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terça-feira, 29 de junho de 2010

Pretérito Mais-Que-Imperfeito

O passado é a matéria da densidade das relações humanas.
Não é de futuro que se trata quando as pessoas decidem relacionar-se. Na verdade, labora-se na ânsia de armazenar uma história comum.
A inabilidade de conexão com um ou outro é fruto da falta de uma afeição xifópaga a algo em comum, que é sempre passado – o que se foi, o que se fez, do que sempre se gostou.

Por isso, as amizades antigas são adoradas como sagradas. Pensa-se sempre que nunca serão conseguidas novas relações com o mesmo conforto - ainda que essas amizades já tenham desbotado à custa da falta de afinidade que deriva da falta de convivência. E mesmo que esses amigos antigos, siameses no pretérito, se tenham metamorfoseado em estúpidos, ou tenham simplesmente desvoluído: ainda relativamente a esses é mantido um respeito reverencial, em nome da memória partilhada que pode ser de brincadeiras de infância ou bebedeiras de juventude.

O apego torna difícil deitar fora aquilo que já não tem serventia. Mas é imperativo fazer a limpeza.



segunda-feira, 14 de junho de 2010

Memória


memória (me-mó-ria)
s. f.
Faculdade de reter idéias, sensações, impressões, adquiridas anteriormente.
Efeito da faculdade de lembrar; a própria lembrança.
Recordação que a posteridade guarda.
Dissertação sobre assunto científico, artístico, literário, destinada a ser apresentada ao governo, a uma instituição cultural etc.
Dispositivo dos calculadores eletrônicos, que registra sinais, resultados parciais etc., que são consignados no momento oportuno para fazê-lo intervir no seguimento das operações: discos de memória.
Informática Unidade funcional que pode receber, conservar e restituir dados.
Informática Memória convencional, a que é armazenada segundo os padrões de um programa altamente abrangente.
De memória, sem a ajuda de notas ou livros, só pela lembrança.
Em memória de, em homenagem a alguém que já morreu.
S.f.pl. Obra literária escrita por quem presenciou os acontecimentos que narra, ou neles tomou parte.
Memória principal ou memória RAM, v. RAM.
Memória secundária, meio de armazenamento de dados e instruções não volátil (p. ex., disquetes), usado para que estes se preservem (p. ex., quando o computador é desligado).

In
Dicionário web

Nessa grande, longa, imensa noite escura que fizeste abater sobre nós, há um luar que insiste em banhar-me todas as noites na minha cama:

A memória da tua expressão de Fabergè, enquanto me pintas de vermelho escuro as unhas dos pés.
A noite em que dançaste comigo no salão vazio de um navio ao largo de Istambul.
Uma entremeada cuspida na feira popular de Lisboa.
Dois corpos febris e verdes numa cama de rede de uma varanda de hotel noutro continente.
Os vários retratos que me pintaste.
A tua mão sobre a minha a ensinar-me o traço perfeito de uma saia de bailarina em aguarela.
A madrugada em que corrigiste a minha bailarina para me tentar convencer que tinha sido eu a criá-la.
O final de tarde em que a pressa de me abraçar quase te deixou morrer debaixo de um autocarro.
A tua permanente capacidade de te surpreenderes com cada um dos meus mais pequenos fracassos.
(...)

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O date que quase apareceu de táxi (inspirado num comentário da Estrelita que não posso linkar porque não sei como é que isso se faz)

