De novo, os dias atropelados nas estações e eu desorientada numa folha de um calendário que já caiu há anos. Passou a ser assim sempre que o verão ameaça voltar. Também tirei muitas fotografias aos céus de todos os dias desta semana. Nenhum tão assombroso como o de hoje, com nuvens aterradoramente escuras por baixo de um azul celeste com outras nuvens, de um perfeito Disney, por cima. Mais ou menos como um daqueles bolos em camadas em que podemos escolher apenas o sabor de que gostamos mais. Assim deveriam ser os dias. E assim deveriam ser as pessoas. E assim deveriam ser todas as coisas. E não esta impura miscelânea de substâncias, em que até o mal e o bem se misturam em doses variáveis para formar um caldo indistrinçável. E depois, até à pergunta"como estás?" deixas de saber responder de forma honesta. Apenas uma expressão estúpida a recalibrar-se no sentido da verdade e um aceno inexpressivo. Porque detestas mentir aos sábados.
sábado, 29 de março de 2014
quarta-feira, 26 de março de 2014
domingo, 23 de março de 2014
quinta-feira, 20 de março de 2014
postais
Estava eu a estibordo do convés, sentada na chaise long Phillippe Starck recém recuperada às tríades chinesas através de epopeicos meios que relatarei num dia com mais tempo, quando Gualtiero, o Pirata Italiano que promovi de porta-voz dos presidiários a mordomo de bordo, se aproximou com uma bandeja de prata argentina. Juntamente com as minhas crackers matinais, importadas de uma loja gourmet londrina, entregou-me um envelope pardo com aspeto demasiado formal para o meu gosto.
Inicialmente, pensei que fosse uma notificação da empresa de leasing que tão generosamente se ofereceu para pagar este navio, mas depois reparei melhor naquelas letras desenhadas de forma a ocultar irritação profunda e reconheci nelas a chancela do meu progenitor.
Lá de dentro, das costas de um ameaçador prospeto de uma clínica psiquiátrica com fotografias de jovens com ar de terem saído de uma sessão de choques elétricos, saltaram as seguintes palavras:
"Cuca,
Descobri que nos mentiste quando disseste que ias para África fazer um doutoramento em organização política tribal e que te tornaste Pirata.
Passa cá por casa para discutirmos esse assunto.
P.s. Obrigado por este ano me teres poupado aos teus horríveis postais do dia do pai. Tenho uma gaveta cheia e pelo menos sete são repetidos."
Passa cá por casa para discutirmos esse assunto.
P.s. Obrigado por este ano me teres poupado aos teus horríveis postais do dia do pai. Tenho uma gaveta cheia e pelo menos sete são repetidos."
Ainda sacudi o envelope para ver se o fraco engodo incluía um bilhete de avião. Mas caiu apenas uma fatura detalhada com os custos da minha educação.
E sem número de contribuinte.
E sem número de contribuinte.
quarta-feira, 19 de março de 2014
domingo, 16 de março de 2014
sábado, 15 de março de 2014
"when i said what i said i didn´t mean anything"
It´s a Hollywood summer
(...)
when i said what i said i didn´t mean anything
we belong in a movie
try to hold it together till our friends are gone
we should swim in a fountain
do not want to disappoint anyone
Conversation 16, Álbum Hight Violet, The National
Em tempos já defendi a verdade maníaca. Mas depois conheci-a e passei a simpatizar com a mentira civilizada.
Cantigas de Escárnio e Maldizer I
Ele
- Nunca foi amor. Foi um equívoco.
Grão de sal que tempera a sola do sapato ressequido. Uma brisa que entrou no tédio e me fez desviar o olhar. Nós aqui somos todos iguais e apaixonamo-nos pela pedra negra no meio das peças brancas de um dominó antigo. Ou pela pena guia, ligeiramente maior, da gaivota que passa. Ou por uma onda que corta o Atlântico na vertical vinda da esquerda, numa manhã sem vento.
