segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Fraternidade

Esta manhã, quando estava sentada à mesa do pequeno almoço a beber sumo de laranja, Gualtiero, o Italiano, que agora está convertido numa espécie de secretário pessoal e assim permanecerá até arranjar um mainato mais apropriado, veio avisar-me que hoje é o aniversário da minha irmã.
Pedi imediatamente o meu papel de carta roubado do Ritz e comecei por escrever a seguinte mensagem:

Querida irmã,

Comprovando o axioma de Tolstoi na abertura das páginas de Karenin, somos iguais a todas as outras famílias. Nunca agradecemos a normalidade porque a concebemos como um direito natural. Mas é a fonte do nosso mais oculto poder. Aquilo a tu chamas o poder do sangue. Aquilo a que eu chamo a rede. O factor invisível subjacente a todas as equações de risco. A estrutura de que são feitas as asas. A consistência do chão que suporta os passos. A mão que embala o berço. O gene do amor partilhado no ADN. 

Era uma carta sincera. Mas entretanto fui interrompida pelo bárbaro cozinheiro Viking que, como é seu hábito, plantou-se atrás de mim com a cabeça encostada ao meu pescoço e, dispensando os níveis mínimos de descrição, começou a soletrar a minha mensagem enquanto ia tingindo de perdigotos o fino papel do Ritz.

Quando finalmente terminou, olhou para mim com um ar seriamente preocupado e perguntou-me:

- Què?? Precisas dum rim????

Perante isto, achei mais conveniente limitar-me a um SMS com a palavra parabéns seguida por cinco ou seis pontos de exclamação...



domingo, 27 de setembro de 2015

Avatar

Seremos nós melhores do que o nosso Avatar?

Lua de sangue



Nada sei sobre raios de sol filtrados sobre a atmosfera da terra, eclipses lunares e o perigeu. 
Sei apenas o que me foi dado a conhecer. 
Vi a lua rir-se de nós na noite em que os teus dedos tocaram no meu pulso e foi o mundo que se eclipsou.
Vi-a vigiar-nos lá do cimo da montanha quando virámos do avesso a grande ampulheta do tempo para multiplicarmos por mil um único amanhecer. 
Vi-a enviar-nos as estrelas que caíram pela baía e nos incendiaram os ossos.
Vi-a ficar azul na imóvel noite em que em vão nos esperou numa praia que já não existe. 
Sei, de saber feito, que há no mundo um lugar que não voltou a ser visitado pela lua e onde os homens adormecem na fria escuridão do esquecimento.
Se amanhã a lua se veste de vermelho, é porque de sangue é também o crime dos amantes.
Foi isto que me ensinou a lua. 

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Demasiado

A partir de uma certa altura foi tudo demasiado. A casa era desproporcional ao tamanho dos corações. Esconderam o vazio atrás das estátuas de bronze e embrulharam as noites no linho egípcio. Ninguém dançou a música que saiu das colunas de design. A porcelana serviu pratos requentados. Foram anfitriões de festas para desconhecidos. Exportaram a solidão para todos os continentes e regressaram sempre com uma quantidade superior. Uma noite, na ópera, ficaram presos no palco. 
Até o tempo foi demasiado quando, por fim, o pano acabou por cair. 
Coerentemente, era feito da mais pura seda.
Amaram como indigentes. 
Morreram como reis. 

The man with the blue guitar



"
I

The man bent over his guitar,
A shearsman of sorts. The day was green.

They said, "You have a blue guitar,
You do not play things as they are."

The man replied, "Things as they are
Are changed upon the blue guitar."

And they said then, "But play, you must,
A tune beyond us, yet ourselves,

A tune upon the blue guitar
Of things exactly as they are."

II

I cannot bring a world quite round,
Although I patch it as I can.

I sing a hero's head, large eye
And bearded bronze, but not a man,

Although I patch him as I can
And reach through him almost to man.

If to serenade almost to man
Is to miss, by that, things as they are,

Say it is the serenade
Of a man that plays a blue guitar.

