encolhe quando nos separamos dos amigos. Naquele ano o meu encolheu demasiadas vezes. Disse-me que pensa em mim sempre que está em Istambul, cidade onde nunca estivemos juntos, mas onde me consegue ver a comprar quinquilharias no bazar ou a beber chá de menta sentada numa almofada. Percebi que o meu amigo segue um método mais evoluído do que o do assassino que me ensinou a não sofrer. Descontextualizar as pessoas é a melhor forma de as levarmos connosco. E, assim, fazer com que as saudade caibam todas dentro das páginas de um notebook. 

terça-feira, 27 de março de 2018

A noite que nunca acaba

Dizem que correr liberta o espírito. Não há nada que não faça para me ver livre do meu. Depois do quinto quilómetro, o rio, que no início era uma língua de prata a encomiar o céu, transformou-se no fio de lama que o estrangula. As pernas revoltaram-se contra o processo de liberação do espírito e o próprio perdeu-se, fixado, insistente, na tormenta de um pensamento mau. O corpo dobrou-se ao peso. 
Foi então que, pela manhã, entraram os primeiros acordes da música. E o espírito regressou a casa e a boca, involuntariamente, abriu-se num sorriso que eu queria pintar em mim para sempre, e as pernas correram ligeiras por cima do rio que foi o mar que nos separa. 
Foi assim, bem o sei, que mil vezes me arrancaste das profundezas do Hades. Aqueronte nada pode contra a força da música que é como se fosse o meu nome nos teus lábios. Mil vezes morri e, imortal, mil vezes me trouxeste à tona da caverna que é o inferno dos que amaram. Mil vezes me esqueci e mil vezes me lembraste. Deste-me a história e deste-me a canção. E esta é a noite que nunca acaba. 



segunda-feira, 26 de março de 2018

Achados

O remoto rei dos corvos 
Edgar Allen Poe,
deixa cair do seu bico, 
no centro de uma biblioteca, 
os restos de uma musa.
Cansados de tanta melancolia, 
os ratos montam à sua volta um circo.

«Annabel Lee», «Annabel Lee», 
guincham os bichos,
repartindo os ossos entre si.

Mostram os dentes,
esticam-lhe a pele.
Sabem que o poema 
não tem outro precursor 
a não ser a fome;
nem outro seguidor 
a não ser o crime.


Golgona Anghel, Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho, Assírio & Alvim

Jet lag emocional

Tantos foram os estados que atravessei e a tão grande velocidade se sucederam que passsei a sofrer de jat lag lag emocional.

domingo, 25 de março de 2018

Mas no céu não conhecemos ninguém...



“That’s a long way to go just to eat.

evito os evangelizadores, os bajuladores, os ególatras e os medíocres.”

A Flor, aqui, a explicar porque não tem amigos. 

sexta-feira, 23 de março de 2018

Sonhos

Sonhei, ou quis sonhar, que Alah é quem mais sabe, com essa encosta de vinhas que se estende até ao mar. Vi uma vez mais a enorme lua refletida nas águas negras do mar-chão e as mesmas estrelas que guardei tatuadas na íris. Às vezes, num segredo que guardo de mim própria, quando o sono distrai o porteiro deste mundo, regresso à noite que pariu todas as noites que se lhe seguiram. À tarde que a antecedeu, bem sei, nem em sonhos poderei regressar. No instante em que a culpa se forma, perde-se, para todo o sempre, a capacidade de recordar a inocência.

Radialistas


quinta-feira, 22 de março de 2018

Oferecem-se Haikus


Achei que era um bom dia para voltar a oferece haikus do Bashô (e outros que talvez nem tanto)
Diga um número de 55 a 296 e receba um haiku.

terça-feira, 20 de março de 2018

raízes

Passei incontáveis minutos a observar o processo de crescimento das raízes no vaso de vidro da planta suspensa em água. A resiliência é o meu milagre preferido. Se fecharmos os olhos e o dia não tiver sido péssimo e tiver feito um pouco de sol e alguém nos tiver oferecido uma música nova ou se tivermos encontrado uma metáfora aceitável num poema, ou num cartaz publicitário, ou mesmo entre duas pedras junto ao rio, se o dia não tiver sido péssimo e fecharmos o olhos, dizia, podemos acreditar na resiliência, essa, que a natureza jura que, estatisticamente, também há em nós.
E então saberemos que as raízes continuarão a crescer mesmo quando ninguém as observa.
E tudo estará bem.

