sexta-feira, 30 de setembro de 2011
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
and so on, and so on...
Eu explicar-te-ia que não há nada que possas dizer-me que estejas a sentir agora que não tenha já ouvido da boca de outros. Que a estranheza que sentes e engrandeces não é mais do que um efeito que tem como naturalíssima causa o facto de eu ser uma pessoa estranha. Que só acreditas que estamos predestinados um ao outro porque toda a gente pensa que está predestinado na minha existência. Que se faço este ar entediado não é porque não creia na verdade do que dizes mas porque sei que em breve deixará de ser verdade. Explicar-te-ia que a beleza é surpresa que o nosso cérebro anula ao fim de poucos dias. Logo que passa a acreditar que tudo continuará lá no dia seguinte. Que depois de superada a euforia da auto-satisfação pela (apenas) aparente improvável conquista, surge uma serenidade visionária. Que, num processo inverso ao das miragens, se tornam nítidos os contornos dos defeitos que sempre estiveram ali à vista. Que se entretanto tivesses o azar de eu me interessar por ti faria tudo o que pudesse para te convencer que sou detestável. Que não terias inteligência para discernir uma verdade entre artifícios. Que mesmo que tivesses essa inteligência não terias a paciência. E que se tivesses a inteligência e a paciência não terias a coragem. E que se por milagre tivesses essas qualidades todas seria eu quem se iria imediatamente embora.
Depois de eu te explicar isto, tu entenderias tudo. E depois acreditarias. E desistirias. E levantar-te-ias da mesa e devolver-me-ias os dados.
Sim, poderíamos pousar os dados no feltro verde da mesa e passar já para a fase final do jogo.
Mas como não fui eu que escrevi as regras e sou demasiado honesta para fazer batota teremos que perder imenso tempo a atirar os dados e a empurrar as peças pelas casinhas enquanto fazemos de conta que este jogo tem um propósito nobre. No processo, gastaremos todas as fichas que nos deram à entrada do casino e talvez ainda aquelas que o nosso sistema de crédito nos permitir.
Depois tu desistes. Levantas-te da mesa. Devolves-me os dados.
Premonições kitschianas
O vinho superou em muito a qualidade da comida e nós continuámos sentados a adiantar as horas numa tortura conjunta amplificada por um programa de karaoke.
No final da noite, ele subiu ao palco e eu apostei cinco euros no My Way do Frank Sinatra.
Quando pegou no microfone e anunciou que a música era minha paguei a aposta ainda antes do primeiro acorde.
Numa voz impossível e com expressão de sofrimento ouvi-o cantar em sotaque brasileiro:
tou fazendo amor com outra pessoa,
Mas meu coração vai ser pra sempre teu…
O kitsch ficava-nos muito bem.
Eu ri-me muito. Ele também se riu. Em nosso redor vinte outras pessoas riram-se com ainda mais vontade.
Jamais uma confissão pública de infidelidade foi tão confundida com uma declaração de amor.
Talvez por nunca me ter interessado pela gramática, naquela noite, não consegui perceber que nesse presente do indicativo seguido de um futuro imperfeito estava contida toda a verdade da nossa existência.
“E depois acabou uma ilusão que eu criei, a emoção foi embora e a gente só pede para o tempo correr, lá, lá”
segunda-feira, 26 de setembro de 2011
A Frau
Natureza versus Natureza
Depois, a planície irrompeu pela rocha e abriu-se, imensa, à minha frente.
Para competir com a natureza, os homens inventaram um mecanismo chamado MMS que, além de várias outras utilidades que lhe adivinho, tem a capacidade de secar os rios, fazer explodir as rochas, mover ilhas e atravessar oceanos.
Foi assim que a natureza foi derrotada por uma fotografia.
Sem inscrição, mensagem ou explicação.
- Um homem montado no seu cavalo.
às 5, chá.
- ...
- é. é assim, filha.
- ... sempre?
- sim, linda. o homem que ama não é o homem que volta. é aquele que, simplesmente, não se vai embora.
domingo, 25 de setembro de 2011
quinta-feira, 22 de setembro de 2011
Não tinha pilhas no comando, tá?