Foi nessas coisas que pensei na tarde em que te vi pela primeira vez. Fiquei a ver-te ao longe, de expressão alienada no teu vestido de estrangeira, atravessar uma estrada de pedras com as tuas sandálias impossíveis para os nossos caminhos. Olhei para ti e pensei que não durarias dois dias. Como uma princesa europeia que chega a África com os seus baús carregados de civilização inimiga a apoucar os nossos dias. Insultou-me o teu vestido de primeira dama americana. Os teus saltos impossíveis para estas pedras. Os teus colares a fazer recordar a ópera que nunca aqui teremos. Um jeito de Audry Hepburn à procura de uma Tiffanys onde tomar o pequeno almoço no meio de uma aldeia nordestina do Brasil dos anos cinquenta.
Vi, de longe, os teus gestos programados a condizer com uma expressão ensaiada no olhar deformado pelas lágrimas que gastaste no caminho. Desorientada por baixo do protocolo. Passos incertos na falsa firmeza de quem caminha sempre imaginando uma passadeira vermelha. Li-te o susto a escorrer pelas vértebras e a tensão nos malares de quem encerra o medo dentro de si. Ainda trazias a cidade refletida na íris e imaginei que se te cheirasse seria como entrar no São Carlos numa noite de estreia. Dos teus ouvidos saíam vozes do coro de uma orquestra ao som da qual os teus pés pareciam insistir em dançar. E pensei que não durasses dois dias. Jurei que não durarias dois dias quando finalmente desapareceste da minha vista e foi como se o globo desse um pequeno salto no sentido da sua reposição ao eixo terrestre.
Nunca foi amor. Foi um equívoco.
Na tarde em que pela primeira vez me estendeste a mão já tinham passado os teus dois dias. E já sabíamos mais de ti do que queríamos. Sabíamos, por exemplo, que os vestidos de primeira dama americana vinham com um aceno copiado dos das princesas da Disney. E que sorrias sempre para o vazio quando achavas que estavas a ser observada, o que acontecia todo o tempo. E que no mesmo baú dos vestidos e das sandálias dos saltos impossíveis, vieram chapéus de abas largas com fitas de renda e biquinis de seda dourada com que foste descaracterizar as nossas praias. Foste vista a inspecionar um quilómetro de areia à procura de uma mancha menos escura para pousar uma toalha branca e um livro escrito em inglês. Rimo-nos todos de ti ao jantar na inimitável aflição com que, na saída da praia, brigaste contra os pés sujos pela terra escura, com o falso sorriso plácido emprestado ao rosto.
E pensei que poderia quase vir a ter pena de ti. Que fosse fragilidade camuflada aquilo que se lia por baixo das linhas do teu protocolo individual. Que te tinham enviado para aqui para te castigarem por qualquer coisa terrível que tivesses feito lá na cidade. Houve quem aventasse que haveria alguma coragem na tua insistência em existires publicamente desfasada entre nós em vez de te esconderes na circunscrição do território que te atribuíram. Mas eu só li o desassossego.
Na tarde em que pela primeira vez te estendi a mão estremeci na estranheza de haver carne e ossos por entre os teus dedos de holograma da nossa montanha. A alienação desfez-se no instante em que o teu olhar se fixou no meu com uma intensidade perscrutadora que me remeteu para os cinco anos.
Nunca foi amor, foi um equívoco.
Tive de cerrar os dentes para evitar despejar aos teus pés as confissões que aquele olhar fixo ameaçava absorver. Roubei inúmeros berlindes aos meus primos, senhora, entre os três e os seis anos. Gostava de os ver rolar pela montanha. Uma noite de primavera, senhora, desviámos todas as vacas de um pasto e escondemo-las num quintal vizinho. Pensámos que gostassem de passear. Foi eu quem partiu todas as lâmpadas da baía no tempo em que a eletricidade chegou, senhora. Mas só o fiz para preservar as estrelas. Roubei inúmeros barcos do porto, senhora, e fiz-me ao mar com eles durante noites inteiras. Mas devolvi-os sempre antes que os pescadores saíssem para a faina. Se neste momento a senhora me mandar esvaziar os bolsos, encontrará uma caixa com canabis. E se não o fizer, daqui a meia hora sentar-me-ei no topo da montanha e fumá-la-ei inteira para me libertar desta sensação opressora do seu olhar sobre os quatro ou cinco segredos que guardo dentro do buraco do coração.
