segunda-feira, 30 de junho de 2014

Impostores

Diz Borges, a propósito de Arthur Machen, que toda a ficção é uma impostura e que o interessa é sentir que foi sonhada sinceramente.
A pretexto da escrita de um conto que me atormenta, ocorreu-me que a frase é igualmente válida para o amor, esse impostor por excelência.  
Se o amor é um Frankenstein composto por ilusões, esperanças, enganos e substâncias químicas isoláveis em tubos de ensaio, então, o máximo que podemos esperar do seu objeto é nos sonhe sinceramente.  
Ninguém tem culpa de acordar.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Tetsubin

Jantámos os dois na companhia um do outro, embora separados por muitos quilómetros de distância e na presença de terceiras pessoas. 
Entre o chá verde e o sashimi, a veemência do protesto da ausência fez-me aterrar sobre a mesa com tal velocidade que confundi os interlocutores.
- sabes o que é um tetsubin?
- um vestido de japonesa?
Ainda pensei em iniciar uma dissertação sobre a arte do chanoyu, a temperatura da água e a intensidade do sencha, mas deixei-me vencer pelo desalento.
- é uma chaleira.

Love more


Chained to the wall of our room
Yeah, you chained me like a dog in our room
I thought that's how it was
I thought that we were fine
Then the day was night
You were high, you were high when I was doomed
And dying for with no light, with no light

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Sabres

Do cabo à ponta da lâmina: A distância mínima que é obrigatório conservar entre opositores com sentido de honra.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Todos os Poetas são magos


Um Sistema de Relação

Considere-se o caso em que A é igual a 1.
Obtém-se a função ípsilon igual a X à vida inteira
partindo da convicção que nenhum amor é para sempre
sendo A o mínimo absoluto do que és capaz de amar
e 1 uma falha de expressão comum ao tempo
em que sofrias fechada num quarto
a sentir uma régua de luz com origem sobre o teu rosto
a definir a região inundada do teu espaço
à medida que o tempo ocupa uma parte da cidade
e a tua situação representada numa estação de comboios
onde o esquema da vida se define por perpendiculares
aos dias cruzados na tua memória
sendo cada dia um gesto que te posiciona
em relação a todos os medos
mentiras de origem abjectas
e a proporção de ípsilon na mais estranha irracionalidade
no centro de um jardim onde se passeia geometricamente
apenas com o pensamento intimamente ligado
por símbolos de circunferência e dimensões harmoniosas
comparando o valor da vida à mais bela arquitectura
da experiência e da perda
um processo prático desenvolvido no laboratório
das horas mais simples e gráficas
ordenadas de uma forma circular
no teu caso um valor compreendido
entre duas questões humanas
por comparação do que foi destruído
pois há uma maior concentração de tristeza nos teus olhos
se designarmos por sofrimento algumas atitudes provocadas por 1
e se traçarmos duas rectas de amor paralelas à desigualdade de amar
e que passem pelos dias intuitivamente felizes
nesse quarto classificado de nuvens pesadas
onde a tua vida é agora inferior à média da felicidade
se concluirmos que o estado de ser feliz é um ponto diário
que varia de predominância e influência
nos tempos nulos condenados e negativos
na figura mínima encostada ao balcão do álcool
numa noite de cubos de gelo
e o que uma bebida especial
servida à mistura com a estratégia das palavras fez dos teus planos
calculando agora o valor referente aos lucros do amor e das promessas
introduz as marcas do teu corpo e obténs as medidas do teu prejuízo
define o tempo correspondente a cada acto de amor
seleccionando o menu da tua experiência
e tens uma lista que confirma o historial da tua personalidade
para que função o problema X tem significado
se o volume da tua casa tem todas as janelas fechadas
e o teu corpo é um fio de comprimento que mede a solidão dos dias
ou se os teus braços já não traçam uma recta de prazer abaixo da cintura
ou ainda se o teu sexo é um foco distante que se fecha em curva
e não há intersecção nem arco entre dois corpos
considerando as arestas da tua vida propriedade de defesa
uma estimativa do tempo ao fim do qual tudo se perde
e tens deste modo um amor protagonizado pelo desespero
sujeito às regras da obediência e da ilusão.

Fernando Esteves Pinto

Mundial

Neste navio estamos indecisos entre atribuir as culpas da desgraça a Gualtiero, o Italiano, ou Andhirmnir, o cozinheiro Pirata.
Talvez o último, que sempre é nórdico.

