domingo, 31 de janeiro de 2016

Alone together II



De cima para baixo:

Robert Radomski 
Eduardo Lopez Negrette 

Alone together

Fingiram a renúncia.
Fingiram que a verdade 
seria a que fingiram viver. 
Fingiram as manhãs à mesa do pequeno-almoço. 
O empréstimo do corpo às rotinas do emprego. 
A importância das contas na caixa do correio. 
Ecrãs azuis de televisões no avesso dos aquários, 
ao anoitecer. 
E fingiram a presença; 
a promessa; 
a verdade;
todos os como foi o teu dia 
e todas as boas noites. 

Coexistiram em segredo
nos silêncios; 
no âmago das noites; 
na solidão do mar; 
no fundo dos espelhos. 
E dessa única fonte beberam 
a vida.

Vinham de longe, muito longe. 
Do tempo das cinzas, do barro e do sangue. 
Esperavam que a eternidade 
os viesse salvar,
e, entretanto,
fingiram a renúncia. 



Além-mar


Do início

Enquanto empenhava os meus melhores esforços para tocar no piano uma peça composta por nada mais do que duas notas, realizei que, na música como na vida, a técnica da aprendizagem está menos na repetição dos erros do que na maturação dos estádios mais básicos.
Regredir até à absoluta simplicidade do início, por vezes, é a única forma possível de progressão. 

Ah! Se...

(...)
Ah! Se as pessoas se tornassem boas
E cantassem loas e tivessem paz
E pelas ruas se abraçassem nuas
E duas a duas fossem ser casais
(...)

Vinicius de Moraes

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

O fio de voz

Aprendi a adivinhar-lhe a alma nos contornos de um fio de voz. A inflexão de uma vogal pode desvendar a insónia de ontem. A pronúncia de um erre mais difícil, a irritação disfarçada. Uma pausa despropositada entre o sujeito e o verbo, a mais profunda das tristezas. Adquiri o poder de, ouvindo-o discorrer sobre banalidades, reconstruir passos nas longínquas calçadas de pedra; gestos lentos debaixo de avassaladores crepúsculos; Involuntários movimentos nos músculos faciais. Cheguei a ver as asas da última gaivota no brilho alienado dos olhos, revelado, assim, no rasto da palavra amanhã. 
Mas, um dia, partiu-se aquele fio de voz. E foi então que conheci a cegueira. 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Da vergonha alheia


Inventários

Nunca esqueci a expressão de alegria com que um dia me propôs que professássemos o sofrimento: "partilhar a saudade em festa". 
Não lhe apontei o paradoxo. Não me confessei incapaz de o sentir. Não espalhei purpurinas e confettis sobre o chão das ruínas.
Percebi que já nem sequer a saudade partilhávamos.



quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Caríssimo Xilre

Não é por mim, a quem anos de meditação budista treinaram para a relativa indiferença aos incómodos físicos. O problema são os outros que, menos familiarizados com o sofrimento e indiferentes aos humores do tal do tribunal europeu dos direitos do homem, ameaçam assassinar a sua Orchidée se não me livrar dela antes da hora de dormir.
Constato que o nosso amável bilhete teve o condão de o fazer repensar a decisão de dissidência e congratulo-o por, uma vez mais, ter feito imperar a sua já famosa sensatez. 
A minha questão, neste momento, é de ordem mais prosaica: 
Agora que já não se vai embora, a quem é que nós devolvemos aquela harpia histérica que acomodámos lá em baixo? 

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Dos problemas graves

Aceitei que à minha escrita falta a fluência musical. Sou pragmática. Decidi pedi-la emprestada à aprendizagem do piano. Sou obsessiva. Aceitei que seria um processo longuíssimo e de êxito incerto. 
O que não esperava era tão imediata influência. 
Tornei-me inábil para escrever uma linha, imediatamente após a primeira lição de piano. 

A lua nossa


segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Destino

Como no provérbio índio: suficientemente ausente do meu futuro; insuportavelmente presente no meu destino. 

domingo, 24 de janeiro de 2016

Período de reflexão

Refleti, obedientemente. 

"Acho a vida difícil", disse Durrel. E depois de muito refletir também eu acho a vida difícil. 
Mesmo dentro desta linda redoma de cristal, em ambiente esterilizado e a temperatura artificialmente conservada para melhor conforto da ocupante humana, onde não faltam os brinquedos nem os comprimidos para o tédio, a vida continua a ser misteriosamente difícil. 


