terça-feira, 29 de outubro de 2013

Ballerina



"but what´s a memory without a life
it doesn't fill her empty side"

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

breve descida ao mundo real

No meu caso, o acto de fé na natureza humana é menos uma crença ou uma opção do que uma necessidade profissional. No dia em que deixar de ver as potencialidades da natureza humana terei que encontrar outra forma de ganhar a vida ou resignar-me a viver na hipocrisia. 
Notícias sobre mães que, durante dois anos, escondem bebés nus numa mala de um carro levam aos limites a minha construída capacidade de acreditar que em todas as pessoas, em todas sem exceção, há uma centelha de humanidade. 

domingo, 27 de outubro de 2013

we were pilots watching the stars


Armoured cars sail the sky
They're pink at dawn
If I lived forever, you just wouldn't be
So beautiful, as the sun
When it shines all over the world

We're pilots watching the stars
The world pre-occupied
We're pilots watching the stars
Who do we think we are?

Ice and clouds, shimmer outside
Rain just falls, at magic hour
It's just the sound of you and me
Time twitching
Murmurs of our friendly machine

We're pilots watching the stars
The world pre-occupied
We're pilots watching the stars
Who do we think we are?
(Yes, who do...)

There's just the sound
Of you and me

Diário de Bordo # 5


Somos oficialmente fugitivos...
Depois daquela brincadeira com o petroleiro, conseguimos atrair a atenção das autoridades marítimas e devo dizer que fugir da polícia é menos divertido do que inicialmente se poderia pensar. 
Não gosto de dizer mal da minha classe e até cultivo um certo corporativismo sadio, mas há que reconhecer que o índice de cobardia na classe dos capitães de navios é qualquer coisa de assustador. O intriguista não teve coragem de assumir que nos entregou o comando do petroleiro dois minutos e meio depois da nossa abordagem e sem oferecer outra resistência que não fosse soltar brados aterrorizados que ainda ecoam nos ouvidos mais sensíveis de alguns dos meus tripulantes. Foi fazer queixinhas às autoridades, dizendo que tínhamos mísseis a bordo, o que, por enquanto, ainda é uma aleivosa mentira. Já mandei vir uns quantos pela internet mas parece que estas coisas demoram a chegar e devido à incompreensível burocracia italiana, em cujas águas nos encontramos outra vez, não podem ser remetidos por correio. 
Seja como for, o mentiroso pintou um tal quadro terrorista que temo que os italianos enviem o exército no nosso encalce e tudo por causa de um petroleirozito de nada, cheio de um inútil crude, que só agora me dizem nem sequer servir para abastecer os nossos depósitos e do qual não há meio de me conseguir livrar, apesar dos anúncios que coloquei no olx e no jornal ocasião. 
Como se não bastasse, a minha tripulação está revoltada comigo por ter perdido a comodidade da piscina, transformada em temporário depósito de crude. São tão teimosos que nos primeiros dias ainda insistiam em levar a sua parafernália de bóias, patinhos, crocodilos e colchões de ar para dentro da piscina e banhavam-se no crude. Houve quem aventasse que a espessura do substância era benéfica ao exercício da natação. Por fim, já com o deck cheio de nódoas irreversíveis, fui obrigada a fechar o acesso à zona da piscina. Também tive que encomendar um sabão especial que lhes voltasse a restituir o seu aspecto natural porque, no negrume, já não são se conseguiam distinguir uns dos outros e havia quem não se distinguisse a si próprio. Além disso, as provas do crime estavam à vista de toda a gente.
O plano é simples. Recolhemos a bandeira Pirata e substituímo-la pela bandeira de um daqueles países off-shore onde os burgueses registam os barcos de recreio. Escondemos as vestes Pirata num dos barris de rum, livrámo-nos do papagaio Polly, e agora navegamos disfarçados de turistas veraneantes. Em boa verdade, manter este disfarce só nos custa não alterar rigorosamente nada naquela que é a nossa rotina habitual.
Para melhor treinar o disfarce e porque sabemos estar a ser observados por satélite, ontem sentámos-nos todos nas espreguiçadeiras do convés a ver as estrelas e a beber uns insuspeitos gin tónicos. Álvaro de Campos, o engenheiro naval, disse ter em tempos conhecido um tal de Pessoa que lhe ensinou umas coisas sobre astronomia. Concordámos em receber uma lição sob condição de não falar em verso durante pelo menos dois dias. Tudo correu mais ou menos bem até que começou a falar de Orion. Por razões cá minhas, Orion é uma constelação que me faz alterar o sistema nervoso e o motivo pelo qual uso tapa-olho quando vou à rua em noites estreladas, é para o poder ir desviando por forma a nunca ser obrigada a vê-la. 
Cometi o meu primeiro acto de arbitrariedade enquanto capitã e despedi-o imediatamente, apodando-o de psicopata torturador. 
Acho que o poder me está a corromper a alma.