Condição de boneca


O calor do dia aliou-se ao fumo de um incêndio próximo e juntos rastilharam a febre dentro dos meus pulsos. 
Adoeci.
A dona da casa saiu para apanhar azáleas e perdeu o espírito na rua. 
Foi então que o rapazinho chegou para brincar com a sua boneca.
- As bonecas devem conservar-se a temperatura amena.
Lembrou-se ele enquanto me sentou num sofá branco climatizado e experimentou nos meus pés minúsculos sapatinhos de renda.
O oxigénio não me chega aos pulmões e do outro lado do vidro há uma lua que se enubla a cada instante que voa.
O rapazinho passa-me do sofá para a cama de brilhantes, não sem antes me escovar os cabelos de nylon e me descalçar os sapatinhos.
A dona da casa saiu para apanhar azáleas e caminha fresca por entre uma vereda com vista para o cheiro do mar.

Enchem-me de pulseiras coloridas os pulsos da febre. 
Na minha confusão, sabem-me a algemas.

- Gosto muito da minha boneca.
Lembrou-se ele enquanto me arrastou, de cabeça para baixo, na direção de um carrinho.


A dona da casa saiu para apanhar azáleas e manda dizer que só volta quando a noite voltar a estar respirável.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Ex-notas

Entre as minhas notas antigas, encontro a seguinte frase: "A loucura do acaso e a lógica do destino."
Garante-me o registo que misteriosamente me dei ao trabalho de fazer que a frase é de Nabokov, Contos Completos I, página 317.
Mas o destino não obedece aos cânones da lógica. E há pouca coincidência, e menos loucura, no acaso.
A frase é falsa.
Apago-a rapidamente, como se apagasse uma fotografia comprometedora arrancada num instante de distração.
Pergunto-me quando terá sido escrita, que histórias andava eu a tentar contar a mim própria e se me terei deixado convencer.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

A morte branca



A verdade é que tenho andado indecisa entre combater esta tosse suspeita ou aceitá-la na perspetiva da oportunidade de morrer como heroína romântica.

Marie Duplessis, por exemplo, foi uma desprezivelmente fútil cortesã que nunca fez nada de relevante na sua curta vida. Suspeito que não teríamos ouvido falar nela se não se desse o caso de, na ruína e já sem novos homens por perto para arruinar, ter tido a excelente ideia de se deixar morrer de tuberculose.
A literatura eternizou-a na Marguerite Gauttier de "A Dama das Camélias". A música, na Violeta Vallèry de "A Traviata".
Talvez a designação "morte branca" se deva menos ao estado final de absoluta palidez das vítimas, do que à capacidade da doença de branquear a negrura das condutas.
Desde que se morra dela, é claro.





quarta-feira, 11 de junho de 2014

E ainda o cheiro do mar


O som de um saxofone a brilhar no crepúsculo das paredes. As asas da traça de encontro ao vidro da janela fechada. A nuvem de fumo que se acolhe na lâmpada. Uma mancha minúscula a estender-se para lá da ombreira. A folha branca que a ventoinha propulsiona em voo tropeçado. Moléculas de pó que me caem das clavículas e se arrastam pelo chão. O teu nome escrito a dourado num sobrescrito esquecido. Duas memórias rasuradas.
É interminável a lista de desesperos que aprisiono dentro desta sala. 




terça-feira, 10 de junho de 2014

Eu sei, diz-te a canção do medo...


Amor epistolar 1

Percebo agora que nem no alto mar é possível preservar o coração embrulhado em celofane.
Esta que vos escreve, à semelhança de todos quantos habitam o mesmo navio, não escolheu a vida de pirata apenas pelo gosto sanguinário do crime, o bálsamo do cheiro da liberdade na onda de uma maré, ou essa balada quotidiana que nos embala o coração de ciganos dos mares. 
Aqui, todos fugimos de alguma coisa e eu escolhi fugir do amor.
Mas Eros, a criança assassina, tem formas ardilosas de nos fazer olhá-lo dentro dos olhos, deixando-nos presos do reflexo do nosso próprio sorriso de basbaque.
A minha correspondência com Herberto, o escritor, iniciou-se de uma forma acidental e imbuída do espírito de inocência que sempre gera os mais insolúveis dramas humanos.
Passaram-se três meses. Contam-se mais de vinte cartas.
Será possível amar-se alguém que nunca se viu?