III

Ah, but to play man number one,
To drive the dagger in his heart,

To lay his brain upon the board
And pick the acrid colors out,

To nail his thought across the door,
Its wings spread wide to rain and snow,

To strike his living hi and ho,
To tick it, tock it, turn it true,

To bang from it a savage blue,
Jangling the metal of the strings.

(...)"

Wallace Stevens


quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Notícias do mundo real

Foi então que comecei a reparar nas coisas e dei conta do seguinte:
1. No primeiro fim de semana de outubro haverá eleições na pátria de Pessoa (ia escrever Camões mas a rima soou-me intoleravelmente mal). Fiz umas perguntas sobre o assunto e percebi que não conheço ninguém que queira, de facto, nenhum dos partidos elegíveis à frente dos destinos do país. Segundo me explicaram, a ideia consiste em votar apenas para impedir que ganhe um outro que detestemos com maior intensidade. 
2. Há uma cadeia de lojas de eletrodomésticos que distribui pelas caixas do correio panfletos onde anunciam por €30 umas máquinas para Nespresso iguais a uma que a mim me custou €100.
3. A empregada doméstica que trabalha para mim há três anos tem um filho.
4. O meu cão dá-se por qualquer nome que lhe chame desde que use a entoação certa. Responde melhor ao nome Pirata do que ao seu nome de registo. 
5. Vai estrear um filme sobre uma pessoa chamada Anselmo Ralph. De acordo com o Google é um cantor de cuja discografia faz parte uma música com os seguintes versos: "meu telefone e email tu tinhas o pin/ dei-te mil motivos para confiares em mim/ mas nada disso foi suficiente pra ti".
6. Nacionais de um ou dois países para onde não se vai de férias, deixaram de ter condições para existir nessas terras inóspitas e mudaram-se para a Europa. A Europa não sabe o que lhes fazer. Os Estados Unidos da América ofereceram-se para acolher parte dessas pessoas. Suponho que alguns sul-americanos se sintam discriminados mas ainda não me debrucei sobre este assunto.
7. Já não é recomendável beber leite. O leite, agora, é inimigo dos nutricionistas. Em contrapartida, parece que é obrigatório beber pelo menos um copo de vinho. 
8. Robin Williams morreu. Nabovok parece que também.
9. Syriza, contrariamente ao que pensei depois dos comentários políticos que ouvi e dos posts de uma parte da blogosfera que li, não é o nome de uma associação terrorista grega. É um partido político duas vezes democraticamente eleito.
10. O 5 de outubro deixou de ser feriado. Era 5 de outubro, não era? 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Diário de Bordo

Ando há três dias muito entretida com um maravilhoso engenho que um dos ex presidiários trouxe de presente a Andrhirmnir, o cozinheiro viking, após umas breves férias no seu antigo estabelecimento prisional. 
É uma coisa feita em plástico branco e transparente que tem uma espécie de cúpula em espiral. Liga-se a coisa à corrente, pressiona-se metades de laranja contra a espiral e depois, como que por magia, nasce sumo de laranja na peça em forma de jarro que fica na base do engenho.
Apesar de nunca ter perdido muito tempo a pensar no assunto, por alguma razão inexplicável, estava convencida que o sumo de laranja natural era uma coisa que se fazia nas fábricas através de um complexo sistema de composição química.
Fiquei tão entusiasmada com a máquina que confisquei-a imediatamente ao viking e mandei comprar cem quilos de laranjas para me abastecer de um barril de sumo. Quis recompensar o ex presidiário dando um jantar em sua honra se não pela invenção do instrumento, pelo menos pelo feito de o ter descoberto. Mas mudei de ideias quando o resto da tripulação me garantiu que aquilo é uma coisa que se obtém em qualquer bomba de abastecimento de combustível à troca de uns cartões de pontos que também não sabia existirem e que se ganham comprando o dito do combustível. 
O episódio não me retirou o prazer de fabricar o meu próprio sumo de laranja, inchando-me com uma euforia autosuficente que imagino semelhante à que sentem as pessoas que conseguem caçar o seu próprio jantar. 
Contudo, acordou em mim a leve suspeita de uma certa incapacidade de sobrevivência no chamado mundo real, após tantos anos, digamos que quase todos, de uma existência vivida dentro das páginas de um livro. 
Enquanto espremia compulsivamente o décimo quilo de laranjas, movida por uma curiosidade mórbida, tomei a arriscadíssima decisão de fazer uma viagem exploratória à realidade dos Homens. Não que tenha alguma intenção de viver nela, que as notícias que me chegam estão longe de me provocar tal inclinação, mas apenas para me certificar de que não perco nenhuma maravilha.
Ainda não descobri o melhor processo de fazer tal expedição já que até eu, com as minha evidentes limitações, sei que não posso chegar a um aeroporto e pedir um bilhete de avião para a realidade. Ainda assim, depois de expor as minhas angústias a esta brava tripulação Pirata, segui o conselho da maioria e comprei uma televisão. De acordo com o que me disseram, ninguém está habilitado a sobreviver no mundo real se não consumir, pelo menos, quatro horas diárias de televisão por cabo.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Dos imprevisíveis resultados da infantilização dos animais domésticos