Jacques Brel, esse Pirata

sábado, 26 de outubro de 2013

A quimera da felicidade

Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que se passava diante de mim, - flagelos e delícias, - desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enchada e a pena úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com agulha da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.


Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Tivesse Brás Cubas logrado obter sucesso na invenção e comercialização do emplastro destinado a "aliviar a nossa melancólica humanidade" e não estaríamos condicionados a escolher aplacar a dor na indiferença, que é "um sono sem sonhos" ou no prazer, que é "uma dor bastarda".
Também existem os outros. Aqueles que nasceram de coração emplastrado na pomada que anestesia a melancólica humanidade. 
Mas esses, é claro, nem merecem que se fale deles...

Comunicações inter-galácticas

Ontem vi-te na rua, dois quarteirões a sul da porta onde nunca passo para evitar o teu reflexo no vidro grande da entrada. 
Era o teu andar desengonçado, esse jeito de voltar o pescoço para as nuvens, uma mão com a palma para cima, o sorriso trocista de quem acabou de relevar a última asneira que fez, o cabelo há três semanas a implorar por um corte e os passos como que demasiado pequenos para pernas tão altas.
Vi-te atravessar a dez metros da passadeira e quase ser atropelado e fiquei aliviada por teres sobrevivido.
Percebi que a tua morte foi um embuste. Uma paródia da qual todos os dias te ris de boca aberta sentado no sofá verde (era verde não era?) da casa a cuja porta nunca passo para evitar o teu reflexo no vidro grande da entrada.
Percebi que passaste os últimos quase dois anos a rir de nós, a espreitar-nos das esquinas, distraído com as passadeiras, quase a ser atropelado, a observar as nossas vidas, a ler as nossas palavras, a reprovar as minhas olheiras, a gozar  a nossa dor. A escrever os teus poemas.
Dizem-me que era outra pessoa. Um homem parecido com o que te parecerias hoje se hoje ainda te parecesses com alguma coisa. Dizem-me que morreste e que foi o teu corpo que o rio vomitou numa manhã mais fria do que todas as outras. Dizem-me que desapareceu para sempre o teu reflexo do vidro grande da entrada da porta onde nunca passo. Que se te acabaram os poemas.
Mas ontem vi-te e sei que a tua morte foi um embuste e só espero que não sejas atropelado. 
E que cortes esse cabelo.



Não sei nem quero saber

Apenas não tenho raiva a quem sabe.
Dominei os dois estádios mais úteis desse adágio infantil da inocência arrogante.
Vivo no alheamento das coisas, de todas as coisas e não me sinto culpada por isso.
A arte da eremitagem aprende-se em módulos, como os cursos de fotografia.
No fim, ganha-se a habilidade de suspender a indignação. Não é nada comigo, porque só é comigo aquilo que ocorre a menos de cinco centímetros do meu umbigo. 
O que me interessa são as metáforas de um texto, as curvas de uma frase, a melodia de uma música, o movimento de uma fotografia, a luz de uma pintura e, ocasionalmente, a sombra de uma ponte. Tudo o resto só existe como suporte das coisas que me interessam.
Os homens inventaram a arte por pressentirem que o mundo era um sítio demasiado inóspito para se viver. E a arte é um jardim de entrada livre onde podemos permanecer durante todo o tempo que quisermos.
Para lá destes muros de ferro forjado, o mundo continuou igual a si próprio. Não houve mais guerras, mais mortos, mais pobres, mais dor, maldade ou solidão pelo facto de eu ter deixado de querer saber das coisas. 
Começo a acreditar que é possível uma existência assim. 
E como é doce, esse estágio humano em que apenas um verso mal construído tem a capacidade de me estragar a manhã. 