Quadro de René Magritte

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Diário de Bordo

Numa tentativa de aplacar o meu mau humor da última semana, e sabedores das minhas manias do domingo como dia de elevação espiritual, ontem, a tripulação decidiu organizar uma sessão de cinema surpresa.
Gualtiero, o Italiano, com a ajuda de dois dos ex- presidiários, pirateou na net o filme Tabu; as bloggers fizeram pipocas salgadas com recurso a uma receita milenar; Álvaro de Campos, o engenheiro, menos alcoolizado do que o habitual e com a colaboração do resto dos ex-presidiários, construiu uma pequena sala de cinema dentro da piscina; Adhriminir, o cozinheiro pirata usou a bimby para nos fazer um mojitos e os poetas preparam uma bonita apresentação do filme em que não faltaram as metáforas sobre amores impossíveis e intrépidos exploradores que almejam sentir na carne as dentadas de um crocodilo melancólico.
Assisti à sessão sentada ao lado do meu ex senhorio da planície, o israelita da Mossad que, insistindo em manter o disfarce de pacato alentejano, fingiu dormir dois terços do filme. 
No final da sessão, contagiada pela consternação da plateia com a intensidade do drama romântico, levantei-me, pedi desculpas pelo meu humor e justifiquei-o com um desgosto amoroso.
Nessa altura, o Israelita da Mossad fingiu acordar, limpou o fio de baba que deixou escorrer pelo queixo para dar um ar realista à falsa soneca, ensaiou uma expressão estupefacta e perguntou de forma não completamente impertinente:
- Homessa... mas se está aqui fechada neste navio e não anda com ninguém... como conseguiu arranjar forma de lhe partirem o coração?
Expliquei-lhe, com a paciência que me caracteriza, que apesar de tecnicamente ainda não me terem partido o coração, tendo eu desenvolvido um recente interesse por um homem é certo e sabido que tal acabará por acontecer. E que, assim sendo, decidi queimar todas as etapas intermédias e, evitando perder mais tempo, entreguei-me já à fase final do processo que consiste em deixar-me cair num profundo e intenso estado de desgosto.
A minha tripulação, pese embora tenha deixado transparecer alguma dificuldade em perceber o meu argumento, mostrou-se mais empática do que seria de esperar.
Álvaro de Campos, que ontem estava num dos seus melhores dias, escreveu mesmo um poema para mim, que, generosamente, passou a recitar:

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos de criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir. 

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçaram-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles dez de mim.

(...)

Ia ele neste verso quando foi abruptamente interrompido pelo meu ex-senhorio, Israelita da Mossad que, tornou-se claro, tinha passado os últimos minutos à procura de uma solução.

- Você precisa urgentemente ir para a cama com alguém...

Constatei que não me tratou por tu e fiquei satisfeita por, finalmente, ter adoptado para comigo um tratamento respeitoso.
Os domingos são dias bons.

domingo, 8 de junho de 2014

Serpentes


Em tempos, engoli a Serpente.
Agora, a música despertou-a e a ela espreguiça-se.
De encontro às paredes do meu estômago.

Quadro de Gustav Klimt, Sea Serpents (detalhe)

por mais distância que corras, por mais dias que passem, de teu coração não conseguirás escapar


“Mas se as pernas avançam por vontades superiores, soberanas ou divinas, já o coração, o mais insolente músculo de toda a anatomia, dita, em paralelo, outras razões para amar. Pobre homem, o infeliz. Pois o caprichoso órgão manda mais que rei e interno e aqui revelamos a verdadeira lei da expedição: percorrer os confins do mundo, afastar-se das terras onde viu morrer, sem que à morte pudesse obstar, a sua querida e doce esposa.
Intrépido é o explorador. Mas por desespero, taciturno e melancólico, a triste figura agarra-se em consolo pelo planalto inóspito e, por mistérios que o homem não explica, recebe em visita, de lugares ainda mais longínquos, aquela por quem o coração lhe suplica. Vestindo – oh pormenor de acentuada morbidez – o rico vestido que a amortalhou quando à terra desceu.
- Por mais distância que corras, por mais dias que passem, de teu coração não conseguirás escapar.
- Então morrerei.
- Triste e pobre infeliz.
Submerso em turvas águas, um crocodilo aguarda o seu momento. 
O intrépido explorador bem sabe que neste rio encontrará o seu destino. 
Os seus homens testemunham o horror. O explorador despede-se da vida.
A noite cai sobre a savana e mil e uma noites cairão após essa primeira.

