sábado, 26 de junho de 2010

O rapaz do surf


Fez uma reentrada estrondosa na minha vida em finais de 1998. E, confirmando uma tendência do destino que ainda se mantém actual, como todas as outras bizarrias que me acontecem, tal aparição teve qualquer coisa a ver com a dona doutora Estrelita.
A última vez que o tinha visto, ele era um desses bad boys que passavam o verão na praia da minha adolescência e eu uma pré-adolescente com precoces tiques nerd. O que vale por dizer que ele nunca antes tinha dado pela minha existência.
Em 1998, o destino devolveu-mo numa noite da Kapital, para um relacionamento mais instantâneo que as sopas knorr.
A explicação é simples: o rapaz parecia-me miseravelmente giro, cheirava e sabia a mar e, apesar de já ser Outubro, eu estava em estado de negação perante o fim dos dias de verão.
Tivemos uma relação de sucesso durante três meses exactos, com a inestimável vantagem, relativamente a todos os que o antecederam e que o precederam, de nunca me ter chateado. Admito como possível que o facto de ter consciência que estava apenas a prolongar as férias tenha feito parte da receita do sucesso.
Não me lembro do que fazíamos quando não estávamos dentro de casa. E também não consigo imaginar uma única conversa possível entre mim e o meu namorado surfista que, nas horas vagas, dava aulas de natação aos filhos dos ricos. Tendo em conta que a amnésia não é uma característica normal em mim, desconfio que passámos três meses dentro de portas e que nunca trocámos mais de quatro palavras seguidas. Sei que rapidamente desisti de lhe contar anedotas, porque me afligia ter que lhe explicar a graça, esperar três minutos e finalmente sacar-lhe uma gargalhada genuína.
Dele, conservo a memória de dois episódios distintos, um no início e o outro no fim da relação.
O primeiro, foi num dia em que, depois da quinta imperial, esqueci-me das limitações metafísicas do meu surfista e decidi perguntar-lhe porque raio achava ele que estava apaixonado por mim.
Depois de muito pensar, coçando os lindos caracóis louros, adiantou-me três profundas razões:
- Tens uma boca lindíssima, ris-te muito e estás sempre bem-disposta.
Naquela altura, eu ainda me levava demasiado a sério para não ficar desconcertada com uma resposta que envolvendo o tema “EU”, não contivesse alusões a uma única das minhas incontáveis características profundas.
Pelo sim, pelo não, decidi imediatamente que jamais voltaria a repetir a pergunta a um homem e jamais me submeteria a idêntico escrutínio.

Demorei muitos anos a perceber que, em matéria de razões para amar, aquela foi a resposta mais sincera e genial que ouvi em toda a minha vida.
O segundo episódio que retive na memória coincidiu com o último.
Na passagem do ano, fui atrás dele para o Algarve representar o meu papel de namorada do surfista. O cenário condicente era uma casa manhosa e uns amigos de tal forma indescritíveis que, na tarde em que desisti de os demover do projecto “passeio na marina de Vilamoura”, fui obrigada a seguir uns metros à frente, para fazer de conta que não os conhecia no caso de encontrar alguém das minhas relações.
Nesse final de ano, naquela casa manhosa, nem sequer faltava um cão. Era um pastor alemão preto, com quem desenvolvi uma empática relação de solidariedade, já que, por sermos os únicos dois seres vivos que se recusavam a fumar ganzas, passámos uma boa parte das noites com as respectivas cabeça e língua de fora da varanda.
Quando, no primeiro dia do ano, saí da cama e entrei na sala caótica, constatei que o cão, invejoso da atenção que eu dispensava à literatura, tinha comido metade do meu livro preferido do Raymond Carver.
Até hoje, não sei que raio de dique se partiu dentro de mim diante da imagem do meu livro meio comido, abandonado numa sala cheia de surfistas com falta de banho, léxico e treino mental.
Sei que me rendi ao que terá sido, muito provavelmente, o maior pranto público da minha vida. Foram dez minutos de lágrimas, choro dobrado, guinchos histéricos e muito ranho espalhado por todo o lado.
O cão foi chamar o meu surfista que, surfando a onda ranhosa, abraçou-me de encontro a uma t-shirt cor-de-rosa e teve o instante mais inteligente de toda a sua vida. Enquanto eu acentuava o choro diante da antevisão de um “não chores mais que eu compro-te outro livro” ou “se ele tivesse feito isto ao haxixe eu também chorava assim”, o meu surfista abraçou-me com força e atirou-me com um “às vezes ser muito inteligente não é uma coisa boa”.
Nessa noite, quando parou o jipe carregado de pranchas à minha porta e se despediu de mim com o seu característico sabor a mar, embora não o soubesse, era um homem profundamente respeitado.
Foi a última vez que o vi.

5 comentários:

  1. Os surfistas, os cilcistas, os futebolistas e outros istas qeu tais têm a importante função de nos desacelerar temporariamente o cérebro, para que no reboot possamos compreender o que realmente queremos da vida.

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  2. Adoro uma boa história de aparente morte cerebral perante um homem lindo e acéfalo. Adoro saber que não estou sozinha e que qualquer uma pode cair numa coisa destas uma vez na vida! Muito bom! ;)
    C-L

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  3. Maria e C-L: Verdadeiros lexotans naturais!

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  4. ...como tudo aquilo que em doses controladas nos faz maravilhas...

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