domingo, 20 de outubro de 2013

caleidoscópios

Foi há muitos anos, num telhado de Lisboa.
Estavam sentados na beira, com os pés descalços, a abanar sobre o abismo. Ele tirou-lhe o copo da mão e entregou-lhe o telescópio. 
Enquanto ela apontava à lua, ele disparou:
- há muito anos que te amo.
Por trás do telescópio ela ficou calada a assistir às imagens da existência que teriam tido se fosse verdade e se o tivesse percebido a tempo.
Quando o olhar dela tombou sobre o dele o silêncio iluminou uma estrela que nasceu morta.
Se ele se tivesse achado digno de ser aceite por ela há muitos anos atrás, talvez ela, muitos anos à frente,  ainda tivesse dignidade suficiente para o poder aceitar.
Foi há muitos anos. 
Antes de terem demolido os telhados de Lisboa.

Céus

Colecionar céus, foi a desculpa mais discreta que encontrei para não ser obrigada a olhar em frente.

"apenas bolsos cheios de pedras"

Os repórteres de guerra estão demasiado ocupados com os seus heróis e nós estamos suficientemente desocupados deles para não nos ocuparmos com as suas ocupações. Ela era uma figura, uma imagem que apetece ouvir como um beijo na boca. Ela não precisava de ter cuidados, apenas bolsos cheias de pedras, ela dispensava conselhos, ela não se deixava embalar pelo sorriso dos amigos que nos desejam a morte, ela era apenas uma velha solitária, sentada no meio do fumo como uma estátua de pedra rodeada de nevoeiro, ela era em silêncio como o homem que fala alto por não temer que o ouçam, ela era o derradeiro adeus daqueles que acabam de chegar com uma ideia na cabeça: construir diariamente a casa que entra pelo mar.



Henrique Bento Fialho, (a pretexto de Virgínia Wolf), in Suicidas, Deriva Editores.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Preçários

São infindáveis as dificuldades daqueles que oferecem resistência a viver no mundo real.
Podemos ignorar os avisos da EPAL sobre cortarem-nos a água se  não os deixarmos entrar em casa para nos ler o contador. Mas não podemos esperar que os senhores da EPAL façam algo tão simples e justo como devolver-nos o desprezo. 

...

Antes que o copo ficasse vazio, já não estava lá. Aprendi a mover-me no tempo sem sair do espaço. Os meus momentos são capítulos cruzados de vários livros incompatíveis. Do final de um Tolstoi apreendo o início de um verso de Dante e perco-me numa tragédia de Shakespeare. O riso que te entrego não é teu e o meu gesto dirige-se a um morto. Talvez ainda regresse antes de nos levantarmos da mesa. Se estiver a chover numa rua de Paris. Se já não houver bazares abertos em Istambul. Se na penumbra do quarto a lua me devolver a imagem de um amante adormecido. Talvez até venha a ser para ti o comentário que farei sobre a intensidade do ar condicionado. Ou aquela marca desagradável que alguns vinhos deixam nos lábios. Mas nunca poderei ficar por mais que um instante. E essa é a minha secreta tragédia. 

Aridez

Foi preciso apagar o mundo. 
Desligar as estrelas. Ensurdecer à música. Tirar a voz aos poetas. Despir a beleza.  
Foi preciso asfaltar o chão.
A aridez é uma forma de desesperada sobrevivência. 
Onde nada medra, a tua alma descansa.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

give (for) not



In dark times when no one wants to
I will give you me


terça-feira, 15 de outubro de 2013

Aquários

A existência contida numa taça de cristal.

domingo, 13 de outubro de 2013

Diário de Bordo #4

VENDE-SE CRUDE!

Num domingo à tarde



Percebo que a leitura de Borges e a escolha de mobiliário são uma péssima combinação.
Percebo ainda que, numa determinada altura que não interiorizei, o meu fascínio pelo clean minimalista foi-se embora e deu lugar ao gosto pelo vintage industrial. 
Percebo, por fim, que esta súbita alteração de tendência na estética decorativa pode muito bem explicar o fracasso da minha vida amorosa.
Lamento por tudo o que realizo. 
No primeiro plano, apetece-me mais continuar a ler Borges do que interromper para decorar uma casa. No segundo plano, o minimalismo era uma solução incomparavelmente mais acessível.
E no último, bem... lamento a futilidade do destino. 


distrações

A itinerância distrai-nos da obrigação de viver no presente.
O presente, esse, é um carcereiro que nunca se distrai de nós.