E o teu sorriso plácido a deixar-se deturpar por um trejeito trocista. O malar desprovido de tensão. O canto esquerdo do lábio inferior preso por um canino. A expressão de superioridade da bruxa a embalar o momento. Uma energia menos humana que fez com que as minhas costas parecessem encostadas à parede do fundo e eu inteiro a encolher-me numa posição absurda, sem espaço para estas pernas enormes, onde já não cabem os cinco anos.
Depois libertaste-me naquilo que interpretei como um gesto magnânimo. Olhaste para a minha mão para me lembrares que ainda a tinhas entre os ossos e a carne dos teus dedos.
E achei as minhas vestes absolutamente deslocadas, ali, dentro da tua sala que era a minha própria rua, ao som do coro da orquestra numa noite de estreia do São Carlos. E temi que durasses todo o tempo que quisesses. E senti-me ridículo por ter achado que quase poderia vir a ter pena de ti.
Nunca foi amor. Foi um equívoco.
sexta-feira, 14 de março de 2014
José James - Desire
She appeared in the distance, like a prayer I had uttered once.
She appeared in my life, like a dream, only have remembered.
She entered my heart, stayed a while.
She entered my heart, stayed a while, made me the smile then gone.
Gone from my life, yeah..
I heard her love was like a burning flame of desire.. desire.
Baby, just set my body free.
Make me free to love.
Make me free to know, how it feels, to be loved.
How it feels to be loved in return.
There's some things you just gotta learn on your own, yeah.
Yeah, you gotta feel love ??!
I awoke from a nightmare, you're the only survivor to have felt love.
Planets spinning madly and I'm the only one to see it.
Fall through time, time do heal all wounds but mine.
Noone but myself to love, noone but myself to love.
But then, I awoke to your touch.
You said..
Baby, everything's going to be alright..
Everything's gonna be alright.
Everything's gonna be alright.
quinta-feira, 13 de março de 2014
Édens Sem Préstimo
“Ilha Imaginária, situada nem a Norte, nem a Sul, tem um clima moderado ou, para usar a expressão italiana, in mezzo tempo, é famosa pela atmosfera amena e deliciosa. Este paraíso natural não tem uma população que beneficie das suas belezas e riquezas. Tem cerca de cem léguas de perímetro e quarenta léguas de largura, e é inteiramente coberta de mármore e porfírio. A ilha é rodeada por uma balaustrada de mármore à qual ninguém se apoia para ver o mar, e orgulha-se de contar com dois portos seguros, sempre vazios. O primeiro é dominado por um rochedo semelhante a um bastião, situado num terraço que mais não é do que um enorme diamente protegido por canhões de ouro. Os alojamentos do porto foram talhados em pedra e o outro único edificio visível que lá existe é uma pequena construção de diamentes, corais e pérolas. O segundo porto é totalmente construído de aço. A Ilha Imaginária também é famosa pelas suas belas florestas, atravessadas por muitos rios e ribeiros – florestas de laranjeiras, românzeiras e jasmineiros que crescem duas vezes mais depressa do que cresceriam na Europa. Entre os minerais que nunca serão explorados contam-se o jaspe, a cornalina, a safira, a turquesa, o lápis-lazúli e o jade. As praias estão cobertas de conchas nas quais podem ser, mas nunca serão, encontradas pérolas. A fauna da Ilha Imaginária consiste em cavalos-marinhos, baleias, golfinhos, náiades e belas sereiras que fazem ouvir o seu canto nos lagos e rios. Nas florestas, vivem sátiros (tão modestos como os que existem na Ilha do Capitão Sparrow), veados amarelos, pretos e brancos, corças cor-de-rosa e cavalos azuis e vermelhos. Os elefantes, dromedários e unicórnios são comuns. Ao entardecer, os animais reúnem-se nos prados e associam-se ao canto das aves e das náiades. Os reis que governam toda a população animal são galgos, e os seus servos são leões, macacos e raposas. Embora conste que a carne de vaca e de carneiro saiba melhor aqui do que em qualquer outra parte do mundo, nunca ninguém a provou. Se alguma vez visitar a Ilha Imaginária, o viajante ficará por certo surpreendido com a extraordinária abundância de bichos-da-seda, semelhantes à variedade chinesa.”, in Dicionário de Lugares Imaginários, edições Tinta da China, 2013
terça-feira, 11 de março de 2014
Diário de Bordo: O resgate.