Nesse tempo, depois dele, por mais absurdo que pareça a todos os homens de razão, há quem jure a bom jurar ter avistado demoníaca visão: um crocodilo triste, melancólico, acompanhado por uma dama de outros tempos. Inseparável par que um misterioso pacto uniu e que a morte não pode quebrar."

do Prólogo de Tabu (Miguel Gomes, 2012)

Meia lua menos uma dentada

Há quem acredite que tudo aquilo que existe no mundo, desde  a substância agregadora das coisas até à célula génese do pensamento, são transferências de energias.
E há também quem creia que a energia das emoções, uma vez ultrapassada a carga processável pela mente, se dissipa pelo cenário que as envolve e se deixa cair, arrefecida, sobre as coisas. Cobrindo-as com um manto feito dos mesmos fios com que foram tecidos os sentimentos. De tal forma que, um simples banco de jardim, tanto pode assumir a sombra soturna da memória do último fôlego daquele que nele foi assassinado, como o brilho solar da felicidade de um casal de namorados que, sem sequer ver o banco, ali se sentou para se beijar. 
E foi para tentar perceber quanto tempo resiste nos locais esta forma de energia que ontem, depois de a lua se erguer, segui os nossos passos da noite anterior. 
Na calçada junto ao rio encontrei, espalhados, restos de uma felicidade de véspera que, assim, abandonados a céu aberto, me pareceram indecorosos, quase decadentes.
E enquanto me baixava para recolher do chão a energia das emoções sobejantes, olhei para a lua, quase perfeita meia lua, e percebi que alguém lhe deu uma dentada.



sábado, 7 de junho de 2014

Tabu

Vi o filme, conheço a história, sei o final.
Nada ficará por dizer.

Splash chop tzzzz

É óbvio que Vigny - que terá dito que, contrariamente ao clamor (que pode ser estrangulado), não temos como nos vingar do silêncio - nunca teve oportunidade de reflectir sobre a utilidade marginal do objeto telemóvel e os elevados poderes terapêuticos contidos no gesto de o atirar à piscina.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Descalça

Dizem-me, para me consolar, que as pessoas que estão habituadas a decidir o destino das outras são as que mais sofrem diante de um cruzamento quando se trata de decidir o seu próprio caminho. 
Hoje é um bom dia.
Também à alma se aplica o processo de distensão muscular que se segue ao acto de descalçar uns sapatos exageradamente apertados.
Com a escolha irreversível já formalizada; com o destino codificado num papel a caminho de um lado qualquer; com as consequências ainda distantes do gesto, apenas o alívio de uma decisão. 
Nem importa se boa ou má. 
O alívio doloroso dos pés finalmente descalços. 
E esta chuva. Como se até as nuvens não suportassem mais um grama de peso.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Pé de Pirata Snob-chic

"Afundo um pouco o rio com os meus sapatos 
Desperto um som de raízes com isso
A altura do som é quase azul"
Manoel de Barros

domingo, 1 de junho de 2014

Grandes Filósofos



"Amar é sofrer. Para evitares sofrer, não deves amar. Mas, dessa forma vais sofrer por não amar. Então, amar é sofrer, não amar é sofrer, sofrer é sofrer. Ser feliz é amar, ser feliz, então, é sofrer, mas sofrer torna-nos infelizes, então, para ser infeliz temos que amar, ou amar para sofrer, ou sofrer de demasiada felicidade - espero que estejas a perceber."

in Love and Death, Woody Allen

Eros, esse arqui-inimigo

"O amor é uma cama, 
feita de pedras e lama, 
É o que há de mais negro em nós; 
É um corte, um percevejo, 
É o lado mau de um beijo 
É uma valsa dançada a sós."

Prana, A Valsa do Cupido, Esse Sacana

Entre a quinta e a sexta estrofe

Deitados nas espreguiçadeiras do convés:

- Suponha que entre a quinta e a sexta estrofe, por exemplo, me apaixono por ele?
- Porque haverias de fazer isso?
- Sei lá porquê! Não seria coisa inédita. Às vezes acontecem-me coisas non sense. 
- hum, já sei... A mítica tendência dos piratas para a bizarria ...
- Não se ria. O caso pode ser sério! Esta noite sonhei com ele...
- Está na altura de voltares comigo para a amnésia imensa da planície. Ambos sabemos que este navio acabará estacionado na barragem de santa clara.
- Não quero ouvir nada disso! Estou farta de si e da sua organização manipuladora ... 
- A propósito de manipuladores, ouvi dizer que Napoleão...
- Nem mais uma palavra! Amanhã quero-o fora daqui! E trate-me por senhora!!!! Exijo-o!!
- Pronto, pronto. A senhora desculpe-me por não lhe aconselhar o mergulho em profundidade nas águas infestadas por tubarões...
- Estás a irritar-me tanto... Que sabes tu sobre o amor, afinal?
- Tanto quanto tu. Nada de nada. E então? Posso dizer aos velhos da praça que voltas para a planície? 

Um quadro onde passar a noite

Edgar Degàs