sábado, 30 de novembro de 2013

pago-te um café, não me contes a história da tua vida



"Pagas-me o café, não te conto a minha vida. Posso cair nesse buraco azul, olhar como quem aspira universos sem ar. Tenho o sapo seco numa estante, encontrei-o na Zambujeira e ele nunca mais se mexeu.

Eu sei que tu precisas de energia, alimenta-te da minha demora - Despe as meias, faz de conta que precisas de estar ao fundo da cozinha, o único enquadramento em que é possível ver-te, - não te esquecerei. Temos vidros, livros, anémonas – podemos fazer um espectáculo só nós dois, mas por favor. Eu sou o eleito, a graça que desceu. Eu tenho braços quase de mulher e sou um mutante poético com orelhas de abano. Tenho uma relação estável com as fadas, matamo-nos compreensivelmente nos dias que expiram o mais sumido suspiro. Já disse que não escrevo romances, já passei essa fase. Como será ter um coração nobre? Como será querer muito uma coisa só, e tê-la? O mesmo de sempre, vitória, sorriso, engano, eternidade. O dia seguinte.

Por favor, pago-te o café. Não me contes a história da tua vida."

Rui Costa

e deus abandonou as cidades


As cidades são os locais adequados para se esconderem os cadáveres e os fantasmas. Por trás das avenidas ficam as ruas e por entre as ruas os becos, com os seus cantos mal iluminados, esquinas e caixotes do lixo a precisarem que os esvaziem. 
Os prédios altos cumprem a função de esconder o céu e os homens vivem como se ele não existisse. Aprendem a olhar para o chão, primeiro à procura dos buracos na calçada de pedra escura, depois à procura dos dejetos dos cães escanzelados e por fim à procura dos próprios pés.
Os corpos adquirem uma posição encolhida, os ombros a apontar na direção das mãos, os olhos sempre rente ao solo, onde estão mais próximos do fim, onde não correm o risco da intrusão de um rosto anónimo que os veja. Talvez com curiosidade pelas olheiras que contam estórias de corpos que se rebolam de insónia. Ou pelo fascínio mórbido daquela linha horizontal que fica na testa das pessoas tristes. 
E os homens aprendem a deixar que os olhem mas a confiar que não os vejam. 
As cidades estão repletas de intangibilidade. São aglomerados de coisas que sabemos que existem mas não conseguimos ver. Sabemos que há-de haver uma lua por cima dos edifícios mas já desistimos de pensar nela. E também sabemos que vivem pessoas por trás das cortinas de linho das portadas das varandas das salas iluminadas, mas já nunca rezamos por elas. Foi por isso que deus abandonou as cidades.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Hey ho!


Tripulação, é só para dizer que cheguei!!!
Cuca, temos que falar.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Tendências

A objetiva capta apenas aquilo que a realidade lhe dá.
O trabalho de edição capta aquilo que nós damos à realidade.
No meu caso, revelou-se a estranha capacidade de transformar em traças borboletas coloridas.

Diário de Bordo #6




Está visto que as notícias bizarras surpreendem-me sempre deitada na chaise long de design com a vista presa na linha do horizonte e a Ilíada adormecida no meu colo. Este facto é alheio à componente estatística vagamente relacionada com o número de horas por dia que passo dedicada a esta atividade.  É tudo explicado por uma questão de estilo individual. Decidi que notícia bizarra alguma me iria apanhar noutra posição que não esta. E as coisas, pelo menos neste navio, pelo menos até agora, acontecem sempre da forma como eu decido que elas devem acontecer. 
Hoje de manhã os céus anunciaram a aproximação da bizarria. Um arco íris duplo é poesia. Mas um arco-íris triplo é, ou alucinação, ou mau presságio. 
E com o problema da venda do crude resolvido, a piscina limpa, a tripulação a ensaiar coreografias para um musical, o Álvaro de Campos calado porque em coma alcoólico, Andhriminir, o cozinheiro Pirata, com os instintos sádicos aplacados por dez frangos assassinados para o jantar, o rum nos barris à temperatura certa, o papagaio de vigia no mastro, enfim, já perceberam a ideia, eu pude, finalmente, fixar os olhos na linha do horizonte, deixar a Ilíada adormecer no meu colo e concentrar-me no significado metafísico desse arco-íris triplo que desde manhã tanta perturbação me trouxe. 
Foi nessa altura que Gualtiero, o Italiano, se aproximou com uma carta suspeita. Ainda mais suspeita do que o incrível facto de continuarmos todos a receber correio em alto mar.
No mesmo instante em que as minhas mãos tocaram o envelope, purpurinas cor-de-rosa pastilha elástica colaram-se-me às unhas e percebi que estava perdida. Nem precisei abrir o envelope para ouvir aquela vozinha jocosa tinir-me no pavilhão auricular. 
Julgava-a desaparecida a esgotar reservas de diamantes da Amazónia, infiltrada numa nave a atazanar o juízo aos marcianos,  num buraco da América do Sul a engendrar uma rebelião, no inferno a fazer um barbecue com o próprio demo...
E foi então que já branca, gelada, em pânico, e ainda sem abrir o envelope, ouvi aquela gargalhada vinda do meu passado negro, seguida da seguinte mensagem:

- Estou aborrecida, soube do pequeno negócio que geres por aí e decidi que também sou Pirata. 

O envelope desfez-se, purpurinas e confetis encheram o chão do convés e eu recolhi-me debaixo da minha cama, de onde vos escrevo, sem saber exatamente o que vai acontecer, mas certa de que se aproxima uma onda maior que um tsunami.


domingo, 24 de novembro de 2013

R.I.P. Cinema King

Sobreviveu à minha fase "cinema de autor" e até àquele que a desencadeou.
Fecha as portas hoje, interditando-me mais um espaço da minha história.

A justiça no Wonderland é simples e perversa. 
As criaturas do mundo mágico sempre punem o crime de intrusão com a mais cruel das penas:
O esquecimento.

E chega.


terça-feira, 19 de novembro de 2013

Dizem

O ar grave e sério que me roubaste no instante em que esqueci estar a ser observada não me pertence mais do que nos podem pertencer as borras do café mal moído que ficam no fundo de uma chávena arrefecida.
Mas dizem que há quem, nesses resquícios, saiba ler as linhas do futuro. 
Dizem que leste o meu. 



Terrible Love


E na próxima quinta-feira lá estarei, sentada, a ouvir, para que me recordem, como um mantra, aquilo que jamais poderei esquecer.

It takes an ocean not to break...
It takes an ocean not to break...
It takes an ocean not to break...

"A degradação das cargas pelo solo"

Aprendi hoje uma expressão nova com a potencialidade de sintetizar os últimos cinco anos da minha existência.
Suspeito que o meu solo está repleto de cargas em processo de degradação.
Dizem-me que, cientificamente falando, é um processo com um final feliz.
Na psique, como na geologia, a cura faz-se pela neutralização.

domingo, 10 de novembro de 2013

Miserere




Do you ever look around
turn your ear to the ground
show your face to the sky
on a night when the skies echoe sounds
from inside of your mind
on the stage that you shone
where the sun did become you
and move with your thoughts
through the sighs and the scenes
of the worlds you have seen
and the sights that have been
your reflection in shadows and dreams?
- your reflection in shadows and dreams

Did you ever see a man
who did walk down the street
white robe with no shoes on his feet
and on top of his head place a box with two slits
and the sign from his neck said
'I do not exist'
or a woman who could not remember her name
did stutter and stutter
again and again
and saw you and called you her son
her eyes said
'my being is gone
but still I'm not dead'?


Miserere

Have you ever seen a sound
have you listened to an image
have you ever touched a thought
have you ever tasted nothing
have you ever told a lie
that was true more than truth
because truth it had lied
all its life when it spoke to you?
And what did it say
it is that it is this
this goes here here is there
it is not yes it is
it was dulling your senses
your eyes they were bound
have you ever my friends
been looking around?
(...)