O meu cérebro não se importa nada de confessar que o conteúdo do livro retido foi percentualmente inferior ao do programa.
Já a minha alma, olha de esguelha para o cérebro, encolhe os ombros de vergonha e insiste no seu papel de irmã siamesa permanentemente desavinda.
recordo a manhã para aguentar a noitada de trabalho
- olha, uma máquina de nuvens!
- não querida, aquilo é uma fábrica...
- não! não! é uma máquina de nuvens!
terça-feira, 20 de setembro de 2011
No more boleros
No ganas nada en intentar,
el olvidarme,
durante mucho mucho tiempo
en tu vida yo voy a vivir.
No No, no ganas nada en intentar el olvidarme.
No No ganas nada al intentar
O som proibido que inunda a sala. O gesto de surpresa que derruba a tela. Uma mancha de tinta prateada entre os dedos. O telefone a acordar para outras vidas. A mosca que bate de encontro aos vidros da porta. Desesperada. A estatelar-se na liberdade. Uma música que sobrevive à esterilização. Os passos na direcção do som. Maldizer todas as formas de desmaterialização. A dificuldade de aprisionar em caixotes o que não é objectivável. Uma vela acesa na qual se tropeça. Perceber que se chegará sempre depois do som. Queimada. A canção indestrutível. Uma promessa? Uma praga?
E o off finalmente ao alcance dos dedos. E o olhar preso na mancha de tinta prateada. E o telefone a desligar-se. Em vez da música.
Abrir a porta à mosca.
Para que voe livre na rua? Para que se afogue na chuva?
Uma promessa? Uma praga?
Detalhes.
segunda-feira, 19 de setembro de 2011
a mais gélida das guerras frias
até àquela segunda-feira em que apareces com um vestido que elas adoram mas que só a ti fica bem.
domingo, 18 de setembro de 2011
Desenganem-se os que pensavam que se tinham livrado daquela mania do domingo como dia de elevação espiritual
Mas muita coisa acontece ainda antes que o andamento termine. Porém, quando finda e no decorrer do seu final, depois de tanta raiva, tanta pertinácia, tanta obstinação, tanta extravagância, sobrevém algo que, na sua brandura e bondade, é totalmente inesperado e comovente. O motivo que, curtido por inúmeras vicissitudes se despede, e, ao fazê-lo, se converte inteiramente em despedida, grito e aceno de adeus, sofre, no seu ré-sol-sol, uma leve modificação. (…)
É como uma carícia dolorosamente amorosa, que passa pelos cabelos, pela face; um olhar inquieto, intenso, que se aprofunda nos olhos do outro, pela última vez. Abençoa o objecto, a fórmula terrivelmente atormentada, conferindo-lhe irresistível humanidade e confiando-a ao coração do ouvinte num adeus, num eterno adeus, pronunciado com tamanha doçura que os olhos se lhe enchem de lágrimas. “Deixa - de sofrer!” diz ele, “Deus ajudou – nos”, “Belo sonho foi”, “Ama-me sempre”. Assim termina. Rápidos e duros tercilhos correm em direcção a uma conclusão qualquer, pela qual muita outra peça também se poderia acabar.
Thomas Mann, sobre Opus 111, in Doutor Fausto, Edit. D. Quixote.
sábado, 17 de setembro de 2011
Manhã no mercado
- Bom dia, meu senhor (“Olha que querido que é este pescador tão típico. Isto é tudo tão lindo. Vou conseguir viver aqui. vou conseguir viver aqui.”)
- Diga. (“É impressão minha ou esta anormal está a olhar para mim como se eu tivesse os pés enfiados num pedestal de madeira plantado num museu etnográfico?”)
- Queria um quilo de lapas, por favor. (“Este gentil pescador ensinar-me-á a cozinhar as lapas e eu terei um saudável almoço típico.”)
