quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

O céu de 2015


Dois zero um seis



A nostalgia está para a natureza Pirata como a lama para as vestes brancas e nós aqui, neste navio, já todos perdemos demasiadas coisas para ainda nutrir pelas despedidas, quaisquer despedidas, outro sentimento que não o de profunda indiferença, quando não verdadeira, pelo menos fingida. 
Não obstante, gostamos de festas e acarinhamos qualquer pretexto para beber rum e usar os excêntricos fatos de Pirata que mandámos vir da loja dos chineses, por alturas dos saldos do Carnaval.
Além do mais, não há olhar que sob as luzes certas não pareça mais brilhante. E o brilho, como o comprovam os nossos cofres, é coisa que nos é cara. 
Acedemos, então, não a despedir-nos de 2015 mas a festejar a chegada de 2016, esse novo ano que já nascerá sob o excelente auspício da nossa mão a embalar-lhe o berço. 
Aportámos numa marina anónima perto de si, ao lado de um iate de luxo que por esta altura já terá a despensa aliviada de Caviar, Moets e passas. O melhor prato de Andrihminir, o cozinheiro Viking, é aquele que rouba já pronto a comer.
Álvaro de Campos preparou o seu tradicional poema de boas vindas ao novo ano. Se tudo correr de acordo com o previsto, não estará em condições de o recitar. 
Os presidiários engalanaram o mastro do navio com os restos das luzes que enfeitavam a vaca que fizemos nossa na Lapónia, no último Natal.
Gualtiero, o Italiano, ignorando os meus protestos, organizou um baile de pernas de pau submetido ao tema "amore".
Os poetas, como é sua função, passaram a manhã ocupados a tecer o manto de esperança com que cobriremos o recém nascido. 
Os bloggers residentes, sempre imprestáveis nesta altura do ano, estão todos no convés, agarrados aos respetivos iGadgets, à procura de coisas boas para dizer sobre o moribundo 2015.
Esta vossa capitã colecionadora de céus, daqui, deste posto de vigia com vista para o Atlântico, deseja-vos a todos aquilo que mais importa: que vivam.



quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Passagens

Fui princesa em Barcelona e usei a mais perfeita tiara cravada das pedras do amor. Senti na boca o pó do deserto e o frio amanhecer em Abu Simbel. Atirei a moeda na Fontana de Trevi sob o céus de Roma em fogo. E até já fui apenas eu nos escombros de um lar sem espelhos. 
Mas a mais memorável passagem de ano, foi, sem dúvida, esse ponto máximo da decadência, em que, algures nos anos noventa, num apartamento de férias emprestado pela prima de uma patroa de uma tia de um amigo de um ex-namorado surfista, um cão comeu-me um livro de Raymond Carver e ninguém soube entender a minha tristeza.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

La vie en rose


Desastrada canção

Ao Rui Costa
(1972-2012)


Nunca és tu na porta que se fecha.
É apenas o vento sueste,
a dizer-me que não vieste 
e que já nada há aqui que mexa.

Não és tu no eco de certa voz.
É outra declinação do meu nome,
a soar-me ao teu silêncio atroz 
preso à eternidade que dorme.

E também não és tu na fotografia
Impressa nas páginas mais tristes
que ao mundo, esvaziado, anuncia
o erguer da manhã onde inexistes.

Poderá ainda haver um gesto teu 
na papoila que se balança lenta 
ao ritmo das notas da lira de Orfeu
E o fracasso de Eurídice lamenta.

(Tentei recuperar-te nos escuros confins do Hades,
mas falhando todas as notas e olhares  perdi-te tardes)

Ou serás tu no verso de um poema azul,
tecendo a inocência mágica das estrelas,
ou rosa-dos-ventos desorientada a Sul, 
desenhando o inverso cego das letras.

Mas serás tu, por certo, 
no mais digno vértice da minha inquietação,
Onde semeaste a planície de liberdade
que deixaste como penhor da saudade,
E serás, por fim, nesta desastrada canção. 

domingo, 27 de dezembro de 2015

Fragilidades

Convencionámos, então, chamar-lhe fragilidades. 
Como se fora o sentimento, se não uma abjeta deficiência, daquelas que se escondem para poupar o horror de terceiros, pelo menos, uma amputação espiritual, das que se ignoram para evitar o desgosto próprio. 

Dentro dos bolsos

As velhas colunas do café chutavam Cat Empire enquanto contavam a toda a gente a história da tua vida. Toda a gente era apenas um pescador de cabelos desgrenhados; a velha de lábios esborratados de vermelho; um casal sentado em frente de um descafeinado clandestino; o poeta enlouquecido e um caniche estirado na soleira da porta. Pensei que, com exceção do caniche, o teu segredo estaria a salvo. Três moscas faziam uma estranha dança em redor de uma daquelas lâmpadas de halogénio. Ao longe, um copo partiu-se de encontro ao chão e ninguém apanhou os vidros. Nenhum carro passou na rua e esse estranho facto uniu-nos a todos, talvez para sempre. 
Troquei um sorriso pela canção, tal como me disse a música que o fizesse. Levei a mão esquerda ao bolso vazio para verificar se ainda trazia junto a mim as tuas palavras. Traquilizou-me o nada nas pontas dos dedos. Aqueci os lábios com o café. O poeta enlouquecido desenhou um unicórnio prateado no guarnapo de papel. 
Ainda antes de amanheceres haverias de sonhar este café; sofrer a angústia do casal que se separa para o dia; recordar o baton vermelho num sorriso de há muitos anos; ser um pescador num café esquecido; encontrar no teu bolso, junto ao peito, o desenho de um unicórnio prateado. 
Amar, já acordado, a breve e indecifrável memória de uns lábios aquecidos.