Ano da Graça de 1997.
Cuca e Estrelita, recém-chegadas à capital, decidiram que estava uma noite demasiado boa para ficar em casa.
Sucede, porém, que Cuca e Estrelita não conheciam ninguém em Lisboa e a ideia de saírem as duas à descoberta das maravilhas da noite Lisboeta, a solo, (ainda) não lhes agradava.
Foi então que Estrelita e Cuca decidiram arranjar um date que, com glamour e sentido de estilo, as viesse buscar a casa e as introduzisse no fantástico mundo da Lisbon by night.
A organizada Estrelita tinha uma agenda com números de telefone de toda a gente que conhecera na vida (e eram muitos, tantos, demais) e depois de um brainstorming de um minuto e meio direccionado para a temática “arranjar um date decente para já, agorinha mesmo, em Lisboa” Estrelita e Cuca resolveram sair para a rua, enfiar-se na cabine telefónica em frente à mítica casa Estrelecuquiana da Roque Gameiro e explorar os números da famosa agenda.
Considerando que era sexta-feira à noite e que a agenda tinha números antigos, criteriosamente pré-seleccionados pela ordem “do mais palhaço para o mais chato”, havia uns quantos que nem os pais sabiam deles, outros que não pagavam a conta do telefone, alguns que entretanto se tinham casado, um que não se lembrava quem era Estrelita embora estivesse disposto a um blind date, tinha era que ser individual…e…dez minutos depois…
Encostadas à porta da cabine telefónica.
Estrelita, a desresponsabilizar-se:
- Pá, eu tenho ideia que ele era divertido, mas já não o vejo há uns anos.
Cuca, a desconfiar:
- Mas e o amigo? Conheces o amigo?
Estrelita, a tentar evitar o ataque de pânico:
- Não, mas se é amigo dele deve ser porreiro! Ele até disse que vinha no carro do amigo!
Cuca, a sentir o ataque de pânico ganhar terreno:
-E o amigo o que faz na vida?
Estrelita, a dividir o olhar entre as unhas e as estrelas:
- er…pois…ele disse-me ao telefone que o amigo era taxista.
Cuca e Estrelita, num momento de paragem cósmica, entreolham-se geladas e partilham uma imagem de horror.
Em coro:
- Ai! Ai! Meu deus! O que fomos fazer! E se eles aparecem de táxi?!!
Estrelita, imbuída de um falso optimismo:
- Não! O meu amigo não me fazia isso!
Cuca, totalmente desvairada, a imaginar a sua inexistente imagem social na capital desfeita em mil, igualmente inexistentes, pedaços de reputação glamourosa.
- Estás a gozar comigo? Qual amigo? Acabaste de dizer que mal conheces o gajo!
Fim de cena:
Sexta-feira, noite maravilhosa, dois minutos antes da hora marcada, no local do encontro Cuca e Estrelita agachadas atrás de um carro, a ver se o date vinha de táxi ou à civil, para decidirem se se esgueiravam cobardemente para casa ou exibiam os orgulhosos saltos de quinze centímetros.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Os dias vodka red bull - (Comentário ao post da Estrelita: Lisboa, Setembro 1997)



Estrelita não exagerou nada. Era um papel de parede pior que horrendo. Acho que agora se chamaria art decor. Na altura, quando tínhamos que viver embrulhadas nele, era só tenebroso. Especialmente quando se estava de ressaca. E havia muitas ressacas naqueles tempos, ou não fossem eles os dias vodka redbull.
Também foram os dias das Polaroid nas paredes, do alucinante ritmo da noite de Lisboa, das massas italianas com vinhos manhosos, das camas que se partiam misteriosamente, do elevador a que atribuímos um nome próprio.
Dos Verve para Estrelita e dos Alphaville para mim.
Foi nessa casa mítica que percebemos que a normalidade não queria nada connosco. E que, em retaliação, passámos a não querer nada com ela.
Acho que os nossos gentis senhorios teriam ficado surpresos se soubessem que, à noite, as meninas-doutoras se chamavam Maria e Madalena, eram enfermeiras ou hospedeiras (e até chegaram a ser engenheiras) e tinham uma especial propensão para se enganar nos números, na hora de deixar o contacto telefónico.
Ao perceber que nas memórias dessa casa nunca foi inverno, como se tivéssemos caído num milagre dos trópicos que se prolongou por quase dois anos, ocorre-me que devemos ter sido muito felizes.
Apesar das tragédias que nos iam acontecendo, mas das quais ainda tínhamos a capacidade de rir à gargalhada por, até as tragédias, terem o charme exótico das coisas novas. Também ajudou o facto de ser impossível levar a sério qualquer drama enquadrado por aquele tétrico papel de parede.
Fomos felizes da maneira como que se é feliz quando nem sequer se pensa nisso.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