Quando o nosso cão prefere ver desenhos animados na televisão do que correr atrás da bola.

domingo, 20 de setembro de 2015

Terras



Um blog pode também ou sobretudo servir como trilho virtual dos caminhos interiores da nossa existência. O que é tanto mais útil quanto se tende a treinar o esquecimento com o afinco decisivo do funambulista.
Fui ver onde estava há três anos atrás. Dizia eu, neste mesmo dia de setembro, ter chegado há dois dias a esta terra. À décima sexta casa. 
Lamentava ter chegado sem alma.
Três anos volvidos e outras duas casas depois, percebo que foi precisamente isso, uma alma, aquilo que me deu esta terra. 

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Revisited

So leave everything you've stolen that you can't give back,
and don't replace what you've been missing until you know what you're lacking.
Leave everything you've borrowed and kept for yourself.

You can’t unbreak our broken leases holding on to broken pieces, so return them!
No guilt, no sorry speeches.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A estranha fé dos ateus



Nós, aqueles a quem foi negado o dom de acreditar em qualquer deus, acabamos mais tarde ou mais cedo por desenvolver um sistema alternativo de crenças igualmente destituídas de senso. Se formos 
forçados a defender-nos da acusação de incoerência, chamamos-lhe instinto. Mesmo que saibamos estar a mentir.
Por exemplo, hoje. Ao cair da noite, os primeiros indícios do outono no rosto, as luzes a acenderem-se lentamente nas janelas vizinhas, os Koop nas colunas de som a dizerem que "in another place i see a different you", três novos Nabokov sobre a mesa, o cheiro da baunilha a tomar conta da casa, o cão adormecido sobre um pé descalço, nenhuma pata de traça dentro do peito. 
E sabe-se que nada poderá correr mal. 

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Ode ao Desamor (parte I)

Ah,  a felicidade de não te amar.
O céu que se eleva na manhã.
Esse traço da liberdade nas penas de um pássaro anónimo.
Duas gotas de chuva sem história
A desfazerem-se na carne do pulso despido.
As ilimitadas impossibilidades do arco-íris.
O olhar esquecido que o espelho cumpriu.
Um cão vadio que escala a cerca de pedra.
A perspetiva do girassol para lá da sombra.
Acordes mudos num piano longínquo.
Três versos sobre a promessa de nenhum reencontro.
O lento crepúsculo nesta sala imóvel
Onde os objetos não sabem quem és.
Essoutro esboço de uma madrugada limpa.
Ah, a felicidade de não te amar.





segunda-feira, 14 de setembro de 2015

À atenção do Pedro Mexia

Há um espaço vazio na blogosfera.

Paira o fascínio e a vergonha permanece

(...)
Durante todas as tardes de um Inverno
Mergulhei nesse delíquio de um instante.
Depois, acabou. Perdi a lembrança.
Ganhei saúde. Aprendi a nadar.
Mas qual criança que uma bruxa forçou 
A matar-lhe com a língua pura a sede abjecta
Corrompi-me, aterrado, seduzido,
E por mais que o doutor me dissesse curado
Do que, segundo ele, era a minha doença,
Paira o fascínio e a vergonha permanece.
(...)