Da Paris Review 3

"Então qual será o melhor ambiente para um escritor?"
A arte também não se preocupa com o ambiente circundante; não lhe interessa onde está. Se está a referir-se a mim, o melhor emprego que já me ofereceram foi o de gerente de um bordel. Na minha opinião é o ambiente perfeito para um artista poder trabalhar. Dá-lhe a liberdade económica ideal; liberta-o do medo e da fome; ele tem um tecto sobre a cabeça e nada para fazer excepto manter em dia uma contabilidade simples e ir uma vez por mês fazer o pagamento à polícia. O lugar é tranquilo durante a manhã, que é o melhor momento do dia para trabalhar. Há bastante vida social ao fim do dia, se ele quiser participar nela, o que lhe permite não se aborrecer; dá-lhe um certo estatuto social; ele não tem nada fazer porque a madame trata da escrita da casa; todos os habitantes da casa são mulheres e tratam-no com deferência, chamando-lhe "senhor". Todos os contrabandistas do bairro lhe chamam "senhor". E ele pode tratar os policias pelo nome próprio.
Portanto, o único ambiente de que o artista precisa é um ambiente com tanta paz, tanto isolamento e tanto prazer quanto o que lhe for possível encontrar a um preço não demasiado alto. Aquilo que um ambiente errado lhe provocará é um aumento da tensão arterial; fá-lo-á perder mais tempo com frustrações e irritações. Por experiência própria percebi que aquilo de que preciso para o meu ofício é papel, tabaco, comida e um pouco de uísque.

"Quer dizer, bourbon?"
Não, não chego a esse grau de exigência. Entre um uísque escocês e nada, aceito o uísque escocês.

William Faulkner, in, Entrevistas da Paris Review, Tinta da China. 

Da Paris Review 2

"Jack, então e a escrita de Peter Oslovsky. Gosta das coisas do Peter?"
Peter Orlovsky é um idiota!É um russo idiota. Nem sequer russo é, ele é polaco.

"Escreveu alguns belos poemas".
Ah, sim. O meu...que poemas?

"Tem um belo poema chamado "Segundo Poema""
"O meu irmão mija na cama ... e eu vou de metro de vejo duas pessoas a beijarem-se..."

"Não, o poema que diz "É mais criativo pintar o chão do que varrê-lo"."
Isso é um monte de merda! Isso é o tipo de poesia que foi escrito por outro idiota polaco, um polaco maluco chamado Apollinaire. O verdadeiro nome dele não é Apollinaire, sabe. Há uns tipos em San Francisco que me disseram que o Peter era um idiota.Mas eu gosto de idiotas, e gosto da poesia dele. Pense nisso, Berrigan. Mas para o meu gosto é mais o Gregory.
Dê-me aí um desses.

"Um destes comprimidos?"
Sim. O que havia de ser? Clarinetes bifurcados?

Jack Kerouac, in Entrevistas da Paris Review, Tinta da China

Da Paris Review 1

"Quais são as suas principais excentricidades?"
Creio que o meu lado supersticioso poderia ser classificado como excentricidade. Tenho de somar todos os números: há pessoas a quem nunca telefono porque o número delas resulta num número de azar. Ou então não aceito um quarto de hotel pela mesma razão. Não tolero a presença de rosas amarelas - o que é triste porque são as minhas flores preferidas. Não aceito três pontas de cigarro no mesmo cinzeiro. Não viajo num avião onde existam duas freiras. Não começo nem acabo nada a uma sexta-feira. É interminável a quantidade de coisas que eu não posso e não quero. Mas retiro um curioso conforto da obediência a estes conceitos primitivos.