A minha vizinha da frente


Consigo ver-te da minha sala quando te penduras na janela da cozinha a fumar um cigarro.
Consigo ver a tua vida porque apesar da forma meticulosa como decoraste a casa, esqueceste-te de comprar cortinas.
Não tens mais de trinta e dois anos. No passado, leste todos os livros que pudeste, namoraste com todos os homens que quiseste, acreditaste no futuro que te vaticinaram.
Agora, tens um daqueles maridos dos anúncios, com um carro das revistas, que faz sempre mais barulho do que os outros quando o seu dono, teu marido, sai de casa às oito da manhã vestido com os fatos que lhe escovas na varanda do quarto.
O teu cabelo aloura proporcionalmente à velocidade com que emagreces. Aumentas o tamanho dos decotes para que o dono do carro perceba que tem uma mulher ao lado. Mas o dono do carro está sempre ao telemóvel.
Chegas a casa antes dele para lhe cozinhares um jantar de Japanese fusion que há-de ser comido com algum desdém e duas horas de atraso. Sem te avisar.
Sentas-te à mesa e fazes o teu melhor sorriso enquanto lhe perguntas como foi o dia dele. Aprendeste a fazer isto com a tua mãe. Que aprendeu a fazer isto com a tua avó.
O teu marido nunca te pergunta como foi o teu dia. Não lhe interessa. A ti também já não te interessa. O teu dia começa no instante em que ele toca à campainha por não se dar ao trabalho de tirar as chaves do bolso. O porta-chaves custou-te um mês de salário ganho com um emprego que ninguém percebe porque manténs.
Todos os dias, depois do jantar, ele deita-se no sofá a assistir a um programa de televisão enquanto pensa numa maneira de ganhar ainda mais dinheiro. Tu escondes os pratos na máquina de lavar louça que a empregada há-de ligar no dia seguinte. Sentas-te ao lado dele. Insistes numa tentativa falhada de carinho de fim de dia. Levantas-te. Voltas à cozinha. Abres a janela e penduras-te a fumar um cigarro.
É nesse instante, em que o dia acabou de começar e já antecipas o prenúncio do seu final, que te ocorre que as noites são cada vez mais curtas. Que o teu marido preenche a sua ausência com os gadgets com que enfeita a casa. Que nunca vais ter um filho porque não condiz com a decoração da sala nem é compatível com automóveis desportivos dois lugares. Ou Barbies humanas.
Às vezes, aos fins-de-semana, ele desliga o telemóvel para receber os amigos. Ficas com a sala cheia de pessoas que, depois de te estenderem os casacos para que os pendures, se esquecem que existes até chegar o momento em que o teu marido lhes chama a atenção para ti com uma história doméstica engraçada. Fazes parte de um número de circo. És a partner do dono do negócio. Ganhas uma taça de Champagne.
Sabes que se te queixares o suficiente terás um novo Rolex que enviarás desapaixonadamente para o cofre de um banco onde fará companhia a uns quantos Chaumet. Ou uma viagem a um país distante onde não vais ter com quem partilhar o fascínio da tua primeira visão do monumento lá do sítio, porque o teu marido vai estar uns passos atrás a ultimar os pormenores do negócio que te pagará a próxima crise conjugal.
Também sabes que, se te queixares demais, um dos telemóveis para onde ele agora liga às tuas escondidas, passará a tocar na (já só dele) sala de estar. A avisar que está atrasado.
Acho que esse teu esquecimento na compra das cortinas é uma mensagem inconsciente, trancada numa garrafa que atiras ao mar. Todos os dias.
Fumas o cigarro com a expressão de um animal encurralado entre um sonho e um pesadelo sem que consigas decidir qual é a realidade e qual é a mentira. Os livros que leste não te ensinaram a viver na desilusão que se instala quando se desvenda, por dentro, o cenário dos filmes.
Às vezes, vejo-te, pendurada na janela da cozinha, a brincar com a gravidade. Conheço demasiado bem o teu olhar.
Se não tens cuidado, um dia destes ainda cais.