Nem só de pilhar, aterrorizar os mares e espalhar a malfeitoria pelo mundo vive esta brava tripulação corsária.
Esta manhã reunimo-nos todos à volta da piscina do navio para referendarmos uma eventual intervenção de resgate. É possível que o nível de insuportabilidade dos uivos histéricos e incontroláveis de uma certa cadela famosa tenham tido um peso superior à solidariedade natural entre membros da mesma organização criminosa. Seja como for, o resgate foi aprovado por quase todos. Álvaro de Campos absteve-se mas não estou certa que no momento da votação não estivesse em coma alcoólico.
Depois do referendo e respetivos festejos de vitória política, ocorreu-nos que não tínhamos nenhum plano para executar a nossa missão.
Expliquei que a minha experiência em matéria de descer ao inferno para tirar de lá pessoas se resumia ao facto de ter assistido ao Orpheu e Eurídice no fim de semana passado e sugeri que ensaiassemos uns passos de dança só para ver se acontecia alguma coisa.
Os ex-presidiários propuseram que se iniciasse um motim. O grupo dos poetas lançou-se na criação de uma ode. Os bloggers sugeriram uma petição on line pela libertação de Palmier. Guatiero, o Italiano disse que tudo se resolveria com a fé no amor, Andrminir, o cozinheiro pirata fez saber que nada faria enquanto não lhe devolvessem a Bimbi que empenhei para comprar livros e lexotans.
Nessa altura, Jack Sparrow - que ainda continua entre nós à espera que os patrões de Hollywood paguem o seu resgate e que mantém a convicção de que é o nosso coacher convidado para nos ensinar a lidar com a crise financeira - decidiu tornar-se útil e justificar o dinheiro que nos custa em sopa de algas e rum.
Sparrow, que sabe destas coisas, explicou-nos que o caminho mais curto para o inferno, quando se está a bordo de um barco pirata e se quer ir resgatar alguém, faz-se, nada mais nada menos, que descendo pela garganta de uma baleia.
Meia hora depois, armada de lenços, tapa-olhos, pernas de pau e sabres, esta brava tripulação deu-se por inteiro a comer à primeira baleia que nos avistou.
Aí chegados, fomos recebido por Jonas, omniresidente de todas as baleias do universo, que nos entregou um mapa dos trilhos terrestres e umas botas especiais para não escorregar no muco.
Devo dizer que, talvez por termos seguido por um atalho, não achei o inferno nada parecido com a descrição de Dante. Para minha deceção, não vi fogo, nem condenados vestidos como deus os pôs no mundo, desejosos de entabular conversações. Para ser sincera, até já trabalhei em gabinetes menos aprazíveis nos tempos em que era uma pessoa de bem e tinha uma profissão honesta.
Chegados à barriga da baleia, vi uma poça infesta que suponho ser Aqueronte (vão ver ao google) e uma barcaça que envergonharia o mais miserável pescador de qualquer porto algarvio dirigida por Caronte.
Como Caronte nos exigiu um euro por cabeça para nos conduzir ao inferno e nós só tínhamos dois euros, fizemos uma pequena reunião e deliberámos que seguiria apenas Jack Sparrow (experiente nestas coisas do inferno e ideólogo da missão) e eu própria (inimputável psicopata capitã deste navio).
Atravessado Aqueronte, exigi ser presente às autoridades para apresentar queixa por burla pelos dois euros da travessia da poça infeta.