AQUI

Aqui estamos na laguna
em uníssono 
escondidos e escuros.
Aqui na esplanada 
e os pombos invejam 
o modo como respiras.
Aqui na Quinta Avenida
e tu dizes que os sacos 
valem mais do que as compras.
Aqui competimos 
com a neve
para ver quem acorda o outro.
Aqui fechei os olhos.
Aqui magoaste um pé.
Aqui libertámos 
os Campos Elísios.
Aqui tentámos em casa aquele vermelho 
que vimos no museu.
Aqui nadaste de costas.
Aqui parámos na berma.

Aqui é Lisboa,
estou sentado no chão 
com fotos nossas,
e todos me garantem 
que não tirámos nenhuma.

Pedro Mexia, in, uma vez que tudo se perdeu, Tinta da China, pg. 35.

Cuca, a Pirata também fala sobre isso do dia perfeito

Acordar cedo. Ser domingo em Lisboa e excecionalmente não ter de partir. O cheiro do Natal dentro de casa, já não sendo Natal. Um sol que não estraga o frio. Folhas douradas a caírem do céu. Encontrar na livraria os quatro livros que procuro e regressar a casa para os ler. O ressonar preguiçoso do cão. 
Abrir o primeiro livro e encontrar estes versos de Fiama:
A alegria das coisas não é a posse
mas a semelhança delas com os nossos dedos. 
Nem as coisas têm forma própria 
mas a que lhes dá a mão, usando-as.

Não haver outro tempo que não o da rotação da terra. 
O dia perfeito é o presente.


sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Sobreviver

E daqui a poucas horas poderás viver como vives o ano inteiro sem que isso importe a quem quer que seja. 
Hossana! 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Diário de bordo


Esta manhã chegámos à Lapónia. O plano era roubar ao Pai Natal todos os presentes de todas as crianças do mundo. 
A dificuldade técnica consiste no facto de até agora ainda não o termos encontrado. 
Usámos da discrição possível para perguntar a uns locais se já teria partido para a distribuição atempada de presentes. 
Riram-se de nós de uma forma que me pareceu deveras suspeita. 
E embora toda a minha tripulação me tenha garantido que é um estado de paranóia causado pelas baixas temperaturas, a verdade é que passei o dia com a vaga sensação de que toda a gente sabe qualquer coisa que não me quer contar. 
Registo ainda que também me causa uma certa suspeição esta insistência generalizada para que beba mais gögli. 

(Feliz Natal.)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Fazer as malas para o Natal

E é preciso fazer as malas para o Natal. Escolhendo os vestidos que melhor combinarão com a temperatura regulamentar do coração. No cuidado de deixar tudo quanto não se possa embrulhar com fita vermelha. Ou não se apreste ao sorriso profissional de duende. Ou deturpe o sabor ancestral das filhós. Receitas antigas. Mesas perfeitas. Pacificação de calendário.
Como farão aqueles que não são obrigados a selecionar o que levam para o Natal?

A mais longa noite

E adensou-se, do outro lado do mar, a noite ignota.
A que já caiu sobre os passos desacertados;
A que tingiu de violeta um olhar endurecido;
A que arrefeceu uma mão vazia de outra. 
A noite que, de tão distante, já quase não sei
E que te espera no silêncio dos espelhos,
Onde eu ainda anoiteço em ti. 



sábado, 19 de dezembro de 2015

Com margem de erro de onze dias

Foi o melhor ano da minha vida. Como nada aconteceu, aconteci-me eu mesma. 
A indigência sentimental é o fértil solo da pacificação do espírito. Creio nem uma única vez ter-me angustiado mais do que o estritamente necessário à minha própria sobrevivência. O resto foram amanheceres azuis, inícios de tarde de sol a pique, finais de dia submersos por fios de ouro, noites de estrelas brilhantes vigiadas por superluas várias. Umas azuis, outras de sangue, tanto faz. As manhãs cinzentas e as noites brancas que suponho também terem existido, já esqueci. Se a indigência sentimental traz a pacificação do espirito, a segunda traz a aprendizagem do esquecimento.
Tive menos saudades.
Reencontrei Nabokov e Montesquieu e Melville e Kafka e Ruy Belo. Terminei todos os Borges e Ibsen, o David Foster Wallace, alguns Machado de Assis. Por razões de estética circular, guardei para os últimos dias do ano o grande Herberto com que o comecei. São estas pequenas coisas que nos mantêm a vida penhorada e eu creio mesmo ser impossível morrer-se a meio de um poeta. Não descobri nenhum escritor novo. Fazem-me mais falta aqueles que já conheço.
Passei muitas horas a ouvir Flora Purim, Rodrigo Leão, Sakamoto, Ketil Bjornstad, Alt-J, Muse, The Antlers, Damien Rice, Dhafer Youssef, koop, Leonard Bernstein, Low Roar, Melanie de Biasio, Volcano Choir e Patrick Watson. Mas também Edith Piaf e Nina Simone e ainda e já sem dor, Ornatos Violeta. 
Fui ao teatro menos do que podia e muito menos do que devia. Mas salvei o ano com a Madama Butterfly e não o terminarei sem o Lago dos Cisnes. 
Vi muitos filmes, quase todos maus.
Fotografei insuficientemente e não foi ainda este ano que consegui uma fotografia de que me orgulhe. 
Acompanhei os mesmos blogues e estão todos melhores porque nenhum dos meus bloggers desaprendeu a escrita nem delapidou o génio. Sobretudo, mantiveram, durante mais um ano, essa misteriosa insistência em roubar horas si próprios, às famílias e às coisas que as pessoas fazem quando não estão a escrever posts, para nos dar a nós. Às vezes penso que uma certa parte da blogosfera pode bem ser o último reduto da generosidade evidente. 
Falhei menos. Muito menos.
Nada importa que os dados estatísticos hajam sido deturpados pela deliberada diminuição das expectativas e pela manipulação do palco do erro. Uma mulher faz o que tem de fazer para cumprir as suas metas. 
Especialmente, quando a meta é apenas falhar menos e a mulher é Pirata.



