quinta-feira, 31 de março de 2016

Onde se está quando não se sabe para onde se vai

A página online de uma dessas cadeias de lojas onde, entre outras coisas, se compram livros e música, ao ser abandonada a meio de uma encomenda por mais de meia hora, pergunta-me "onde estás agora, Cuca?".
Ocorre-me que pode bem ser a pergunta mais íntima que me fizeram no último ano. 

quarta-feira, 30 de março de 2016

Louca #1

- Loucura, tu governas o mundo a partir de uma bela boca de mulher!

Kleist, in, Michael Kohlhaas, O Rebelde.

Kübler-Ross

Deixei-me conduzir pela escada do estereótipo. O meu desprezo pela psicologia não tem fundamentos. Pois se é verdadeiro o axioma Borgeano segundo o qual um homem são todos os homens, tal como o relógio avariado, também a psicologia não está isenta de um momentâneo acertamento. 
Subi os degraus da escada. Conduzem a um patamar com vista para um deserto infinito. Nao vos enganarei. Desimaginem cardos; camelos; a miragem de um braço de rio ou o rasto de um véu berbere. No deserto infinito há apenas areia e, alternadamente, os excessos do sol e da noite. O azul do céu não é aliviado pela passagem de nenhuma nuvem e a visão das estrelas não anestesia as feridas da boca.
Mas, se tiveres sorte, num qualquer final de tarde, sentirás sede. 
E então saberás que sobreviveste. 


Louca

Às vezes, 
quando ninguém está a ver, 
quando a cidade já dorme embalada 
pelo som dos eletrodomésticos, 
fujo para a praia, 
descalça, 
na minha camisa de dormir branca, 
de louca, 
cabelos soltos e desgrenhados, 
de louca. 
E, então, 
sob o olhar da grande lua 
desafogo-me na água fria do mar,
limpo a ausência das veias,
desenho na praia deserta 
as sombras circulares da minha dança, 
de louca.
E quando a luz da manhã me reencontra 
no linho dos lençóis,
ao desfazer do feitiço,
pés gelados,
mãos salgadas, 
areia entre os dentes,
sei que foi a tua mão que me devolveu.

terça-feira, 29 de março de 2016

Perna de Pau



Mark Rothko
(Furtada daqui)

E no final do dia

E no final do dia
essa dor antiga
do esvair da chama
num resto de vela.

PLAY FOR TODAY

A qualquer hora, a meio do que dispõe 
um sedimento, uma impressão 
distanciava-se, cambaleante e aflito
inseparável de alguma coisa que não se via
mas talvez exista 
nos desertos que se prolongam 
nos nomes que nos pertencem demasiado e esquecemos 
em certas deflagrações 
que por muitos dias
nos afugentam de casa, do trabalho ou do sono


Quando depois voltava
prendia o barco no pequeno ancoradouro
ainda despenhado das varas de um relâmpago 
quase sem palavras
apenas um ser vivo sobre a terra

José Tolentino Mendonça, A Noite Abre Meus Olhos, Assírio & Alvim


segunda-feira, 28 de março de 2016

Porque o mundo está cheio de pessoas que sabem tudo

Este post é para ti, que te indignaste com os mortos na Bélgica e ainda contigo próprio por te teres indignado um pouco menos por comparação com Paris. Para ti, que hesitaste nas manifestações públicas de indignação por teres aversão a clichés e por saberes que o mundo não melhorou por teres coberto o teu rosto com a bandeira da França ou teres postado a Edith Piaf a cantar a Marselhesa. Para ti, que depois leste o que se escreveu sobre os perigos da diminuição da tua indignação e te sentiste culpado. E para ti, que não consegues lamentar tanto os atentados no Paquistão como os da Bélgica e ainda te sentes mais culpado. E para ti, que quando ouves dizer que a Europa é a responsável por lhes vender as armas, sabes que as pessoas que morreram não venderam armas nenhumas e não deram nenhum mandato aos seus governos para que o fizessem e que tu também não. E é ainda para ti, que sabes que os refugiados devem ser acolhidos por razões humanitárias mas que não acreditas na capacidade da Europa para os integrar e também por isso te sentes culpado. E, por último, é para ti, que não percebes coisa nenhuma e querias mesmo é que o bando de psicopatas deixasse de andar nas ruas, nas tuas ruas, a bombardear pessoas que, tal como tu, não percebem nada e só querem que as deixem em viver em paz e não as façam sentir culpadas pelos homicídios que não cometeram. 
Para ti, a minha solidariedade.
(A propósito deste post do Henrique Fialho) 

