segunda-feira, 27 de junho de 2016

Inconsciência

Disse Emil Cioran que a insconsciência é uma pátria e a consciência o exílio. Não sei qual dos dois seria desconhecido de Cioran: a inconsciência ou o exílio. Exilamo-nos quando a consciência torna a pátria um lugar inóspito, inabitável. 

Nós, os dos setenta anos de blogues...

... Sabemos que às vezes não temos nada para dizer. Também sabemos que não vale a pena entrar em pânico e anunciar o fim do blogue. Se ignorarmos a falta de inspiração, se nos sentarmos a reler Borges, se olharmos para este miserável fiapo de lua, se, por sorte, um dos cem canais nos oferecer um filme decente, se nos cruzarmos com a música que precisamos, se entrarmos no elevador certo à hora que as estrelas marcaram, se uma fotografia acordar os nossos sentidos, Tagik, o berbere contador de estórias que há em nós, há de encontar qualquer coisa de imprescindível partilha.

(E se nada disso quiser acontecer, podemos inventar que estivemos de férias)

domingo, 26 de junho de 2016

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Anatomia de todas as insónias

A insónia saiu de Lisboa, onde pertence, percorreu vários quilómetros e encontrou-se comigo a sul. Passámos juntas a última madrugada, sentadas numa cadeira, na varanda, a ouvir os gritos das gaivotas e a comer gelados.
Juntaram-se-nos os dos costume: Preocupações irresolúveis de índole burocrática que nunca surgem em período diurno; rastos de culpa por pecados prescritos; listas amarelecidas de decisões que não chegaram a ser tomadas; a lembrança de todas as mensagens que ficaram por responder; a sensação de uma antiga presença que é sombra da própria insónia e a acompanha para todo o lado. O cão veio visitar-nos por três vezes e de todas regressou à cama, aliviado, por aquela insónia não ser sua. Reparei que entre a noite e o dia fica uma faixa temporal, índigo, de não mais de dez minutos. 
O tempo exato que precisava para revogar todas as decisões conscientes que tomei na vida. 
Às vezes penso que aquelas pessoas que não se arrependem de nada são as mesmas que não conhecem a insónia. 

terça-feira, 21 de junho de 2016

Je te laisserai des mots


Aprender as despedidas

E quem visse o desapego, um abraço moderado entre os três e os quatro segundos, um último olhar dentro dos olhos, a expressão alienada de quem já está noutro destino, o silêncio do pragmatismo, o ligeiro aceno de cabeça que importei de Hollywood, nenhuma auréola vermelha em redor dos olhos secos, dez passos firmes na direção oposta, o pescoço obediente que não se voltou, e quem visse o desapego, dizia, nada suspeitaria sobre a convulsão engolida, os batimentos do coração a desfazerem os tímpanos, a falta de um chão sob os pés, a vertigem súbita da saudade. A violência de tudo aquilo que é definitivo. 
Para não estar ali, por não suportar estar ali, por não querer que ele me visse ali, fiquei a observar-me de cima, isenta, orgulhosa, quase, da anulação desse último resto de humano que há na indignidade de uma despedida. 



segunda-feira, 20 de junho de 2016

Terá de bastar um solstício



Por mais que se anseie por uma chuva de sapos, ou um horizonte em tons de ouro e cinza que nos seja inesquecível, ou uma noite de violenta trovoada no mar, ou um cometa que nos caia junto aos pés, ou qualquer outro marco iconoclasta que sirva os propósitos da catarse, por vezes, não há ruído que nos venha arrancar à letargia. 
Nessas alturas, terá de bastar um solstício.  


(Imagem de George Grie, trazida pela Flor e demasiado bonita para ficar numa caixa de comentários)

domingo, 19 de junho de 2016

Esta noite a lua

Pendurei-me novamente pelos pés para, daqui, do cimo do mastro, assistir ao estender dessa manta lilás que é a noite do sul. 
Veio a lua grande e trouxe-o. 
A lua é a janela por onde o espreito. 
Se olhar com atenção consigo ver o velho porto e os barcos que, a esta hora, balouçam vazios. Com exceção de um, que  se move devagar e deixa o rasto de espuma que se desenha na lua. 
Se seguir essa estrada consigo ver a baía onde agora ancora um homem. Sai do barco, senta-se numa rocha e, imóvel, escrutina a lua. 
E se olhar com ainda maior atenção, consigo vê-lo observar-me. Os seus olhos acompanham os movimentos do meu corpo agrilhoado pelos pés. Balanço-me na direção da lua e posiciono-me de frente. 
Sorrimos um para o outro.
Até que acabe de cair a noite. 



sexta-feira, 17 de junho de 2016

De cuore


A forma como te sei. 
Decorado.
Guardado no coração. 

quinta-feira, 16 de junho de 2016

O piano é o meu rosebud

E de tudo quanto consegui alcançar, nada me fez tão contente como essa pequena absoluta inutilidade de, por fim, ter aprendido a tocar satisfatoriamente o Für Elise, de Beethoven.