O azul do sul


Da culpa

Se um homem é todos os homens, como pretende Borges, a todos os homens pertence a culpa de um único homem. Carrego no inconsciente o peso não expiado dos crimes de milhões de desconhecidos. Não é de todo injusto. Só por um feliz encadeamento de incontrolados acasos foram outros a cometê-los por mim. 

Vamos lá a isso, então

Podes esconder-te nos trópicos. Entrar em negação jurando ser setembro. Fazer o caminho mais longo para evitar a árvore. Passar um mês sem outro contacto com o comércio que não seja on line. Desligar a rádio para não ouvir as músicas. Banir luzes e estrelas e bolas brilhantes e anjinhos. 
Mas o Natal acabará sempre por te apanhar. E comerás os sonhos, ano após ano.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Fail better


Afasia

Perturbou-me uma fotografia. 
Entrou-me em casa por uma dessas equívocas janelas para o mundo. Entrou na minha sala branca de baunilha e jazz e velas e poemas e luz e silêncio espiritual e afasia. 
Instalou-se com o insuportável ruído do trânsito histérico de uma cidade enlouquecida. Ficou ali, no meio da sala, a indelével nódoa tinta. 
Perturbou-me a fotografia que traduz um instante do mundo que fica por trás da porta que mandei selar a betão. 
O cenário, a disposição, a ordem e as cores eram exatamente as mesmas. Como a mesma era a expressão no rosto, o olhar oblíquo, o cair de um braço distraído sobre uma perna alheia.
Sei agora como pode sentir-se um fantasma subitamente descido sobre a existência a que a morte o arrancou.
Perturbou-me, sobretudo, mais do que a experiência da morte, a minha antiga expressão de inocência estampada no rosto de outra que em tempos também fui.
Entre mim e a minha usurpadora separam-nos muitos anos. Tantos quantos os que, também a ela, serão um dia necessários para recriar o mundo. 

domingo, 13 de dezembro de 2015

Espelhos

Lavámos com a água da chuva o pó da estrada. Amordaçámos o som do piano. Rasgámos muitas páginas de antigos livros. Apagámos um ou outro arco-íris. No velho pátio a oriente ardeu devagar um espólio esquecido. O vento diluiu as cinzas sem as devolver. 
Sepultámos as ruínas sob a insignificância.
E a terra girou lenta alheia ao sacrifício das coisas nossas.
Os homens continuaram a nascer e a aprender as letras e a fazer a guerra. 
Trouxeram-nos outras chuvas e músicas e poemas.

Sobreviveu no espelho do foyer a breve memória de um crime.
Mas se do amor ou da sua aniquilação é coisa que já ninguém lembra. 

Ela não disse


sábado, 12 de dezembro de 2015

Remédios contra o amor

(...)
Quando, portanto, te parecer que estás a jeito dos remédios da minha arte,
faz por seguir os meus preceitos e fugir, desde logo, do ócio; 
é ele que te leva ao amor; é ele que, depois de te levar, por lá te retém, 
é ele a causa e o alimento de tão prazenteiro mal.
Se afastares o ócio, fracassam as setas de Cupido
e jazem por terra, desprezadas, como tochas sem lume.
Como o plátano gosta de vinho, o choupo de água 
e como o canavial dos pântanos de terra encharcada,
assim gosta vénus do ócio. Tu, que buscas pôr fim a um amor,
o amor cede à ação; faz alguma coisa; andarás seguro.
Moleza e sono a mais, sem que ninguém o atrapalhe 
e jogo e tempo desbaratado em muito vinho 
não golpeiam a alma, mas levam a força toda;
achega-se aos incautos o amor, traiçoeiro;
da modorra é que o menino costuma ser companhia, ele odeia quem se mexe;
à cabeça desocupada, olha: dá-lhe uma tarefa a que se agarre. 

Remédios contra o amor, Ovídio, Cotovia 

Como remédio, diria que pertence à categoria dos homeopatas. Ademais, há um certo charlatanismo em 40 páginas de prefácio e 7 de notas contra 33 de puro Ovídio. 
Mas é Ovídio a escrever contra o amor; a  referir-se ao puto reguila como "o menino"; a prometer-nos que aprenderemos a curar-nos com quem aprendemos a amar. 
Em suma, é um livro dos bonitos.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Moby Dick

"Entre quarenta e sessenta litros de sangue são lançados na corrente circulatória, com grande velocidade, por cada batimento do coração."

Relatório da Dissecação de uma Baleia, por John Hunter, citado em Moby Dick, Herman Melville, Relógio D' Água.