Foi então que Hades em pessoa se nos apresentou e sugeriu que nos sentássemos numa pequena sala de reuniões de mobiliário Versace, preparada para nos receber.
Se não fosse o facto de o café que nos serviram ser escaldado e as chávenas não serem de porcelana, seria impossível dizermos-nos no inferno.
Hades, que partilha do meu terror pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pediu desculpa por aquilo dos dois euros e pela poluição de Aqueronte e, com o espírito de civilidade que eu me orgulho de inspirar nas pessoas, explicou-me tudo sobre a situação de Palmier.
O caso resume-se ao facto de Afrodite e Hera terem ficado irritadíssimas com a falta de preocupação estética de Palmier no instante do suicídio. Por ele, já a teria mandado embora não fosse a astronómica conta em dados móveis de internet que ela arranjou nas pouco mais de vinte e quatro horas que ali esteve.
Defendi-a do pecado estético com o argumento de que nunca quis realmente suicidar-se e tudo não passou de um momento Drama Queen com falhas na execução. Para isso, fui obrigada a explicar aquilo dos Óscares e a insinuar que a culpa seria de Pipoco Mais Salgado.
Meia hora depois chegámos a um acordo: Palmier será libertada, a conta da internet será enviada ao Pipoco Mais Salgado, Sparrow fica no lugar de Palmier (têm um problema com as estatísticas das entradas, lá no inferno) e eu e a minha tripulação pirata temos que partir imediatamente sem olhar para trás.
Selado o contrato, atravessei Aqueronte, ignorando o ar traído de Sparrow, dei a boa nova à tripulação (que ainda não percebeu que perdeu o seu refém) e retomámos o caminho de regresso à boca da baleia. Por momentos, pelo canto do olho, pareceu-me ver Álvaro de Campos olhar para trás. Mas, mais uma vez, não estou certa que nesse momento não estivesse em coma alcoólico.
segunda-feira, 10 de março de 2014
Orfeu
Eram os pés de Orfeu a dançar no palco mas era tua a expressão doente à procura do rosto de uma Eurídice por entre um amontoado de corpos.
Vi-a uma noite de agosto em que me deixei imobilizar pelos outros para, lá de cima, espiar-te a angústia de não me veres.
Como disse alguém, "Amar como deve amar-se. Com desespero."
Eram os pés de Orfeu a dançar no palco mas eras tu a atravessar o inferno sem nunca olhar para trás.
Orfeu desceu ao inferno para resgatar Eurídice do reino dos mortos.
Tu para me entregares pela tua mão.
No final, ambos choraram equitativas miligramas de lágrimas.
E tanto eu como Eurídice ficámos presas no inferno.
quarta-feira, 5 de março de 2014
But she new in her heart that he could not stay
Oh she was a the fairest in Trinidad
And he was a wandering sailor lad,
But she stole his heart as no other had
Tomorrow, tomorrow we will meet once more
In the old village square,
So wait for me darlin' and I'll be there.
The moon was so young and their hearts were gay,
I'm yours for ever he heard her say,
But she knew in her heart that he could not stay.
Tomorrow, tomorrow we will meet once more,
In the old village square,
So wait for me darlin' and I'll be there.
Now her heart is sad as he sails the sea,
And I heard her sigh, "Oh come back to me",
And the wind in the waves whispered mournfully,
"Tomorrow, tomorrow we will meet once more,
In the old village square,
So wait for me darlin' and I'll be there."
Tomorrow, tomorrow, tomorrow, tomorrow
terça-feira, 4 de março de 2014
Exílios
Por estes dias completam-se quatro anos desde o início da minha itinerância.