Truman Capote, in Entrevistas das Paris Review, Tinta da China

sábado, 16 de janeiro de 2016

Anjos sem abrigo

Nas tardes em que não posso comigo,
e em que os ossos me pesam no coração 
e as mãos procuram inquietas 
o vento que sopra do outro lado da lua 
e os olhos fixam-se naquela linha imaginária que divide o mar do céu,
E que é o único lar onde saberia viver,
nessas tardes, dizia,
Ouço um coro de anjos sem abrigo 
que me conta estórias de amor. 
Perdem-se as estórias na insónia que se segue 
às tardes em que não posso comigo,
e que me fazem sobrar um chão de penas
de anjos sem abrigo.


sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Dling dlong

Visto o meu mais inocente vestido e deito-me no divã para não ter de enfrentar o olhar terrível. Sento-me à secretária e finjo que me ouço. Explico que há algures no prédio uma campaínha avariada que é a metáfora da minha memória. Um dling dlong contínuo a ressoar no meu cérebro. Coisa suscetível de levar qualquer pessoa normal à loucura. Deve vir nos livros da especialidade. Olho a ponta das unhas, e ocorre-me que deveriam ser arranjadas. Lamento a falta de uma ampulheta e pergunto-me "e que mais?". Ignoro a mancha no tecto enquanto desfio o rosário de factos quotidianos que me causam perturbação. São coisas objetivas: três quilos de tangerinas que comprei devido a um erro de comunicação e agora apodrecem na fruteira. Uma conta de fornecimento de água que me esqueci de pagar e o transtorno de ter de pedir novas referências para o multibanco. A falta de um botão no vestido de hoje de manhã. O livro esgotado que não consigo obter e que subitamente parece ser a mais grave omissão da minha vida. Tudo embalado por um permanente dling dlong de uma campaínha avariada que é a metáfora da minha memória. Hesito entre pegar numa lima para resolver o problema das unhas ou manter a postura profissional. É uma falsa hesitação. Digo que apenas o problema da campaínha é verdadeiro e que todos os outros são ecos. "E o da memória?", ouço-me perguntar à sala vazia que me responde com o dling dlong da campaínha do prédio do lado. Pego na lima das unhas para dar a sessão por oficialmente encerrada. Congratulo-me por não ter chegado a dizer o que penso de pessoas que decidem ter aulas de piano apenas para aprenderem a tocar uma única música. Junto a mancha no tecto às minha perturbações quotidianas. Revejo mentalmente aquilo da escala pentatónica. Dling dlong. 

Conto de Fadas

Na varanda, a bela infanta apaga
o cigarro. O céu sem lua atira-lhe as
estrelas para cima, deixando-a suja
de uma cinza cósmica que ela
sacode para o vaso de flores, onde 
o príncipe deixou um bilhete:"Hoje
não pode ser, meu amor"; e ela, 
deitando a beata do quinto andar 
para a rua, volta para a sala. "Estás
pronta?" Ela não responde. Senta-se, 
apenas, no colo do sapo, e beija-o,
esperando que se transforme em conde,
mandando o príncipe, mais o amor 
dele, e o palácio, às urtigas. 

Nuno Júdice, Cartografia de Emoções, Dom Quixote, pg 114.

A papoila vermelha

Esta manhã, balouçava no canteiro da frente uma única papoila vermelha que se revoltou contra o inverno e decidiu florescer. 
Só não entenderão que o facto é digno de nota, aqueles que conseguiram escapar à prisão de uma existência asfaltada a cinzento. 

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Intangibilidade

Regressarei.
O sol terá acabado de nascer. Haverá bruma. A praia estará vazia. A areia será escura. A água quente. 
Então ajoelhar-me-ei no absoluto silêncio e tê-lo-ei por um instante diante de mim: o contorno imperfeito, longínquo, intangível da minha Ilha. 
Não distinguirei a montanha; as árvores; a cascata; os telhados; as pedras negras do chão; as aves; certo alpendre e o desfazer da onda numa outra praia não menos vazia. 
Ajoelhar-me-ei diante do contorno difuso de uma massa de terra.
Pode parecer pouco, mas é o mais próximo de mim que estarei algum dia. 

Ilhas


Felizes deles

Felizes dos que desconhecem a tormenta da inquietação constante; dos que não são assombrados pelo alastrar da mancha do tédio; dos que não perseguem o pote de ouro da autosuperação; dos que chegam para si próprios; dos que afagam as suas limitações; dos que não se obstinam em fazer aquilo que para que não nasceram; dos que não têm comichão na alma. Felizes, pois é deles o reino da terra. 

domingo, 10 de janeiro de 2016

Easy way out

Did you call my name?While i'm passing up,
The mistake i've made,
It can't be turned around,
I took the easy way out,
I took the easy way out,
I took the easy way out,
I would hound for one,
Before casting up,
The mistake i've made,
It can't be turned around,
I took the easy way out,
I took the easy way out,
I took the easy way out,
I wanna feel something again memorable,
I wanna feel something again memorable,
I wanna feel something again memorable,
I wanna feel something again memorable.