É demais para um simples livro, dele esperar que nos salve. Qualquer escritor honesto vos diria que não foi para isso que escreveu. Tão pouco para se salvar a si próprio. E se acaso o milagre se der, mais não será do que uma irrepetível coincidência.
Durante um número de noites que me foram infinitas, adormeci com a versão áudio livro, em inglês, da baleia de Melville. Na noite seguinte recomeçava no ponto em que tivesse adormecido, para o desligar poucas horas antes de me levantar. 
O propósito nunca foi o de ler o livro.
Quando o globo se desencaixa da esfera armilar e fica a girar imparável no vácuo e crês que já nada poderás controlar, podes ainda dominar os teus próprios pensamentos. É o último reduto da liberdade dos homens. Às vezes, esquecemo-nos de usar esse poder.
Lá pelo final da história, nessas infinitas noites em que fui Ahab, o louco, acabei por caçar a minha própria baleia branca. Ao contrário de Ahab, sobrevivi-lhe. 

Mil e uma silenciosas noites volvidas, devo ao livro o simples ato de o ler. Do princípio até ao fim. Na língua que é a do meu coração e sem segundas intenções. 

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O esquecedor

Vigiou-lhe a janela durante crepúsculos a fio na esperança de um vislumbre de intimidade por entre portadas distraídas. Decorou-lhe os hábitos repetidos ao minuto. Forjou encontros com habilidade de assaltante. Construiu pontes com afinco de artesão de outros dias. Cozeu o pão e pescou o peixe. Deu-lhe músicas dos outros e como não chegassem criou-lhe as suas. Escreveu-lhe poemas. Pintou-lhe quadros. Decorou o céu de histórias e fabricou-lhe uma lua. Gastou nisto muitos dias. 
Certa noite, a magia produziu os frutos de mil plantações. Encantado, viu-o dentro dos olhos dela.
Com alívio, pode, então, esquecê-la. 


A partir de uma frase de Jorge Luis Borges, no conto Os Teólogos, do livro O Aleph: 
"Há quem procure o amor de uma mulher para se esquecer dela, para não mais pensar nela;"

domingo, 6 de dezembro de 2015

Lisboa, esta manhã


Diário de Bordo

Dizem-me que a manhã em Lisboa foi de nevoeiro Londrino e que se respirava aquela modalidade de frio que faz com que, ao inspirar, sintamos cada um dos ossos. 
Aqui nas Caraíbas, por onde navegamos desde que renegámos o outono - que é apenas mais uma coisa que decidimos fazer de conta que não existe - as manhãs são sempre turquesa e o sol é tão garantido que já nem sequer pensamos nele.
Dezembro no mar das Caraíbas, em fuga da nostalgia das folhas caídas, cheira tanto a agosto que até ontem, quando começaram a chegar os primeiros postais, nenhum de nós se havia lembrado do Natal. 
Quanto a mim, não tenho saudades nenhumas da azáfama desesperada dos centros comerciais onde, massacrada pelas músicas tristes de Natal, mais propícias a despedidas fúnebres do que a festas de família (embora me tenham dito que, nalguns casos, os conceitos coincidem), uma multidão de seres miseravelmente individuais, se debate com o dilema de comprar objetos que pareçam valer mais do que o dinheiro que realmente custam. 
No entanto, diz-me a experiência dos natais passados que é inútil tentar convencer esta tripulação a não ir ao Natal.
Haveremos, pois, de montar as luzes compradas nos chineses, de instalar a estrela no mastro, de espalhar presépios pelos cantos e até, quem sabe, talvez tenhamos uma árvore.
Uma noite, na minha vida passada, enquanto várias pessoas discutiam o que fariam se ganhassem o Euromilhões, um dos presentes declarou que se lhe saísse o prémio iria à Lapónia dar uma paulada na cabeça do pai Natal e roubar todas as prendas das crianças. A declaração veio de um adulto a quem nunca foi diagnosticada psicopatia e pareceu-me séria. Era maio. Faltava-lhe até a atenuante da saturação natalícia.
Seja como for, esta velha história deu-me uma excelente ideia para as comemorações natalícias deste ano.
Iremos à Lapónia. Roubar os presentes de todas as crianças do mundo.

sábado, 5 de dezembro de 2015

Lisboa

Mais do que as partidas, são os regressos, sempre momentâneos, que me atiram à cara a minha condição de itinerante. 
- Vadia. Cigana.
Diz-me a casa, através das sombras em que a encontro, encerrando a perpétua acusação do abandono. Da vida que lhe neguei.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Peso-morto

Diluiu-se na manhã o peso da tua ausência. 
Para se recondensar ao anoitecer,
no interior dos ossos,
que é onde guardo
- como se assim os tivesses deixado esquecidos - 
o infinito azul do mar;
todas as estrelas de Orion;
o declive da montanha;
os ninhos das gaivotas;
a última onda da baía;
um peixe albino cujo nome já esqueci;
o poema embrulhado em cartolina pintada;
mil distintas notas de jazz;
os teus pés egípcios e
o crepúsculo de uma varanda sobre o mar. 
Sou fiel depositária das coisas tuas,
que guardo no interior dos ossos.
E que me pesam, 
ao anoitecer.

Eu nunca...

Eu nunca encontrei um trevo de quatro folhas. Nunca persegui o final de um arco íris. Nunca abracei o Rio dos pés do Cristo Rei. Nunca nadei nas águas do mar morto. Nunca cozinhei um bolo. Nunca me atirei de pára-quedas. Nunca escrevi um aceitável poema. Nunca pesquei um peixe. Nunca corri sob a chuva. Nunca dormi na rua. Nunca aprendi a tocar piano. Nunca traí um homem por paixão. Nunca dancei a dança do ventre. Nunca li a Bíblia. Nunca alimentei um tigre. Nunca colhi uma rosa. Nunca vi nascer um animal. Nunca consegui uma boa metáfora. Nunca dormi doze horas. Nunca fiz uma tatuagem. Nunca acendi uma fogueira. Nunca abracei um desconhecido. Nunca salvei uma vida humana. Nunca rezei a um Deus.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Enquanto isso...