- Lapas?? (“oh, não… não vou conseguir despachar-lhe o atum”)
- Sim, lapas. (“não deve estar habituado a que se interessem pela gastronomia local e este ar aparentemente rude é uma forma de defesa. Esta gente é estranha. Respeito pelas idiossincrasias, blá, blá”.)
- Não vendemos cá disso, menina. (“mesmo que vendesse não as saberias cozinhar”)
- Não?? Como não? É uma comida típica! E eu sei que há disso na ilha (“Esta criatura horrível está-me a esconder as lapas todas para as vender aos restaurantes. E só tem dois dentes. Valha-me deus, onde eu vim parar.”)
- É. Mas se ninguém as apanhar elas não vêm de autocarro para o mercado, sabe? (“era dar com um atum na cabeça destes gajos que escrevem os guias turísticos até os deixar com os miolos de fora”)
- E agora?? Onde é que vou arranjar lapas para o almoço?? (“um…dois…três…respira…um…dois…três…não sejas malcriada…um…dois…três…aprender a amar um povo, blá, blá...infinita paciência, blá, blá”)
- Apanhe-as nas rochas. (“Aproveita e leva esses saltos, pode ser que caias de lá abaixo tu e esse teu sotaque continental”)
- Hum… Assim farei. (“Devias era ver o que eu fazia com esta gente toda se ao menos me dessem uma porcaria de um pelourinho…”)
quinta-feira, 15 de setembro de 2011
Embrulho em seda preta uma alma rastafari
digo-te com quem ando. diz-me quem sou.
quarta-feira, 14 de setembro de 2011
Ah, então era isso...
Voltaire
terça-feira, 13 de setembro de 2011
boxing night
tirei esta a preto e branco para se parecer com o que costumávamos ver na ESPNClassic no sofá lá de casa.
tenho saudades de chamar por ti.
sabes, passou-me o alívio de te ver sofrer.
o meu coração mudou; começou a doer-me de uma forma insuportável.
segunda-feira, 12 de setembro de 2011
Altares
A imagem é do Altar de Pérgamo, no museu Pergamon, Berlim.
quinta-feira, 8 de setembro de 2011
Amigo, qui saudajde dji ocê
Aqui não me posso sentar na soleira da porta. Fico mais bonita engomada, de pernas cruzadas, no sofá da sala, com uma chávena de chá de camomila entre as mãos. O serviço é de porcelana, não te preocupes. Também se ouve o som do trote de cavalos mas eles agora dirigem-se sempre para outra direcção. Nas primeiras vezes, cheguei a achar que tinha enlouquecido de saudades da planície. Estranho como o nosso juízo é mais resistente do que aquilo que conseguimos acreditar.
Entre uma coisa e outra passei uns dias num sítio que ainda se parecia vagamente com Lisboa. Sobre isso, nada. Os cemitérios continuam movimentados e as flores apodrecidas.
Li muitos livros. Nenhum escrito por ti. Nenhum escrito por algum dos nossos amigos.
No final de Agosto, um médico receitou-me a amnésia e eu comprei-a na farmácia. Deixaram-me ficar com as memórias da família e dos amigos. Isso e um último caso insignificante que estou decidida a guardar na alma como se fosse uma grande história de amor.
Li qualquer coisa parecida em Miguel Cervantes.
Tu percebes. És o tipo dos moinhos. Tens de perceber.
Vou fazer a mala e apanhar o próximo avião para o jantar das nove. Aqui marcam-se os jantares com os horários dos aviões sobre a mesa. É giro. Parecemos todos muito nova iorquinos, enfiados nestas pequenas rochas.
Dei-me conta que não sei nada de ti há mais de sessenta dias.
São demasiadas horas. Não me faças esperar.
O médico fanático está decidido a exterminar todos quantos me causem a mínima ansiedade. Não gostaria nada de me esquecer de ti.
quarta-feira, 7 de setembro de 2011
terça-feira, 6 de setembro de 2011
segunda-feira, 5 de setembro de 2011
Giacomo Girolamo Casanova de Seingalt
a profissão também não era de "aventureiro".
a figura não era propriamente triste, mas não chamava a atenção entre os seus pares.
hoje vi de perto um Casanova.
nunca tinha ouvido nada tão perigoso.
mesmo preso, destruiu três mulheres.
as alegações do seu defensor, brilhante, ficaram-se por "o amor é louco".
arranhei o código penal todo à procura do degredo no capítulo das penas.