sábado, 12 de outubro de 2013

Diário de Bordo #3


À hora que vos escrevo, estão lançados os dados da sorte deste navio e sua tripulação corsária. O ataque secreto ao petroleiro acontecerá amanhã ao raiar do dia. Não há nenhuma razão especial para que a abordagem não se faça lá pelas onze da manhã ou da noite, opção porventura até mais cautelosa e inteligente. A motivação é profundamente egoísta, já que nunca fiz nada ao raiar do dia e, provavelmente por causa disso, tem-me falhado na vida a oportunidade de usar esta expressão que, acabo de o perceber, tanto me agrada. Seja como for, foi assim que combinámos e agora já não poderia voltar atrás mesmo que quisesse, porque se há coisa que mantive dos tempos em que era uma pessoa de bem e tinha um emprego normal, ou mais ou menos isso, é a irrevogabilidade absoluta das decisões comunicadas. 
A ideia partiu dos pescadores gregos que fizemos reféns depois de nos terem implorado que não os obrigássemos a regressar às suas mulheres, mas foi imediatamente acolhida pelo resto da tripulação com urras hey ohs e vivas. Álvaro de Campos, o engenheiro naval, depois das reticências iniciais, acabou por ter um contributo válido já que é o único com formação académica em navios e deu-nos uma palestra sobre as fragilidades do petroleiro que amanhã faremos nosso.
Confesso que o meu défice de atenção, que alguns maldosamente insistem em confundir com autismo, fez com que só tenha podido ouvir os primeiros dez minutos. Ainda assim, tenho razões para crer que, sendo eu Pirata e capitã e tendo uma vastíssima experiência profissional em atividades que são obscuras para o comum das pessoas, no momento próprio saberei exatamente o que fazer.
Encarreguei Andhrimnir de nos preparar uma refeição especial já que pode muito bem ser a última. Comeremos hamburguer com trufa, uma coisa muito fina que experimentei num restaurante de Lisboa e que perante o meu ar enjoado me garantiram ser o último grito da gastronomia. 
Os bravos Piratas que me acompanham revelam um espírito de tal forma corajoso e desprovido de qualquer receio da negra morte, que uma alma menos crente na natureza humana facilmente poderia pensar tratar-se de inconsciência total.
Neste preciso instante, a bordo do navio, dir-se-ia ser um sábado normal. As bloggers pintam as unhas umas às outras revezando-se entre a fotografia para o instagraam e as últimas novidades de um concurso que corre aí pela blogosfera; os presidiários traficam pósteres de mulheres nuas indiferentes ao facto de este navio estar cheio de gente que passa o dia em biquini; os poetas estão sentados num canto do convés a dizer mal dos críticos e a queixarem-se da comercialização da literatura; Gualtiero, o Italiano, ocupa-se de estar apaixonado já não consigo acompanhar por quem; o gigante repara os danos no mastro deixados pela última tempestade; Álvaro de Campos mergulha num coma alcoólico de absinto…
Quanto a mim, passei as últimas duas horas a olhar para este arsenal de shot guns que encomendei a um amigo que vive em África e sabe onde se arranjam estas coisas e a pensar onde raio estava com a cabeça quando decidi faltar ao curso especial de tiro que o Ministério da Defesa Nacional, sempre oportuno, me ofereceu no ano passado.
Constato, com alguma tristeza, que ainda não tenho o suficiente a perder para ter o privilégio de conhecer essa útil emoção a que chamam medo.

Finais

Naquele duelo delicado, que só alguns íntimos adivinhávamos, não houve derrotas nem vitórias, nem sequer um encontro, nem outras visíveis circunstâncias do que aquelas que procurei registar com a minha caneta respeitosa. Só Deus (cujas preferências estéticas ignoramos) pode outorgar a palma final. A história, que se desenrolou na sombra, para a sombra vai voltar.

Jorge Luis Borges, O relalório de Brodie, Quetzal

E por fim, sepultar-nos na sombra. 
Porque a parte de nós que se tornou cadáver merece a paz do esquecimento. 
E porque é uma questão de higiene pública.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

pós-modernos

quadro do grande Marc Desgrandchamps

voucher para o dia seguinte

A minha caixa de correio eletrónico anda a ficar estranha. Tudo começou com uma seguradora de que nunca tinha ouvido falar a ameaçar-me que posso ter uma tragédia amanhã; seguiu-se uma vidente chamada Maria a perguntar se "você sonha com isso?" e uma marca de roupas a avisar-me que "É tudo uma questão de poder". 
E finalmente, quando começo a ficar preocupada com tanto agouro maligno para o dia de amanhã, uma agência de viagens vem em meu socorro oferecendo-me a solução evidente: promete que me deixa dormir duas noites pelo preço de uma. 
Seguidas, espero eu.