O fabrico de chocalhos passou a ser património imaterial da humanidade.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

The Broken Man


Meio sono e má refeição

Nada como em Goethe, onde a boa e velha inquietação, de esmerada educação, faz-se assim anunciar:


Se o ouvido por mim não der, 
No peito me faço ouvir; 
Formas várias assumindo
Exerço um poder tremendo.
Nos caminhos, sobre os mares,
Companheira de terrores, 
Nunca querida, sempre achada, sou temida e detestada.
(...)
Aquele em quem eu me afundo, 
De nada lhe serve o mundo; 
Vive em treva permanente, 
Sem aurora nem poente, 
Por fora normal parece, 
Dentro dele tudo escurece, 
Os maiores tesouros que há, 
Frio, ele os desprezará.
Cisma em sorte ou desventura, 
Morre à míngua na fartura;
Coisa má ou alegria
Fica sempre para outro dia;
Só no futuro a pensar, 
Nunca nada há-de acabar.

Fausto, Goethe, Relógio D'Água 

domingo, 29 de novembro de 2015

Pessoas que partem

Conheci a minha verdadeira natureza na tarde em que voltei as costas à terra para, deixando tudo para trás, nadar na direção de um barco à deriva no mar. 
Naquela tarde, percebi as pessoas que partem.
O mundo está cheio de gente que um dia desaparece, não para reaparecer morta por entre veredas mas para existir livre noutra forma de existência. 
São pessoas que viajam em negócios e subitamente nunca regressam. Gente que entre o emprego e as tarefas domésticas faz um pequeno desvio que se torna eterno. Seres que uma noite, em silêncio, diante do olhar atónito dos outros, escolhem uma muda de roupa e simplesmente fogem para não mais voltar.
Se lhes perguntarmos as razões, não saberão explicá-las. É mentirosa qualquer tentativa de racionalização. São pessoas que partem. Poderão fazê-lo uma e outra vez.
Várias horas depois fui devolvida à terra contra a minha vontade e pude impunemente prosseguir a minha existência no ponto em tentei abandoná-la.
Naquela tarde, não sem desgosto, compreendi que também eu sou uma dessas pessoas que partem. 

Às vezes, o amanhecer ainda me surpreende dentro de um barco à deriva no mar. E, ao acordar, pesa-me, insuportavelmente, tudo quanto me pertence.

Roubos

Novembro passou sem marca. É de outubro este monte de livros que acumulo do meu lado esquerdo. É também de outubro o poema que o marcador suspende na linha do horizonte. E é de outubro o último por do sol; o rasto da espuma das ondas; essa especial forma de silêncio que há no mar.
Diz-me a clepsidra avariada que aquilo que menos importa consumiu-me no mês de novembro mais de noventa por cento das minhas horas.
Roubaram-me o mês de novembro.


segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Remorso por qualquer morte

Já livre da memória e da esperança,
quase futuro, ilimitado, abstracto,
não é um morto, o morto: ele é a morte.
Como esse Deus dos místicos,
de Quem devem negar-se os predicados,
o morto ubiquamente alheio
é só a perdição e ausência do mundo.
Roubamos-lhe tudo,
não lhe deixamos uma cor nem uma sílaba:
é este o pátio que os seus olhos já não partilham
e aquele o passeio onde perscrutou a sua esperança.
Até o que pensamos poderia ele pensar;
repartimos por nós como ladrões
todo o caudal das noites e dos dias.

Jorge Luis Borges, Fervor de Buenos Aires, Obras Completas, I, Teorema.

domingo, 22 de novembro de 2015

Laços

De pulsos enlaçados.
Voar.
Nas asas de Bernstein.

Já não se escrevem cartas de amor

Não sei quando foi que aconteceu. Não é o tipo de coisa com que numa manhã de, por exemplo, segunda feira, se acorde colada ao rosto depois de uma noite mais ou menos insone. 
Começámos todos por deixar de escrever cartas de amor. Talvez por termos lido nas cartas dos poetas um amor que julgámos maior do que o nosso, sem perceber, contudo, que foram as palavras que lhe deram a substância do crescimento. Talvez por termos pensado que as letras sobreviveriam ao sentimento, tatuando-o no vazio, sem perceber, contudo, que não há sensação alguma que não seja eterna. 
Depois de o termos deixado de escrever, deixámos igualmente de dizer o amor. Entregámo-nos à ingrata omissão como devotos desassumidos de todo um sistema filosófico assente na antinomia da força e da fraqueza. Pronunciávamos as palavras e pareciam-nos absurdos pastiches de novelas mexicanas de som desconectado da imagem. Éramos menos vulneráveis e mais inteiros se silenciássemos qualquer rasto da nossa humanidade. Tratámos os amantes como inimigos e eles declararam-nos uma guerra em que o vencedor era aquele que se tivesse apropriado de toda a indiferença. 
Foi mais ou menos por essa altura que o choro caiu em desuso. Agora já ninguém se lembra da coragem que era necessária para exibir perante os outros um rosto bem lavado pelas lágrimas. 
Por fim, não escrito nem dito, o amor tornou-se inútil como um segredo embrulhado na naftalina do armário. Deixámos, pois, de o sentir. Foi a fase do darwinismo sentimental.
Estudámos-lhes a composição química para memória futura. Tratámos os últimos doentes com benzodiazepinas e detalhadas explicações científicas sobre a natureza imbecil do seu estado. 
O amor é, agora, uma inofensiva ampola guardada num laboratório secreto.
Não é um lamento. Nunca gostei do amor. 
É a nostalgia da falta das cartas de amor que me aborrece profundamente. 