Vivi no meio do mato. Vivi no meio do mar. Vivi numa estância balnear abandonada. Vi carrinhas desconhecedoras das siglas ASAE que vendiam peixe fresco e percebes à porta de casa e me serviam de despertador aos sábados de manhã. Vi mercearias do tamanho da minha sala onde se vendia de tudo, desde aquecedores a cromos para cadernetas, candeeiros, papel higiénico e sapos de louça. Vi carros enfeitados com cornos de carneiro, velhas enlutadas de meias de lã grossa em pleno julho, céus plantetarizados, estrelas cadentes a mergulhar no vapor quente que saía da terra. Vi reformados perderem a reforma num mau dia de sueca, bailaricos de matinée com homens com cheiro a restaurador olex, marchas populares ao som de gira-discos de vinil, procissões intermináveis com crianças gordas vestidas de anjo e santos de madeira carunchosa carregados por políticos eminentes. Vi sapos enormes, baratas de vários tamanhos, com e sem asas, águias, milhafres, cegonhas, doninhas, golfinhos, tubarões de terra e de mar, ouriços espinhosos, esquilos atrevidos. Fui adotada por um galinheiro completo, por um gato preto de olhos verdes que, à noite, vigiava a minha casa e por uma família de grilos que se instalou debaixo do meu sofá.
Vi faróis comandados por homens suspeitos, vi faróis comandados por mulheres de coração grande, vi faróis comandados um computador desumano.
Vi tempestades que se desembrulharam debaixo da minha cabeça e me fizeram acreditar que talvez o mundo acabasse mesmo nos próximos minutos. Vi arco-íris duplos que me suspenderam a respiração e me fizeram acreditar que talvez no final do arco houvesse mesmo um pote de ouro guardado por um duende.
Vi homens adultos chorarem, tremerem, arrependerem-se, prometerem vinganças terríveis, ficarem indiferentes. Tudo com sotaques diferentes. Vi mães perderem os seus filhos e filhos serem devolvidos às suas mães. Vi pessoas que foram tratadas como animais e mantiveram a dignidade humana. Vi o processamento do perdão dentro do peito das gentes duras.
Vi todas estas coisas da única forma que se podem ver as coisas sem que saibamos se são reais. Vi-as sozinha.
Conduzi em noites de neblina opaca por entre estradas estreitas e atropelei animais selvagens. Fiz a agenda no decalque dos horários dos aviões e passei demasiadas horas na sala de espera dos aeroportos. Encontrei sempre a casa mas a casa era sempre diferente. Morei em casas com vista para a praceta da aldeia, em solares com janelas voltadas para pastos estendidos até ao mar e em condomínios privados voltados para lojas de praia fechadas.
Chorei sempre duas vezes em cada um dos sítios onde vivi. No primeiro e no último dia. E sempre no caminho.
Escolhi o exílio para salvar a alma mas a alma pegou-se ao exílio.
E agora que sei que está na altura de voltar para casa, não sei se consigo voltar para casa.
domingo, 2 de março de 2014
...
Gualtiero, o Italiano:
- Se não gostas do amor porque lês esses livros?
Cuca, a Pirata:
- Para saber exatamente onde lhe espetar o sabre, claro.
- Se não gostas do amor porque lês esses livros?
Cuca, a Pirata:
- Para saber exatamente onde lhe espetar o sabre, claro.
Os homens que nos amam a todas 2
(...)
Porém há tanto homem infeliz
que necessita de muita atenção,
depois confunde tudo o que se diz e vai
embriagar-se por qualquer razão.
Eu não sei de onde sai
tanta gente a precisar de um coração
que me toma por um anjo,
nem pergunta se eu desejo
a sua afeição.
(...)
Os homens que nos amam a todas
Um dos motivos pelos quais vim para Pirata foi para fugir dos homens que me amam.
Neste navio ninguém me ama e, parecendo que não, esse é um factor não desprezível no aumento da minha qualidade de vida.
Como a minha existência tem o condão de se pautar pela falta de originalidade, sou obrigada a presumir que não haja mulher com mais de trinta e cinco anos que se preze que não tenha pelo menos cinco homens na sua vida que se dedicam à tarefa de amarem loucamente. Claro que falo de um amor especial. Falo daquele tipo de amor louco, permanente e insistente que alguns homens conseguem manter durante toda a vida, enquanto vivem a dita, a fazer outras coisas mais interessantes, como por exemplo, ir viver para África, viajar pelo mundo inteiro e estar casado com outras.