Miserere

Have you ever
been so happy that you're sad?
that the lights turn to stars
and the stars become eyes
and hello's are goodbye's
and the laughs are the sigh's
and the show disappears with the note
'until next time'

Long live living
if living can be this
(...)





o lado do não coração

- É melhor assim!
Disseram-me todas as pessoas, enquanto descaíam os ombros e encolhiam ligeiramente o pescoço numa unânime inflexão para a direita. 
O lado do não coração.
Ensaiei o gesto em frente ao espelho mil vezes. Dei comigo a murmurar alto a frase, num tom misto de resolução e indiferença. No meio da rua, no carro, na cama, no duche. Para mim própria. Até atingir o ponto da perfeição.
E depois disse-to a ti, preocupada por nem sequer poderes ver a perfeita linguagem corporal que acompanhou a declaração.
- É melhor assim!
Acabaste tu por dizer a uma plateia de ombros descaídos e pescoços ligeiramente encolhidos em unânime inflexão para o lado do não coração.

sábado, 9 de novembro de 2013

cinema paraíso

O cinema está cheio de homens que chegam demasiado tarde, com a cumplicidade silente de mulheres que se deixam sacrificar em nome de interesses superiores.
A vida também.
É um inferno.


chuva de magnólias

Na falta da ansiada chuva de sapos fui ouvir a Aimee Mann.
Não foi um sucedâneo. Nem sequer "faz as mesmas vezes". 
Quem só chegou depois de o Magnólia ter acabado não pode perceber isto. Quem só chegou depois do Magnólia ter acabado não pode perceber nada. 
O filme representou o fim de um ciclo. Mas para acabar com este - para acabar com isto - nada menos que uma chuva de sapos.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O disco está cheio

Damien Rice pergunta na música que se ouve até à náusea se "it is there all right?".
O portátil insiste em fazer saber que o disco está cheio e uma campainha no forno informa que, de acordo com as instruções da embalagem, a lasanha ficou pronta.
"And it is there all right"
"Yeah"
Está tudo bem debaixo desta existência espacio-temporal congelada por alertas mecânicos e rigorosas instruções escritas em embalagens convenientemente recicláveis. 
Mas o início do verso de um poema soltou-se do livro e voou pela sala intersetando a traça que o cão acabará por comer mais tarde. 
E nesse ligeiro desvio, início de vida e morte, talvez esteja a única verdade do dia.
O cantor avisa que "i give my gun away when it´s loaded". 
E nós sabemos que there is not all right.

domingo, 3 de novembro de 2013

Pragmatismos

Não foi o único pôr-do-sol da minha vida.
Não foi o maior, o mais límpido, o mais deslumbrante e nem sequer foi, em absoluto, o mais puro.
Foi apenas o mais lento. E foi apenas o último.
E é só por isso que ainda o trago tatuado na retina. E é só por isso que ainda guardo na pele o frio que fica imediatamente a seguir a um pôr-do-sol.


de leitura obrigatória a espíritos inquietos

"Depois num registo apaixonado, porém amargo:

Da tua vida, Ofélia, basta-me o brilho da felicidade: o desejo insensato de haver alguém que me ama. Pequenas são as coisas que sentimos quando possuímos mais capacidade para as rejeitarmos. Este bom homem que julgas que eu sou não é senão um silêncio infantil que apenas deixou escapar um rumor dilacerado. Por ti não reflicto em nada, e todas as minhas palavras se destinam ao fogo dos teus lábios. Aceitar-te é confessar que estou perdido e que estranhos caminhos procuram os meus passos. A vida e o amor, o leito bem aconchegado, a postura mais natural para logo depois ser um pecado, o chapéu fora do lugar, o defeito e a virtude, na alegria e na tristeza e na palavra nunca eu haveria de ser perfeito, continuamente digno da tua companhia, e na ausência de entendimento, também solitária seria a tua vida. Hoje sonhei-te saída dum jardim artificial e casamenteiro, trazias o alimento que dava sede ao meu fruto, e a tua voz soluçava tanto como o meu íntimo nocturno.
Em que risíveis criaturas, tu e eu, nos transformámos? Podia a vida ter mais juízo e não me despedaçar tanto? Não, Ofélia! A vida continua, é deixá-la seguir, só as crianças se comprometem com o que dá gozo nelas e protegem com um tal sentido encantador os seus objectos de brincar.
Nenhum amor é mais que um desespero, Ofélia. Não temo tanto que o teu amor não seja para sempre quanto temo que ele permaneça planeado e insensível debaixo do mesmo tecto".

Fernando Esteves Pinto, in O Carteiro de Fernando Pessoa, Parsifal,