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Still


Neverness

Estamos onde sempre estivemos.
Rasgámos incontáveis dias no calendário e é sempre agora. Impusemo-nos a longínqua distância do oceano e é sempre aqui. 
Nenhum tempo, nenhum quilómetro, soube libertar-nos das fronteiras do aqui e do agora. 
Usei o tempo passado para escrever a nossa história. Sem saber, ainda, que registava um terrível presságio de eternidade. 

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Dear Angel



Insistem em lembrar-me que as pessoas respondem melhor a estímulos positivos. É uma tese que acolherei de braços abertos no dia em que a experiência deixar de me atirar o contrário à cara, com a violência contida na expressão "pano encharcado pelas trombas acima", cujo autor, que desconheço mas que é dos bons e possivelmente da margem sul, tem invejável capacidade de apelo a sensações físicas. Só não reconhece a maravilha quem nunca se esforçou por conseguir semelhante. 
Assumo, no entanto, que, em matéria de anjos da guarda, as regras gerais da experiência comum não tenham aplicação. Não estudei o regulamento do paranormal e suspeito que nem sequer exista. Essas organizações parecem-me cada vez mais imperfeitas, obscuras e desigualitárias.
Ofereço-te esta música com propósitos declaradamente interesseiros. É tempo de abandonares as palmeiras do Éden, debaixo de cuja sombra, com tanta persistência, te tens dedicado ao aprofundamento da filosofia da não intervenção, ao apego ao maléfico engodo do livre arbítrio e ao macabro hobby da observação de descarrilamento de comboios. Não és um fotógrafo da National Geographic. És um anjo da guarda. Salvar o panda bébé é o teu trabalho. Eu sou o panda bébé. 

domingo, 15 de novembro de 2015

Ana amava Bruno que amava Carlota que amava Diogo que amava Eduardo

Foi uma cerimónia de indiscutível bom gosto. 
A noiva, sóbria e elegante, por entre camélias, a atravessar a nave da igreja, enfeitada por um sorriso distinto coberto pela mantilha de uma bisavó de sangue azul. A distinção do sacrifício, pensou Bruno quando a noiva passou por si de olhos menos brilhantes do que na véspera, concentrada em não o ver. Procurou reprovação no olhar de Carlota que, protegido pelo enorme chapéu, conseguiu não ser surpreendido em plena atividade desdenhatória, caído sobre a figura esguia de Eduardo.
O padre, o mesmo que os tinha batizado a todos, tradição que sempre acompanha as mantilhas das bisavós de sangue azul, fez uma pausa de três segundos depois de perguntar se havia ali alguém para se opor ao casamento. 
Mas Bruno olhou para chão, perante o desgosto de Ana, a indiferença de Carlota, o reacender da vaga esperança de Diogo em livrar-se desta última e a figura esguia de Eduardo que, oportunamente, consultava o relógio.
Com o alívio das coisas concretizadas, que é comum ao bem e ao mal, todos ficaram a saber que não havia ali ninguém para se opor ao casamento.
E foi assim que, sem alternativa, o casal saiu unido por entre as mesmas camélias na direção de um perfeito céu azul em cambiantes de prata.
Xavier, ao menos, era um noivo genuinamente feliz.
Os homens não imaginam aquilo que algumas mulheres são capazes de fazer por um pouco de sossego. 

sábado, 14 de novembro de 2015

a verdadeira história da eternidade


O tempo abandonou-nos há mais de mil e uma manhãs. Foi ainda ontem que sentada no Olimpo pousei a fronte na tua clavícula e tu semicerraste os olhos e nesse instante de distração largámos o destino dos homens e eles esqueceram-se de nós. A gruta de Altamira onde, entre sombras, com o nosso próprio sangue, registámos o amor, tanto pode ter acontecido há milénios atrás, como poderá ser o nosso futuro distante. Não estou certa que não sejamos os corpos unidos de uma mesma múmia que me lembro de ter visto num egito muito antigo. Esperei-te quando partiste para muitas guerras. Lavaste-me dos cabelos a febre da peste. Os nossos dedos entrelaçados são fósseis de Pompeia. Fui Eva e Lady of Shalott e Ofélia e Karenine e ainda Laila. 
És todos os homens e foi para ti que os deuses inventaram a música.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Percorrendo os céus, sentado na cauda de um cometa

Abriu e fechou as mãos um par de vezes e ficou parado a contemplar os dedos compridos, assim esticados, na humidade gelada da noite.
Depois, começou a correr.
Ao fundo, estava a cidade e as suas luzes que não a tornaram menos cinzenta. Nunca a cidade lhe pareceu tão opressora como no último dia em que a viu. Impossível lembrar-se do cinema onde o seu pai o levava para o distrair das desajustadas angústias cosmológicas de criança; das ruas por onde passeou de mãos dadas com alguma mulher que por instantes amou; da livraria onde ao acaso abriu a página que lhe deu a conjugação de letras do que veio a ser o seu melhor poema; daquela cave onde ensaiou acordes na guitarra com a banda punk rock da adolescência. Impossível lembrar-se do que o poderia ter salvo.
Também não se lembrou de nós, que o matámos de tédio, insultando-lhe a esperança para além da reserva com as nossas cozinhas equipadas, os nossos projetos de felicidade burguesa e os resorts onde nos internávamos nas férias. A estupidez crescente, a miopia que se agarra à necessidade de sobrevivência, o definhamento da alma, penso, às vezes, foram a minha contribuição pessoal para o combustível de que se alimentaram as chamas do incêndio que se formou nas suas costas. Porque, percebo-o agora, era como estar parado no meio de um incêndio que ameaçava consumir-lhe a carne ou como respirar o fumo espesso que faz doer os pulmões. 
Apesar do frio, o sangue ferveu-lhe na excitação e no esforço da corrida. 
Treinou aquele número demasiadas vezes para que a execução fosse menos do que perfeita. Parou durante trinta segundos para engolir o ar com a avidez com que engoliu a vida. 
Olhou para o céu. Encontrou o cometa. Saltou ao seu encontro.
Na cauda do cometa, ainda, o rasto das chamas de que se libertou. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A viúva da liberdade