Equinócios

Às 16:15 horas de hoje, mais segundo, menos segundo, decidiram os Homens, chegou a primavera.
Não espanta, por isso, que ainda traga os restos do inverno colados aos ossos.
É preciso fechar as janelas ao vento norte, ajeitar os pés ao raio de sol, sacudir um resto de gelo do coração, deixar secar as gotas de chuva das pestanas, abrir as asas à clepsidra e aceitar a renovação.
Valha-nos as estações para nos lembrarem que o tempo, qualquer forma de tempo, ainda corre.

terça-feira, 6 de março de 2018

Biografia




Como dizer-te dessa estrada secundária por onde só passa quem procura alguma coisa que não sabe o quê; do seu asfalto gasto pelo pó do deserto que vai da berma até ao meio da faixa de direção unívoca; como dizer-te desse café de portas empenadas, por onde já só entra um pouco de vento que se anuncia no abraço do cristal das velhas estrelas penduradas no tecto; do salão vazio onde não se dança ao som da caixa de música avariada. Como dizer-te das cinco da tarde e das janelas de vidros sujos onde a luz dourada assoma à despedida. Das coisas que eram minhas e que foram, uma por uma, abandonadas. Como dizer-te de mim?

Diamond rings and Chevrolets

A Saga 

Pela Palmier Encoberto 

segunda-feira, 5 de março de 2018

sexta-feira, 2 de março de 2018

Diamond rings and chevrolets

Escorreguei uma vez mais pela toca do coelho. Foi difícil encontrá-la na cidade. Entre dois prédios, escondida no chão, disfarçada de conduta de esgoto. Aqui, as portas são todas iguais e umas levam à miséria e outras à maravilha. Só descobres depois de teres descido muitos metros, de costas, com os pés no ar e os cabelos em desalinho. 
Caí diretamente na sala grande. A minha pouco discreta chegada não interrompeu a festa. Havia uma harpa que se tocava a si própria. O coelho das pressas dançava um tango melancólico com a lagarta azul e nenhum dos dois olhou na minha direção. O gato que ri mostrou-me os dentes de cima e apontou-me a sombra escondida atrás do reposteiro. Vi-lhe a forma do chapéu alto e lamentei a ausência da matéria. Um dos gémeos gordos veio dizer-me que também no wonderland há sombras vazias. E o outro ecoou vazias vazias vazias até que a palavra ganhou a consistência do gelo e as letras subiram desordenadas e fizeram um looping junto ao lustre de cristal pingado.
Fingi não me importar com o acidente do chapeleiro louco. Perguntei ao vazio onde estava a rainha branca e o gato, rindo-se, disse-me que estava dentro da rainha de copas.
- Nunca saberei se sou Alice ou a rainha de copas e quando ouço o "corteeeem-lhe a cabeça", tanto pode ser uma ordem dada contra mim como por mim. 
Então, a lagarta libertou-se das patas do coelho das pressas e instalou-se no meu ombro com o seu cachimbo de ópio.
- Aqui ninguém quer saber quem és; Depois apontou a sombra do chapeleiro louco escondida por trás do reposteiro e disse com um gesto dramático: - A verdade enlouqueceu aquele..
A harpa chorou um novo tango e eu estendi os braços na direção do reposteiro vazio. Ergueu-se a sombra do chapeleiro e enlaçou-me numa dança que durou um tempo que o relógio do coelho apressado se esqueceu de medir.
Mas depois, ouviu-se aquela frase, terrível, cujo som nunca sei se vem de dentro ou de fora e que esvazia o ar e arrefece os dedos e deixa um rasto de dor na garganta.
- corteeeem-lhe a cabeça.

quinta-feira, 1 de março de 2018

My love

Babe don't try to call
My heart is ticking and the show, just won't wait

It's strange, you couldn't see it my way, hey now go
I pray for you to fall
The spark, has died and now you're just too late 

A shame, you're knocking at the wrong gate, hey go home
Come what may, I won't give away

My love, diamond rings and Chevrolets
My love, aces high and cigarettes
My love, faking all like Hollywood
My love, love, love

No way you'll see me crawl
Like a shark I'll be ripping you apart, and celebrate
With lots of champagne, you caught me on the wrong day, now you know

Come what may, I won't give away

My love, see me dancing in the rain
My love, no more whiskey and cocaine
My love, ending all forbidden fruit 
My love, love, love

Ashes to ashes, dust to dust 
No you can't amuse me, so leave you must
Ashes to ashes, dust to dust
If the spell won't kill you, your ego does

My love, diamond rings and Chevrolets
My love, no more tears and no regrets
My love, time to lay the man to rest

My love, love, love

Amon Ra

Sonhei que atravessava o deserto sob o sol do meio dia. É a hora em que o inferno engole as sombras e regurgita o desespero. Do horizonte, não veio miragem que aliviasse a sede. Éramos o sol, a areia e os meus pés nus.
A chuva da madrugada e da manhã e da tarde e do anoitecer não chegou para me salvar do destino.
Há um deserto intransponível que todas as noites me espera. Tem a languidez do cão que sabe que o dono virá.