O inventário da tua morte
espaços de não existência
Chove há três dias consecutivos.
Descobri que é difícil manter a pose institucional quando se chega encharcada até aos ossos e se percebe que as pessoas que nos devem respeito estão cheias de vontade de nos embrulhar num cobertor, sentar-nos no colo, e despejar-nos uma chávena de chá fumegante pela goela abaixo.
Ao invés, fizeram-me uma visita guiada pelo meu novo local de trabalho. Demorou um minuto. Não lhes disse que pela minha vida já passaram arrecadações com maior dignidade do que a suposta sala grande. Eles retribuíram-me não me dizendo que já o sabem.
Também descobri que até uma ateia incorrigível sente em horas desertas um certo conforto no nepotismo da proximidade dos favores divinos. É a primeira vez que me instalam num edifício com capela incorporada. Ocorreu-me que, algures em 1700, um visionário previu a minha chegada.
Em casa tenho uma figueira. E vinte e seis galinhas, um peru e respectiva fêmea...
E a última frase não é uma figura de estilo.
Com o tempo percebe-se que a dificuldade reside menos em aprender a amar um povo do que em ensiná-los a não nos odiarem.
sábado, 3 de setembro de 2011
Exilada
Se a Lisboa das luzes a rir-se dentro dos meus olhos na última noite. Se o choro que tive que engolir dentro de um abraço na última manhã. Se a dor que aumentou à medida que a minha vida passou a ser um pontinho distante visto lá do alto. Se o desespero de, aqui, a fuga possível se fazer pelo afogamento.
Cheguei ontem à minha décima quinta casa.
Foi com estranheza de extra-terrestre que me recordei que as lágrimas são quentes.
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
no final da tarde fazia tanto frio...
o teu jeito de sorrir. reflectido em todas as vidraças da cidade.
tudo no cenário da nossa vida. sem vestígios de escombros.
nem a um sítio onde nunca estivemos posso ir sem ti.
é assim.
quinta-feira, 1 de setembro de 2011
Berlim Report - o amor tem as unhas dos pés sujas
Numa cinzenta manhã de frio decidi matá-lo. Com um x-acto.
(Para dar um efeito mais dramático podemos agora imaginar que o x-acto tinha um cabo de madrepérola.)
À porta da galeria não estavam simples seguranças mas guardiães de formação militarizada especialmente treinados para o defender.
Apesar de ter feito o meu melhor ar inocente disseram-me logo que só me deixavam entrar sem a mala. E sem o casaco. E sem o cachecol. Foi assim que me vi obrigada a caminhar, descalça e praticamente nua, com o x-acto de cabo de madrepérola guardado no soutien e a minha determinação assassina na alma, pelos corredores da galeria.
Três anos de guerra apuraram os meus instintos localizadores a tal ponto que um minuto depois de ter enganado a segurança, já os meus olhos se cruzavam com o insuportável sorriso de Eros. Nem o facto de estar pregado numa parede, mudo e indefeso, sozinho com os meus intentos revanchistas lhe atenuou o sorriso de moca. Não é coragem. É psicopatia.
Foi então que, com a sala completamente vazia, me aproximei de Eros e tirei do peito a arma com que tencionava destruir a figuração do meu mais poderoso inimigo. Examinei-o de perto com o olhar do falcão prestes a devorar a presa.
Mas ali, sozinha com Eros, com os pés dele ao nível do meu mais directo olhar, apercebi-me de uma coisa:
Eros tem as unhas dos pés sujas.
Caravaggio sabia muito bem o que fazia.
Não é um enaltecimento. É um aviso. Um aviso contra o amor.
(O facto de o quadro estar protegido por um vidro e eu não ter levado nenhuma picareta nada teve a ver com a minha desistência).