Não poupa na quantidade dos cravos. Todos os sábados enche três jarras de cravos vermelhos depois de em lentidão concentrada de nano ciência limpar o mármore da campa. O semblante, diz quem vê, é dessa tristeza antiga que não trai nota de melancolia. O processo consome-lhe uma invariável meia hora semanal. Já não se lembra, talvez nunca se tenha recordado, da visão do tecto da cozinha a partir do chão quando ele a derrubava a murro e pontapé nas noites em que uma desobediência no trabalho ou uma quezília na taberna, tanto fazia, lhe tornavam insuportável  a nódoa de gordura no fogão, o excesso ou falta de sal na sopa, a ausência do filho adolescente ou, na falta de qualquer uma destas coisas, o reacender do velho rastilho já apagado por uma semana menos pior.
Chorou-o no funeral mas apenas porque as vizinhas são a mais eficiente instituição de controlo moral de qualquer sistema reacionário. Em privado, nem uma lágrima.
No dia seguinte, coberta de luto, foi a uma loja da cidade e mandou entregar em casa a televisão que ele nunca autorizou que a família tivesse. Por cima, para que ele soubesse, pendurou-lhe o retrato. Nunca mais falou sobre ele. Nunca mais quis um homem. Criou o filho sozinha com dificuldades de viúva pobre. A magra pensão de viuvez nem sempre garante a carne sobre a mesa. Mas o que não pode faltar são os cravos vermelhos. Três jarras cheias.
Como bom anticomunista o falecido odiava cravos.
Uma pobre viúva tem o inalienável direito à sua pequena vingança.

Da vergonha alheia

O portuguesinho, xenófobo e ignorante até à medula, parece ter sofrido um choque ao ver chegar uma refugiada que teve a ousadia de se apresentar da forma como se veste todos os dias. De nicab. O portuguesinho, é claro, por não saber onde é a Síria e já há muito se ter libertado do invasor muçulmano, estava convencido que da Síria viriam eslavas de mini-saia e saltos agulha. O portuguesinho esperava que o estatuto de refugiada da senhora de nicab, ao menos, a levasse à gratidão de não lhe incomodar a xenobofia, apresentado-se ao mundo como provavelmente nunca na vida pós púbere se apresentou aos seus amigos.
O portuguesinho é iletrado, nunca viajou e ainda por cima é esquecido. Se soubesse ler, saberia onde fica a Síria. Se viajasse, não perguntaria como podem estas senhoras ir ao banco, ou ao médico ou às lojas, pois já as teria visto em Londres, em Paris e em Madrid. Se não fosse esquecido ocorrer-lhe-ia, por exemplo, que a sua bisavó lá da província, usou a vida inteira um lenço na cabeça e não o tiraria por coisa nenhuma. 
O portuguesinho está cheio de medo. 
E não merece receber refugiados. 
Para fazer o que é certo, é necessária muita coragem.

sábado, 7 de novembro de 2015

Quanto do que somos é nosso

António sonhou que já não cabia na cama de grades de ferro pintado de branco da sua infância. Parecia-lhe que a cabeça era empurrada de encontro às grades pela dimensão de um corpo desmesurado. Quando abriu os olhos na noite não encontrou o azul das paredes do quarto de criança. Nenhuma nuvem sobre o seu lado direito. Percebeu que estava ligado a uma máquina de desfazer nuvens pelos fios que lhe saiam do nariz.
Uma semana depois saiu do hospital e entrou numa casa que juraria nunca ter visto. Uma mulher e uma filha seguravam-lhe as mãos e olhavam-no, expectatantes da epifania do reconhecimento. A peça que dá sentido ao puzzle estava escondida em qualquer outro canto do seu passado.
Ficou sentado numa poltrona de pele puída, a sua, garantiam-lhe as duas desconhecidas, perdido nas fotografias  que lhe impingiam, sempre com o mesmo ar de desconfiança. Mas não podia ser ele aquele que pousava em frente da secretária metálica de um gabinete triste com uma parede decrépita enfeitada por uma reprodução de um ramo de rosas. E também não podia ser ele, mascarado de noivo, ao lado daquela mulher suplicante, os dois encerrados num horrível por-do-sol dos anos oitenta. Menos ainda o homem estagnado em frente a um jardim madrileno, olhar assustado, garota erguida nos braços, a antiga noiva mascarada de esposa.
Lembrava-se do quarto da sua infância. De vinhas a perder de vista. De um rio onde pescava trutas com os amigos. Da voz da mãe a ecoar pelo crepúsculo quando se esquecia de regressar a casa. De uma bicicleta encarnada e de nela descer o monte de braços abertos e pernas esticadas. 
Lembrava-se de si, percebeu com horror, apenas até ao exato ponto em que deixou de escolher. Tudo o que o destino atropelou em si, perdera-se naquela mesa de operações onde lhe abriram o cérebro. 
António estava aprisionado numa existência que, sabia-o agora, jamais poderia ter sido escolhida por si.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Carta aberta ao Ruben Patrick