À espera

Preciso que o verão abandone a minha estância balnear e me devolva o abandono. Todas as tardes me sento no areal a vê-lo partir. Cada dia está mais longe mas ainda paira suspenso na linha do horizonte num risco laranja vivo em combustão acusadora. Preciso que vá. Que leve com ele os cabelos molhados e as toalhas enroladas aos corpos e os chapéus dos ingleses e os barcos que brilham ao fundo. Que sejam banidas as havaianas do chão, fechadas a cadeado as gelatarias, recolhidas as esplanadas, desmontados os estrados, escondidas as bolas. Preciso desta estância balnear deserta. Do frio húmido das manhãs, do ruído perturbador do vento na minha sala, da aflição das gaivotas pela noite dentro.  Preciso que parta e me devolva o alívio de um cenário de inverno. 
O cenário onde as ausências se confundem, se atenuam e por fim se anulam. 
Todas as tardes me sento no areal à espera. À espera que se vá.  

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

the sound of silence

No final do espetáculo, quando as luzes se acenderam e todos me disseram que a cantora foi maravilhosa, percebi que durante uma hora e meia só ouvi o som do baixo.
Já consigo suportar o som do baixo, mas ainda não consigo ouvir mais nada a não ser o som do baixo.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O Barquinho foi


E o barquinho a deslizar
No macio azul do mar
Tudo é verão, o amor se faz
Num barquinho pelo mar
Desliza sem parar
Sem intenção, nossa canção
Vai saindo desse mar e o sol
Beija o barco e luz
Dias tão azuis
Beija o barco e luz
Dias tão azuis

Volta do mar, desmaia o sol
E o barquinho a deslizar
E a vontade é de cantar
Céu tão azul, ilhas do sul
O barquinho é o coração
Deslizando na canção
Tudo isso é paz
Tudo isso traz
Uma calma de verão
E então
O barquinho vai
A tardinha cai
O barquinho vai
A tardinha cai

O plano

Contrariamente ao que acontece com as coisas que se me impõem, que integram uma errata maior que o livro, nunca me engano nas minhas escolhas. Foi essa segurança estatística que me fez continuar a acreditar na minha tripulação tão criteriosamente escolhida, mesmo quando parecia evidente que não havia nada que se pudesse fazer por esta gente para lhes despertar o instinto sanguinário que é essencial numa carreira de Pirata.  
Finalmente, ou porque se aborreceram das férias náuticas, ou porque o rum lá lhes chegou ao sangue, decidiram-se a fazer jus à minha fé.
Esta manhã, quando desci para o pequeno almoço, estavam todos reunidos à volta da mesa, equipados com lenços, brincos, ganchos e sabres e comunicaram-me que estavam prontos para a ação. 
Sem plano de ataque ainda definido, sugeri que fossemos atrás de um iate de espanhóis que nos irritaram numa marina de Kos e lhes roubássemos a embarcação.
Os bloggers rapidamente se lançaram numa discussão sobre a ética do ataque aos hispânicos, os poetas protestaram com Cervantes, os ex-presidiários tinham feitos amigos entre etarras durante a reclusão, Gualtiero votou contra com o pretexto de uma amante espanhola e foi quando eu já estava em vias de me conformar com mais um projeto de ação transformado em "vamos mas é antes fazer uma sunset party de margaritas" que os pescadores acolhidos a bordo tiveram uma ideia que nos projetará para o mundo da fama e da riqueza.
Vamos assaltar um petroleiro.
A esta hora tardia, o navio ainda fervilha de excitação. Estudam-se as rotas dos petroleiros mais apetecíveis, afiam-se os sabres comprados nas lojas dos trezentos, ensaiam-se saltos sobre o inimigo, afinam-se as bússolas dos devices, compram-se armas no ebay, desenham-se fatos para o ataque...
Assaltaremos um petroleiro. 
Álvaro de Campos, esse chato, perguntou-me o que faríamos depois do ataque e onde guardaremos o petróleo, ou lá o que eles trazem dentro dos petroleiros.
Expliquei-lhe que não viemos para esta vida para nos preocuparmos com detalhes e que se insistir em chatear-nos com insignificâncias terei que o mandar amarrar no mastro.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Em tempo pré real


Em tempo real...