segunda-feira, 13 de junho de 2016

Campeonatos

A despeito da minha indiferença pelo fenómeno, foi durante um jogo de futebol que vivi os três minutos mais instrutivos da minha vida. 
Foi há muito tempo, noutro Europeu e num outro porto do Atlântico . 
Quando a equipa nacional marcou um golo, penso que nem sequer cheguei a saber contra quem, levantámo-nos ao mesmo tempo que toda a cidade para o comemorar. Então, uma qualquer força ignota derrubou os diques que construí com tanto método e, sem que nada o pudesse prever, travar ou justificar, encontrámo-nos nos braços um do outro e o meu corpo ficou colado ao dele durante muito mais tempo do que aquele que corresponde a um abraço de comemoração de um golo, um festejo entusiasmado, uma alegria partilhada.  Três inteiros, completos minutos. Disse-me um dia quem na altura cronometrou. E foi como se, naquele abraço, não apenas o meu peito e os meus ombros e as minhas mãos e a minha pele, mas o próprio cosmos se tivesse encaixado. E já todas as pessoas haviam regressado aos seus lugares e já a bola rolava num relvado qualquer e já o contador marcava um tempo, quando os nossos cérebros nos devolveram à praça e a uma plateia de atenções divididas entre o ecrã gigante e  aquele indecoroso abraço. 
E foi assim que todos, nós e a cidade, em simultâneo e em partes iguais, descobrimos o amor e o pecado. 

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Do alheamento

O mundo enlouquece devagarinho, no limite da dimensão intangível em que decidi abandoná-lo quando fiz uma fogueira no meio da sala, queimei os livros técnicos que acumulava e vim para Pirata. 
A última vez que vi um noticiário na televisão, foi numa língua que não entendo e apenas porque me avisaram que a guerra tinha chegado às fronteiras do país onde eu estava. Há quatro anos que não compro um jornal e outros tantos que não leio nenhum. Em regra, também não abro os links para as notícias que se espalham pelas redes sociais. Quando o faço arrependo-me sempre. 
Talvez o mundo não esteja mais demente do que sempre foi e a diferença se fique apenas na facilidade com que se espalham as notícias da sua loucura. 
Não tenho nenhum orgulho no meu alheamento. É fundado no mais profundo egoísmo. 
Também não tenho qualquer intenção de revertê-lo. 
Gosto muito de ser egoísta. 

terça-feira, 7 de junho de 2016

The Gipsy man




Lê-me a fortuna em três linhas da mão estendida. Roubou ao matemático que se debate com uma equação irresolúvel a expressão que me oferece. Esquece-se de me devolver a mão. Tenho um sinal na parte interior do segundo terço do terceiro dedo da mão direita. Em compensação, promete-me a última canção da noite. Ouço a estória de um cigano que partirá na manhã seguinte. Quando acordares já aqui não estarei. Diz a música. Danço-a, de madrugada, vestida com as argolas de ouro. Não quis saber o meu destino. Mas vi nas linhas da sua mão uma outra. Com um sinal na parte interior do segundo terço do terceiro dedo. Quando acordei já havia partido. Levou consigo a minha fortuna. 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Remédios contra o amor

Enquanto é possível, e brandos são os impulsos que te agitam o coração 
se estás arrependido, sustém o passo logo à primeira porta;
esmaga, enquanto são novas, as sementes más de tão súbita doença, 
e que o teu cavalo, logo no começo, resista a avançar.
Verdade seja que a delonga dá forças; a delonga amadurece as tenras uvas
e transforma em searas robustas o que antes era erva;
a árvore que fornece abundante sombra ao viandante 
era, no momento primeiro em que foi plantada, um arbusto; 
podia, então, ser arrancada à mão da face da terra;
firma, agora, raízes nas profundezas, com toda a sua força.
Como é aquilo a que tens amor, observa-o com espírito ligeiro 
e livra o teu pescoço do jugo que há-de feri-lo.
Contraria logo ao princípio; tarde vem o remédio, 
quando o mal ganhou força em prolongadas delongas. 

Remédios contra o amor, Ovídio. 

Mão amiga, a minha própria - e logo a direita que é de todas a mão mais amiga que tenho - ciente que se traçam por aí planos de conquista e destruição desse órgão inútil que carrego do lado esquerdo do peito, tirou da estante, daquela parte que fica por trás dos livros que as visitas podem saber que leio, o Remédios contra o Amor e, com pouca subtileza, devo admito-lo, pousou-o sobre o iPad. 
É verdade que foi escrito por volta de 70 a.c., mas isso só faz dele um remédio milenar. Confiável, portanto. 

domingo, 5 de junho de 2016

O mais bonito conto de Nabokov

Tendo regressado da aldeia à sua mansão a pé pela neve escurecida, Sleptsov sentou-se a um canto, numa cadeira estofada que não se recordava de ter usado antes. Era o tipo de coisa que acontece após uma grande calamidade. Não é um irmão, mas um conhecido de acaso, um qualquer vizinho da região a quem nunca se prestou grande atenção, com quem, em tempos normais, mal trocamos uma palavra, quem nos conforta com sensatez e gentileza e nos entrega o chapéu que deixámos cair depois de terminado o serviço fúnebre, quando vacilamos de desgosto, os dentes batem, as lágrimas cegam os olhos. O mesmo se pode dizer de objectos inanimados. Um quarto, mesmo o mais acolhedor e absurdamente pequeno na ala menos usada de uma grande casa de campo, tem um canto não vivido. E foi num canto desses que Sleptsov se sentou.
Natal, Contos Completos, Volume I, Teorema. 