Quando ninguém estava a ver

Aconteceu quando ninguém estava a ver. Esta linha na testa que se afundou uns milímetros. A rocha que se soltou e caiu na areia da praia. Uma maçã que se desprendeu da árvore e morreu em silêncio. O tapete de penas de gaivota com que o vento cobriu uma das esquinas da rua. As ervas que vieram habitar o ralo da varanda. O desvanecer do sorriso feito de celulose aprisionado numa moldura. A mancha de ferro que o marcador deixou na melhor página do livro. O esquecimento.
Todas estas coisas, que mudaram para sempre a face do mundo, aconteceram quando ninguém estava a ver. 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A bruxa

Era uma daquelas salas propositadamente mobiladas para que nos esqueçamos rapidamente delas. Guardei a  breve memória de pássaros laranja a voarem sobre a base de um candeeiro de porcelana branca, pousado numa pequena mesa de madeira de mogno. As cortinas eram pesadas e escuras e também o era a chuva que há muitos dias caía, incansável. Estranhei a ausência dos livros. Tinha a certeza que algures naquele pequeno apartamento no centro da cidade haveria um quarto repleto de livros.
Levámos bolos para o chá que não me lembro de ter tomado. Creio que ela os guardou, bolos e chá, para uma visita que valesse realmente a pena.
Entediada pela minha advertência cética, deitou-me as cartas e ficou a olhar para mim durante longos minutos.
Então, a bruxa falou-me dele. Disse-me que estávamos juntos há muitas vidas. Desde o princípio dos tempos, disse ela, com a lentidão que é própria de quem tem a certeza que nenhuma razão há para apressar o que é eterno. Olhei-a com a superioridade de quem reconhece um logro. Confundiu o meu desdém com apreensão. Disse-me que era normal encontrarmo-nos todos uns aos outros nas nossas infinitas vidas. Forneceu-me a explicação que a sua ciência valida. 
Mostrou-me um quarto interior cujas paredes eram forradas a livros. Tinha adivinhado a minha adivinhação.
Perguntei-lhe, então, como me poderia livrar dele nas vidas futuras. Para que não me julgasse, forjei duas ou três razões que lhe forneci.
Ela ensinou-me a contornar as leis do além, aparentemente, não menos flexíveis às mãos dos especialistas do que as do aquém. 
Vaticinou-me muitas coisas que já esqueci. A maioria eram más. Os anos deram-lhe razão nas duas que, por absurdas, inimagináveis, recordei.
Uma semana depois, numa outra tarde de chuva, encontrei-o com o objetivo de lhe relatar a entrevista com a bruxa. Não se mostrou surpreendido. Acedeu à minha vontade de o anular do mapa das encruzilhadas das vidas futuras. Talvez também ele estivesse cansado dessa terrível forma de imortalidade. Eu sei que estava.
Não esqueci apenas a sala. Esqueci o número da porta, o prédio e o nome da rua. A psicologia, em que não acredito, fornece razões curiosas para que decidamos perder determinados objetos.
Quando, uns anos depois, ele morreu, sobreveio o pânico do funcionamento da patética mezinha e o terror da condenação a uma vida eterna, em que também sou incapaz de acreditar, na solidão da sua definitiva ausência.
Mil vezes maldigo a bruxa e os seus pássaros laranja a esvoaçarem num candeeiro de porcelana. 

4 de janeiro


domingo, 3 de janeiro de 2016

Estrelas duplas, consanguíneas

(...)
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

Herberto Helder, (a carta da paixão), Poemas Completos, Porto Editora.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Diário de Bordo #1 de 2016