Sinas



Cá dentro inquietação, inquietação, inquietação ...

radiografias instantâneas

Para nós, os racionais, o despropósito de uma emoção é a chancela da sua autenticidade.
É por isso que nós, os racionais, não gostamos mesmo nada de ser surpreendidos por emoções despropositadas. 
Por mais leve que seja, ficamos para ali a olhar para dentro, desconfiados, sem perceber bem de onde veio, o que estávamos a fazer quando se instalou e como escapou ao filtro da generalizada indiferença. 
Depois percebemos que perdemos quarenta minutos à procura de uma fotografia com a virtualidade de ilustrar um sentimento e até nisso conseguimos confirmar um sintoma.
Nós, os racionais, temos muita inveja das pessoas que se limitam a existir em vez de passar o tempo a autopsiar a existência.



e no pôr do sol e na lua e na sombra e na chuva, encontro-me sempre a mim própria

Siddhartha learned a lot when he was with the Samanas, many ways leading away from the self he learned to go.  He went the way of self-denial by means of pain, through voluntarily suffering and overcoming pain, hunger,thirst, tiredness.  He went the way of self-denial by means of meditation, through imagining the mind to be void of all conceptions.
These and other ways he learned to go, a thousand times he left his self, for hours and days he remained in the non-self.  But though the ways led away from the self, their end nevertheless always led back to the self.  Though Siddhartha fled from the self a thousand times, stayed in nothingness, stayed in the animal, in the stone, the return was inevitable, inescapable was the hour, when he found himself back in the sunshine or in the moonlight, in the shade or in the rain, and was once again his self and Siddhartha, and again felt the agony of the cycle which had been forced upon him.
In Siddartha, Hermann Hesse

domingo, 6 de outubro de 2013

Implantações

De qualquer forma, nunca teria sido possível. Ele é monárquico e eu republicana...


sábado, 5 de outubro de 2013

Notícias da terra


 Estávamos sentados à mesa no convés quando Polly, o papagaio emprestado (que certamente por não ser nosso é o único animal que ainda alguma utilidade vai tendo neste navio), deixou cair no meu colo um sobrescrito com um logotipo familiar, em todos os sentidos do termo. 
A minha gente, decorridos três meses desde que me tornei pirata, começou a desconfiar que aquela  história da licença sabática para fazer um doutoramento sobre a organização política dos povos do reino de prestes joão talvez não faça muito sentido. Dizem-me que os almoços de domingo têm andado empobrecidos com a monocromática orientação política das conversas, que não há quem coma a morcela do cozido à portuguesa e que à falta de terem alguém a quem mandar endireitar as costas de dois em dois minutos tiveram que começar a tomar as refeições de televisão ligada. Pedem-me que volte e prometem-me que não me obrigarão a regressar ao trabalho, a que eles insistem em referir-se como "a função", para fazer com que pareça mais importante do que é. 
Não me deixarei enganar. Tenho um considerável histórico de fugas de casa. Desde os quatro anos que ando nisto e a única coisa que mudou foi o objeto da promessa daquilo que não me obrigarão a fazer. Além disso, mesmo que quisesse voltar não podia. Eu e esta brava tripulação ainda só roubámos uma velha traineira de pescadores e, tendo jantado o espólio, o lucro da empreitada não chegaria para pagar a conta do leasing do navio. 
Pese embora a carta não tenha beliscado a minha firme de convicção de morrer Pirata, deixou-me submersa na nostalgia dos tempos em que em que era uma cidadã exemplar e me levantava todos os dias às sete e meia da manhã para ir praticar o bem. 
Mas meio minuto depois passou-me. Agora que sou terrorista dos mares, faço parte do mal. E se há coisa que sempre gostei é de pertencer a equipas com alguma possibilidade de ganhar.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

freedom song


Something simple is the key
Only love will set us free
it´s so far, it´s so near
Almost close, almost here

Um duplo erro. 
Nem o amor é uma coisa simples, nem tem qualquer capacidade libertadora. 

Aliás, se o produto fosse bom, não era necessária tanta publicidade para o vender.