Nabokov não sabia apenas das palavras e é por isso que é um escritor inigualável. Sabia das coisas. Das pequenas coisas. Das nanocoisas. 
Aquele degrau junto à soleira da porta. A arca encostada à parede do hall de entrada. Uma mesa redonda de café. A laje da casa de banho. Os lugares que o corpo escolhe para se deixar cair quando  o choque, a dor, a náusea, fazem com que, ainda que por breves instantes, não se consiga caber em nenhum sítio conhecido.

To be a rock and not to roll


sábado, 4 de junho de 2016

Diário de Bordo

Talvez por ação das ampolas de sargenor que tenho tomado para tentar disfarçar, se não o cansaço, pelo menos o tédio, esta manhã acordei antes de todos dominada pelo surpreendente desígnio de querer trabalhar. Considerando que o meu emprego é dominar o mundo, conquistar os mares e espalhar o terror, patati patatá, ocorreu-me que talvez pudesse começar por pilhar uma embarcação que, muito ao longe, avistei da minha janela.
Fui acordar Anhrminir que ressonava sonhos conturbados deitado na rede que instalou na frente da porta do meu quarto e ordenei-lhe que acordasse a tripulação. Andhriminnir protestou com os mesmos grunhos incompreensíveis que usa para manifestar todas as três emoções ao seu alcance, mas depois de lhe ter virado a rede ao contrário, atirando-o para o chão, lá se dignou obedecer.
Uma hora depois - estes piratas estão impregnados de manias burguesas como duches matinais, máscaras de beleza e outras excentricidades - estávamos todos sentados no convés do Navio, em redor de uma mesa de trabalho. 
Apesar do entusiasmo que coloquei na defesa do projeto e da utilização discursiva de muitos hey oh e arrrrg, a tripulação dividiu-se entre a inexpressividade e o ar levemente assustado de quem escuta uma alma perturbada. 
Quando terminei, os primeiros a falar foram os ex presidiários que, representados por Gualtiero, o Italiano, fizeram saber que, agora, não trabalham aos sábados. Seguiram-se os bloggers que pediram a palavra para dizer que aos sábados de manhã estão demasiado ocupados a fazer posts com fotografias de imaculados lençóis de riscas azuis e tabuleiros com pequenos almoços compostos por mueslis e fruta em taças de barro com florinhas. Os poetas fingiram nem sequer ter compreendido e disseram-se que se queria que escrevessem uma ode tinha de esperar pelo domingo à noite que é quando a musa angústia mais favorece as suas causas. 
Andhruminir e o papagaio Polly, nos últimos tempos inseparáveis amigos, dormitavam o outro sobre o um encostados a um mastro próximo.
A embarcação que decidi assaltar era agora um minúsculo ponto intermitente perdido no horizonte. 
Endureci a voz e disse-lhes que ainda que não me acompanhassem, iria eu, acompanhada pela minha espada, saquear aquele barco.
Um coro em acelerada dispersão desejou-me boa sorte. 
E agora, para salvar a dignidade, estou aqui no meio do mar, enfiada num bote, com este chapéu de capitã quentíssimo e uma espada demasiado pesada, a fazer de conta que ataco a reles traineira de pesca que tive a má sorte de ver da minha janela quando ainda estava com vontade de trabalhar. 




O bolero de Crimson

Abençoadas as manhãs de baunilha nesta varanda onde falta um espanta espíritos a tilintar a brisa que me gela as pernas e faz mais quente o café derramado sobre os joelhos.  
King Crimson toca para mim o seu bolero. 
Na praia, daqui a pouco, hei de apanhar  o que a maré me tiver devolvido.  
Nada pode correr mal num dia que nasce de uma manhã assim.


quinta-feira, 2 de junho de 2016

Do verbo querer


Salvamentos

No linho da cama que balouça sobre a maré vimos a noite dissolver o dia. Estendes sobre os meus pés nus uma manta de constelações e, ao ouvido, contas-me estórias do oriente. 
Falas-me do jardim de laranjeiras, dos cavalos alados de um vizir e da princesa moura que se aprisionou nas ameias de um castelo longínquo. 
As gaivotas vêm abrigar-se na tua sombra lunar e eu sei, daquela forma como se sabem as coisas que são, que a minha adaga, esta noite, não será manchada pelo teu sangue.