Não há organização terrorista que se preze, e não seria este navio Pirata a infeliz exceção, que ignore o perigo que é lidar com amadores. Talvez nem todos o saibam, mas sendo o profissionalismo um valor universal, todos prefeririam ser roubados por ladrões especializados, que vos arrancassem os bens e vos deixassem incólume a possibilidade de os fazer substituir, do que por pilha-galinhas desorganizados, capazes de, no susto, vos tirar a vida esquecendo-se de levar o móbil do crime.
Serve o intróito para justificar as razões pelas quais não tendo tremido diante das Tríades chinesas que em tempos nos levaram a pequena Cutxi, mantendo-me impávida perante as cúpulas da máfia de leste, tendo negociado calmamente com esposas gregas a devolução dos seus maridos pescadores, farejei o perigo real diante disto. E disto. E disto. E ainda disto.
Embora se diga por aí que tudo começou quando este navio roubou uma vaca dálmata que dá pelo nome de mu-mu, na parte que me diz respeito, tudo começou quando na noite da passagem de ano quase me engasguei com uma passa, ao ver do lado de fora do navio um estranho grupinho vestido de negro dos pés à cabeça coberta por um bizarro chapéu de mosqueteiro, a aproximar-se com uma discreta escada fluorescente, daquelas dos bombeiros. O perigo, senti-o naqueles passinhos indecisos e descoordenados onde li imediatamente o epílogo trágico de todos os planos em que a improvisação é marca de água.
Deixei que a tripulação terminasse os brindes e pousasse os copos do mais fino cristal bizantino - e não, como vilmente se disse por aí, de tosco vidro - e perguntei se alguém sabia o que era aquilo. Mas estes bravos Piratas, sempre vigilantes, argutos e preparados para o mal, depois de um relance aos inenarráveis chapéus de mosqueteiro, versão pobre, informaram-me que talvez tivéssemos contratado online um show de variedades protagonizado por uma daquelas companhias que costumam atuar nas sedes das juntas de freguesia das aldeias do Portugal profundo. A justificação satisfez-me, pois, pela escotilha deste navio já entraram mais inúteis e estranhas coisas adquiridas online. 
E se adormeci em paz, fui acordada pelo ruído da guerra. Abri os olhos ao som de gritinhos agudos mais apropriados ao recreio de um jardim de infância do que ao terror de uma batalha. Quando abracei a manhã, já o grupo invasor, fazendo uso das mais temíveis espadas de plástico, se passeava alegremente pelo convés, divertindo-se a fazer estes bravos Piratas andar sob a prancha e gritar por uma coisa que não sei o que significa, mas a que chamam de clemência.
Previsivelmente, já se tinham esquecido que o objetivo do ataque era o resgate da vaca mu-mu.
Ensinam as leis da resistência ao terrorismo que circunstância alguma aconselha a cedência e que, propiciando-se, deve até eliminar-se o pretexto do ataque. Foi na mais estrita obediência a estas leis que dei instruções a Andrhimnir, o cozinheiro Pirata - que por aquela hora ainda ressonava na sua rede - que transformasse mu-mu em bifes de vaca.
Ensinam ainda as leis da resistência ao terrorismo que em todas em todas as situações de perigo devemos criar uma porta que dê ao inimigo a oportunidade de uma saída limpa. Depois de uma daquelas minhas aturadas reflexões de três segundos, e na senda do que tem sido a história da minha existência, ocorreu-me que o melhor a fazer era fingir-me de estúpida, atividade que, aliás, sei desempenhar notavelmente bem e que me tem livrado de diversos dissabores. 
Subi então ao convés e cumprimentei efusivamente as atacantes mosqueteiras, agradecendo-lhes pelo realismo do espetáculo; dizendo-lhos que quase me enganavam com aquilo e que cheguei a pensar que fosse a sério; elogiando a classe dos chapéus e convidando-as para o faustoso brunch.

Tenho a vaga ideia que lá pelo meio da refeição, quando alguém referiu a qualidade da carne de vaca, as vi trocar entre si uns olhares de suspeição. 
Claro que nessa altura já tínhamos largado amarras. Se se portarem bem, deixo-as no porto de Ibiza. 

Adenda: outros capítulos da Vaca Mumu
Pelo Manel Mau-Tempo

Enganar as horas

Amanheceu lento e prateado, o dia. Aqui e lá, onde ficaram pendurados nas árvores fiapos de ilusão. Ramos feitos do mesmo algodão cor de rosa das amendoeiras que me povoam os sonhos. Nas noites em que adormeço sobre o lado do coração. Esta manhã as ruas estavam cheias de pessoas em passo preguiçoso na direção do mar. Os braços esquecidos sobre uma nuvem mais alva e eu lembrei-me de ti. Há uma praia que é a réplica de metade desta onde também se caminha assim. Como quem entra devagar na densidade do esquecimento. 
Os teus pés enterrados na areia escura que trafiquei dentro dos bolsos. E que agora é combustível de uma ampulheta para sempre partida. A enganar-me as horas.

E o céu de 2016