Sweet Revenge


domingo, 27 de março de 2016

Da natureza


- you cheated!
- i'm a Pirate.

sábado, 26 de março de 2016

Revisionismo

Houve uma Páscoa em que me procuraste para me dar um pão. Levei-o para casa e comi o teu pão com o queijo que comprei na queijaria clandestina que havia na garagem da casa em frente àquela onde morava e que nunca fiz minha. Compus um cenário bonito para uma fotografia e partilhei-o com o mundo. A toalha era azul e a porcelana tinha pertencido à tua avó. Passei a tarde sentada em frente ao mar a ler o primeiro volume de contos do Nabokov. Tinha um marcador de metal em forma de borboleta que entretanto perdi. Ouvia-se, por insondáveis razões de coerência, Madama Butterfly. E chovia, porque chovia sempre entre as quatro e as sete da tarde. O amor dormia inocente como uma doença assintomática que se aproveita do silêncio para alastrar. 
Hoje, o facebook perguntou-me se queria partilhar a memória desse pão cuidadosamente exposto sobre a travessa de porcelana branca da tua avó. O primeiro volume de contos do Nabovok haveria de sofrer a cicatriz eterna da borboleta metálica que ficou demasiado tempo pousada na página que aquela última tarde marcou. 
Não quis partilhar a memória desse derradeiro instante de inocência que se esvaiu ainda antes que a chuva se calasse. Depois dele, Jesus nasceu, morreu e ressuscitou várias vezes sem que entretanto nos tenha vindo salvar.
O facebook vingou-se do meu revisionismo histórico entregando-me, minutos depois, a mensagem que me informa que, finalmente, encontraram-me o esgotado segundo volume de contos de Nabokov.
Ouvia-se, mais uma vez, por insondáveis razões de coerência, Madama Butterfly. 
Só o marcador em forma de borboleta e a inocência, esses, ficaram irrevogavelmente perdidos.

terça-feira, 22 de março de 2016


"A vida da traça é muito efémera, mas o buraco que faz na roupa fica para sempre - disse Alice à lagarta".

Citação retirada de Afonso Cruz, in Enciclopédia da Estória Universal - Recolha de Alexandria, Alfaguara, pg. 53.

segunda-feira, 21 de março de 2016

A forma das nuvens

Nada sei sobre a forma das nuvens 
do céu da manhã em que me esqueci 
de ti.
Posso presumir o roncar hesitante da máquina do café
a cair sobre um silêncio de baunilha,
O reflexo distraído de um rasto de pressa 
nos espelhos anónimos, 
O traço do lápis escuro com que risquei dos olhos 
uma última insónia, 
Todas as coisas que coabitaram a saudade 
na indiferença do inquilino ingrato.
Mas nunca poderei reconstruir a forma das nuvens 
da manhã em que me esqueci 
de ti
e que é a amnésia inversa desse abraço 
que a ignorância de ser o último irrelevou.
A culpa lastima a falta de lembrança que a inocência agradece. 
Mas todos os céus são iguais quando na terra jaz sepultada a saudade. 