Os homens que me amam são pessoas fantásticas que, contrariando o mito de que o sexo masculino não consegue fazer mais do que uma tarefa de cada vez, ocupam-se da atividade de me amar profundamente ao mesmo tempo que fazem safaris no Quénia, enfiam anéis de brilhantes da Tiffanys a outras, limpam o ranho dos filhos e compram tampões para as respetivas mulheres nas raras fases em que não estão grávidas.
Estas criaturas maravilhosas carregam com elas o seu eterno e omnipresente amor por mim enquanto vão vivendo vidas feitas de um sacrifício atroz, sempre em nome de um interesse superior, que tanto pode ser a necessidade de construir uma carreira internacional como a simples obediência ao dever moral de estarem para ali, até que a morte os colha.
Quando o tédio do quotidiano os faz sentir tão miseráveis que até parece que estão já mortos, resta-lhes o consolo interior de se saberem pessoas especiais, consistindo tal especialidade na circunstância de me amarem para sempre. Nessas alturas, imbuídos pela grandeza da paixão que há tantos anos sentem por mim, os olhos brilham-lhes, os lábios entreabrem-se para deixar escapar um profundo suspiro, a consciência desse sentimento garante-lhes a congregação das duas gotas de adrenalina que lhes circulam nas veias, as suas vidas assumem as cores do grandioso sacrifício que fizeram e o espelho lá de casa devolve-lhes a imagem de um Ulisses que um dia há-de retornar a coisa nenhuma.
Os homens que me amam seriam mais suportáveis se aquela nefasta reunião das duas gotas de adrenalina que ainda lhes restam não os levasse, invariavelmente, à urgente necessidade de entrarem em contacto comigo - estatisticamente falando, quando eu estou a dormir, a trabalhar ou a comprar sapatos - para me comunicarem o facto de, contra todas as expetativas e pese embora as minhas preces noturnas, ainda me amarem loucamente. Depois da comunicação sofredora, uma vez cometida esta loucura arriscadíssima que quase mudou radicalmente o curso das suas vidas, as harmonas lá se recompõem, África parece mais confortável, o ranho dos filhos mais doce, os tampões das mulheres menos deprimentes e torna-se mais fácil retornarem à tarefa de me amar loucamente enquanto vivem as suas vidas.
Estes homens que me privilegiam com o seu amor, é claro, não me têm qualquer préstimo. Não me mudam os pneus do carro, não me fazem canja quando tenho gripe, não me lavam o cabelo, não testemunham a minha vida, nem sequer me aparecem na frente. A sua missão é carregarem ao longo das suas vidas o seu inútil amor por mim e comunicar-mo comovidamente, pelo menos, a cada seis meses. Também me telefonam todos no dia do meu aniversário, normalmente, de seguida, por forma a que, nalguns anos, já me interroguei se estariam todos na fila da mesma cabine telefónica.
Os homens que me amam, antes de eu vir para Pirata e cortar amarras com a minha existência anterior, eram uma praga metafísica na minha vida.
Além de me interromperem o sono, o trabalho e o prazer da aquisição de sapatos, eram a armadilha dos dias maus. Aqueles em que a falta de horas dormidas, o cansaço da labuta ou a inexistência do número 36 naquelas sandálias fantásticas, me rasteiravam um pé e eu caía na asneira de me perguntar se a minha vida poderia ter sido mais feliz se se desse o caso de algum desses homens que me amam não ser tão obscenamente cobarde.
Além de me interromperem o sono, o trabalho e o prazer da aquisição de sapatos, eram a armadilha dos dias maus. Aqueles em que a falta de horas dormidas, o cansaço da labuta ou a inexistência do número 36 naquelas sandálias fantásticas, me rasteiravam um pé e eu caía na asneira de me perguntar se a minha vida poderia ter sido mais feliz se se desse o caso de algum desses homens que me amam não ser tão obscenamente cobarde.
Aqui, sentada no deck deste navio, com o "Estudos Sobre o Amor", do Gasset, caído sobre o colo e a lua a brilhar na minha frente, não tenho a menor dúvida que a resposta é uma rotunda negativa.
sábado, 1 de março de 2014
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