Nabokov, in Fogo Pálido, Relógio D'água 

Ao acaso

À noitinha, faziam pequenos concursos para decidirem qual dos dois seria mais cruel na sua invulnerabilidade ao amor. Ele fingia sempre que a deixava ganhar. Ela fazia de conta que não sabia ser a misericórdia já uma prerrogativa dos vencedores. 
Pendurado na sua nuvem, Eros encolhia os ombros, fechava os olhos e disparava ao acaso. 

domingo, 13 de setembro de 2015

Quem me lava a areia dos pés

Somos todos convalescentes de qualquer mal.
Eu escolhi convalescer da saudade. 
Daquela que se espalha com o cheiro dos limos nas rochas da praia. 
Da que vive dentro das lapas vivas. 
Da que se esvai pelo ralo, com a praia, quando no final do dia já não é ele quem me lava a areia dos pés.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Está aberta a época dos Muffins

Esta manhã, enquanto eu e Andrihiminir, o cozinheiro Pirata, fazíamos a lista das compras na cozinha do navio, Gualtiero, o Italiano, ouviu-me mandar o cozinheiro comprar vinte quilos de farinha e meia dúzia de galinhas poedeiras e perguntou-me para que diabo queria eu tudo aquilo. 
- já leste o Moby Dick?
- claro que não. Na minha vida toda fui apenas Pirata e presidiário. Só li planos de ataque e de fuga. Nem sabia que as baleias se podem ler.
Prossegui ignorando este último comentário.
- bem, no livro, o protagonista, Ismael, diz e cito de memória "sempre que sinto um sabor a fel na boca; sempre que a minha alma se transforma num novembro brumoso e húmido; sempre que dou por mim a parar diante de agências funerárias e a marchar na esteira dos funerais que cruzam o meu caminho; e, principalmente, quando a neurastenia se apodera de mim de tal modo que preciso de todo o meu bom senso para não começar a arrancar todos os chapéus de todos os transeuntes que encontro na rua - percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível".
- E então?
- já deves ter ouvido isto. É a citação mais conhecida da obra!
- não. Nunca. Aposto que está escrita na primeira página.
- humm... Como podes"saber isso se nunca pegaste no livro? 
- as citações mais conhecidas estão na primeira página que é a única que a maioria das pessoas chega a conhecer.
-  ...
- mas e então? Ismael ia para o mar fugir à loucura. E as tuas galinhas poedeiras que têm a ver com isso?
- Eu não posso subir a bordo de um navio sempre que a minha alma ameaça transformar-se num novembro brumoso, Gualltiero. Já vivo num navio.
- e as galinhas??
- ovos para fazer muffins, evidentemente...

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Caves

Que atire a primeira pedra quem nunca ficou escondido dentro dessa especial forma de cave que há em todas as salas de estar da existência. A ouvir os passos dos outros por cima da cabeça. À espera que um qualquer perigo abstrato se dilua no tempo. A marca da escuridão nos dedos. Quase translúcidos. O imaginado percurso da rotina cada vez mais alheia. A falta de memória do suposto perigo que nos enclausurou. E a cor dos dedos, ali, a acusar-nos do lance de escadas que não é ainda hoje que subimos. 

Aviso

Este é um blogue de dor de corno. 
Se ninguém me partir o coração dentro de um par de meses, terei de começar a postar receitas de bolos.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Estação Pateta

O corpo foi abrutamente arrancado à estação pateta, mas temo que o espírito tenha ficado refém. Volvidos quase dez dias, o horário da maré ainda é a clepsidra dos instintos. O cérebro lentificou-se no  maravilhoso limiar da paralisação. É certo que consigo ler versos mas olho na direção dos livros com a mesma expressão entediada do mais embrutecido dos iliteratos. O firmamento ainda não se foi embora do tecto da minha varanda e consome-me demasiado tempo. Não formulo um pensamento enquanto o olho. 
Ouvi dizer que no mundo real há objetos que desabam. Sei que é aqui ao lado, mas parece-me infinitamente longe.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Islands

Como se tem uma caixa de música, uma casa na árvore, um jardim de inverno, eu tive uma Ilha.
Faz hoje três anos que a deixei.
A Ilha ainda me tem.