domingo, 20 de março de 2016

Diário de Bordo

Caí doente num alvorecer e nessa inútil atividade gastei vários dias. Andrimhnir, o cozinheiro pirata, passou o tempo à minha cabeceira a ler-me pautas de música, interrompidas por bulas de medicamentos. A minha obsessão pelo piano chegou à fase do solfejo e substituí a paranóica busca de livros esgotados pelo colecionismo de pautas de músicas que já não terei tempo de aprender a tocar. A meio da minha doença ocorreu-me a possibilidade de não ser eterna e conheci a culpa pelo tempo desperdiçado com tarefas ignóbeis. Não lamento o tempo gasto no trabalho pois, relativamente a esse, resta-me a consolação de nunca lhe ter dedicado um minuto a mais do que o estritamente necessário à sobrevivência do meu corpo e do meu espírito. O facto de o meu espírito ter necessidades vitais dispendiosas não é culpa de ninguém. Porém, devem-me muitos dias quilos de insignificante literatura, programas de televisão medíocres, obrigações sociais, pessoas que entretanto foram à sua vida e que agora nem sei se são vivas ou mortas, o trânsito de Lisboa, esperas em salas de aeroportos, etc, etc. No meu suposto leito de morte, enquanto Andhrimnnir me contava as pulsações, converti todo o tempo que me roubaram em peças de piano e concluí que, mesmo com a minha natural falta de habilidade, poderia, na pior das hipóteses, ter aprendido a tocar na perfeição o Claire de Lune do Debussy. Foi assim que percebi que um conjunto de pessoas desconhecidas entre si conspirou para me roubar o orgulho de saber tocar na perfeição, da primeira à última frase, o Claire de Lune do Debussy. 
Partilhei a minha angústia com Reboredo, o médico ortopedista, que a transmitiu a toda a tripulação juntamente com o diário clínico. No dia em que os chamei para lhes comunicar o plano de substituição provisória do poder, num gesto de rara generosidade, trouxeram-me uma versão da música de cuja habilidade de a tocar o mundo inteiro me privou. 
Mas era uma versão tão mal executada que, fiel àquela ideia de que se queres alguma coisa bem feita é melhor que a faças tu, fui obrigada a abandonar o meu estado de doença e a regressar à vida apenas para começar a praticar, para um dia poder, enfim, ouvir a música dignamente tocada. 
Nessa manhã, mandei chamar o diabo. 
Negociei cinquenta anos mais. 

Composição sobre framboesas

Saí para ver a primavera e encontrei aberta a minha praia. 
Por aqui é assim que se mede o tempo. A ninguém importa que ainda agora chova ou que ainda ontem o frio. Faz tudo parte de um passado que queremos esquecer. Quando abre a praia ouve-se bossa nova com Sakamoto no piano. Ainda é cedo para o reggae e a água do mar faz frieiras nos dedos dos pés. A hortelã aparece aos molhos nos supermercados e ficamos a saber que chegou a altura de trocar o vinho tinto pelo gin. A empregada virá para sacudir as mantas e abrir as janelas e há de afugentar o inverno das paredes desta casa arrastando-o com a vassoura. As meias, as botas e os casacos serão escondidos em baús fechados e eu passarei frio durante mais um mês e ficarei constipada e direi com alegria que é a rinite da primavera. Amanhã, todos os restaurantes estarão abertos e a praia cheirará a peixe assado e a óleo de côco. É preciso fazer desaparecer estas pilhas de livros e comprar a biblioteca de verão. Tenho um dia para substitui o Guerra e Paz por qualquer coisa da Virgínia. Começo sempre a primavera com Virgínia. 
Esperar-me-á em vão, numa casa encerrada, o fim de inverno de Lisboa. 
Reabriu a minha praia e tudo o mais faz parte de um passado que queremos esquecer. 

B-sides


quarta-feira, 16 de março de 2016

Regressar a Tolstoi

Diz Tolstoi, pela boca do príncipe André Bolkonski, em Guerra e Paz, que o perdão é a virtude das mulheres. Mas engana-se. A habilidade das mulheres é o perdão fingido.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Este blog fez seis anos

E ainda não aprendeu a escrever-se.

Quando é a próxima lua?

Nada me aborrece mais do que este pé agrilhoado ao dito mundo real, que me afasta das coisas que verdadeiramente importam. 
Não vi a última lua; o meio de março apanhou-me sem a comoção de um verso; não descobri uma música nova; olhei sem ver a minha praia; não encontrei um único instante digno de ser congelado numa fotografia. 
Trabalhei demasiadas horas e elas vingaram-se de mim, não deixando a sombra de registo de existência. 
Dir-me-ão que há quem viva assim toda uma vida. Responderei que estão mortos. 


sábado, 12 de março de 2016

Tristeza

Ele trazia a tristeza pendurada na voz. 
É esta a frase que desde ontem me importuna como se zumbido permanente de um mosquito no ouvido. 
Aquela tristeza, ali balançada, a inutilizar essa outra que é a minha. 
Pode muito bem viver-se com uma tristeza, desde que se mantenha silenciosa, discreta, arrumada, limpa e, sobretudo, útil.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Sim, talvez tenha sido amor

Sim, talvez tenha sido amor.
É um rótulo de design post moderno 
que fica bem em qualquer frasco de vidro e aço escovado
desses que se esquecem na bancada da cozinha 
e onde o açúcar se vai entorrando com os anos
tornando-se pouco prático para consumo
numa pequena chávena de café que se quer amargo. 

Sim, talvez tenha sido amor. 
É uma explicação art decor
integrada no feng shui do sofá da sala de estar 
que não contradiz a dimensão pop do relógio de parede
com o tempo convenientemente congelado às dez e dez 
que é a hora da perfeição estética do mostrador 
e agente inibidor de toda a angústia que há na rotação da terra.

Afinal, o amor é sabão azul que se espalha na psoríase,
entranha-se na pele e, subindo a via sacra que vai das veias até à alma, 
ilumina as caves mais esconsas de qualquer mente embargada 
purificando-nos a todos do terrível pecado da banalidade 
em que aceitámos viver o resto dos nossos dias. 

Por isso, sim, talvez tenha sido amor, 
mas, por favor, querido, jura mais baixo, 
que ainda te ouvem os vizinhos
e acordas-me o cão. 


domingo, 6 de março de 2016

Nomen

Onde quer que o encontres - 
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de 
uma árvore, na pele de um muro, 
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida 
sobre o meu corpo - é teu,

para sempre, o meu nome. 

Maria do Rosário Pedreira, Poesia Reunida, Quetzal, pg. 193

Melancolia


Já não importa.
Também sei chorar
E o amor não é só teu. 


A cidade onde eu nunca durmo

06:20, Lisboa

Há uma indesmentível relação causa efeito entre Lisboa e a minha insónia.

sábado, 5 de março de 2016

Se esta rua fosse minha

Foi a minha rua. E nela, atrás de uma das portas foi a nossa casa. Aquela por onde hoje passo sem olhar. 
É o mesmo o rapaz saltimbanco com o seu novo cão e o seu velho número. É a mesma a cigana da contrafação que me pergunta pelo senhor doutor. O mesmo, o dono da farmácia na sua bata apressada, ali a atravessar a rua. Mudaram de nome quase todos os restaurantes. Aquele é o senhor Carlos. Ainda sabe como gosto do café. Em silêncio.
Às vezes regresso à rua que foi minha. Respondo à cigana que o senhor doutor está muito bem, obrigada, que ficou em casa. Há oito anos que engano a cigana. Constato que, entretanto, esqueci quase todos os números. O número do telefone; das camisas; do passaporte. 
Mas lembro-me, ainda, de quantas árvores tem o lado esquerdo desta rua. 
Contei-as numa manhã de agosto. A rua estava deserta. O vestido era comprido e tinha flores azuis. Eu era para ter sido muito feliz. 
Foi há demasiado tempo.




quinta-feira, 3 de março de 2016

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros ao lado do espaço

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.


Herberto Helder, excerto do poema Tríptico

quarta-feira, 2 de março de 2016

Da fé

A nós, àqueles a quem nenhum deus agraciou com o milagre da fé divina, resta-nos pouco: uma vida que é a oportunidade definitiva e única; uma consciência em que o bem, inapto para o propósito do conforto na vida eterna, só pode ser o fim último; a desesperança da mão suave do pai global sobre as nossas cabeças perdidas. 
Nós, os abandonados por todos os deuses, nós, a quem não nos aquece o calor da crença divina, só nos temos uns aos outros. 
A verdadeira irmandade é aquela que é composta pelos órfãos de deus.
É por isso que a fé na humanidade nos é tão cara. É a única a que podemos aspirar. E se a perdermos, não nos sobra mais nada que nos una à espécie que nos calhou em sorte.

Ultimamente, a cada serviço noticiário, as pessoas parecem-me mais feias. 

terça-feira, 1 de março de 2016

No dentista

- Come muitos doces?
- Raramente.
- Fuma?
- Quase nunca.
- Está a mentir-me?
- Muito pouco.