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Diário de bordo

Os meus problemas existenciais, não necessariamente novos mas invariavelmente cíclicos, estão a afetar o desempenho da missão que recai sobre os ombros encorpados desta brava tripulação pirata. 
Tudo começou com a chegada de outono que, de acordo com o calendário oficial da somatização, é a época da nostalgia. 
Dei por mim a substituir o reggae por aquelas musiquinhas nerd que o iTunes classifica como alternativas; a adormecer  mais vezes ao lado de Kafka do que de Borges; a preferir o vinho tinto ao gin tónico e, com a aproximação do pico da estação, a passar mais horas pendurada no convés, com um olhar estrelido e demente, do que no topo da mesa de reuniões a planear ataques a navios de cruzeiro cheios de velhinhos nórdicos.
Num micro cosmos com as potencialidades absorventes deste navio, a osmose é um facto mais científico do que as leis da Murphy. (Dirão que essas não são científicas mas experimentei todas e posso assegurar que estão enganados).
Foi assim que, quando dei conta, tinha a tripulação inteira no limiar da depressão clínica. 
O primeiro a fazer-me notá-lo foi o papagaio Polly que, por passar demasiado tempo com Álvaro de Campos, começou a esvoaçar pelo navio enquanto gritava 

"Não sou nada. 

Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
Foi então que reparei que o grupo dos poetas produziu tanto nas últimas semanas que o stock de papel higiénico ameaça ruptura. 
Os bloggers residentes, por seu turno, atacados pela nostalgia, começaram a escrever post fofinhos e a acumular um perigoso banco de imagens de gatinhos de olhos tristes. 
Os ex-presidiários estão há dias encerrados nas suas camaratas, a reviver os tempos de reclusão.
Andhriminir, o cozinheiro pirata, parece ter perdido todo o interesse pelo sadismo e serve-nos saladas com bagas de gojji, ou lá como se diz, porque diz que leu um dos meus livros de ética e descobriu que os animais são pessoas não humanas.
Gualtiero, o Italiano, que está neste navio em representação dos amantes abandonados, passa as horas a jogar candy crush e não tenta conquistar ninguém há mais de vinte e quatro horas.
Em suma, a nostalgia atacou-nos pelas costas com efeitos mais dramáticos do que o temido escorbuto ou a febre dos mares. 
O culpado é o outono e é minha intenção  combater o mal de forma drástica:
Amanhã rumaremos às Caraíbas.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Adotar um deus

Se a tua voz no fundo da sala me  amordaçasse ao silêncio, se o teu perfume se impusesse na omnipresença dos dias, se uma pequena falha entre o terceiro e o quarto dente se tornasse subitamente notável, se as imperfeições que te tornam gente se sentassem à mesa comigo e se alimentassem de comida pré cozinhada, seria possível acender a fogueira do desprezo e varrer as frias cinzas da véspera. Como assim não é, empresto-te a dignidade do bronze, a altivez da estátua grega, a grandeza de um Aquiles de calcanhar remendado pela agulha da complacência. 
Não há nesta mitologia contratada nada de condenável. 
São muitos aqueles que jurariam que um deus lhes faz mais falta do que um amante.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Traças

Com honra morre - diz Cio-Cio-San, no terceiro ato, pouco antes do harakiri mais famoso da música clássica - quem não pode continuar a viver com honra.
Ao contrário da Madama, encontrei a terceira via. Essa que atravesso de joelhos, coberta pelo imperturbável manto negro feito do brocado da viuvez. 
Morreres-me, foi a forma que encontrei de preservar a honra e a vida. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Finalmente caiu a noite

Essa hora em que, 
finalmente,
cai a noite, 
derrama-se a clepsidra, 
calam-se as fúrias, 
fecha-se o verso. 

O silêncio 
das primaveras na jarra e
das paredes brancas e
do perfume e
dos livros e
das notas do piano 
na sala onde nenhum espelho. 

Essa hora em que, finalmente, cai a noite sobre um dia com demasiadas horas.


domingo, 1 de novembro de 2015

Novembro


Por mais que tenhamos falhado em manter acesa a chama da vela durante a fria chuva de novembro, 
Nada é para sempre,
Nem sequer a fria chuva de novembro.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Aleivosias

Pensei, durante muito tempo, que a mais justa metáfora do amor estivesse contida na bruxa de José Saramago, a Blimunda do Memorial do Convento que, dotada do poder de ver as entranhas dos outros quando em jejum, ao acordar, para se cegar à mais pura verdade interior do seu amado Baltazar, comia uma pedaço de pão antes de olhar para ele. 
Como vai sendo hábito, estava errada. A metáfora superior é a inversa. A de Virgínia Wolf. Negar a quem se ama o acesso ao mais profundo de nós próprios, porque pior do que deixá-lo trancado no exterior é aprisoná-lo, connosco, dentro da nossa mente. 
Há muito que a perceção empírica do potencial destrutivo da verdade me fez abandonar a sua defesa incondicional.
No fundo, tudo se resume a essa outra metáfora: A do Coronel Jessup no filme "A Few Good Men".
"You can't handle the truth".

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Madama



Quando a Madama cantar a ária, quando a sua voz se elevar no ar, espalhando-se pela atmosfera, quando todos os cantos da sala se tiverem rendido, nessa altura, o Teatro desvanecer-se-á lentamente. As suas paredes serão substituídas pelas árvores da montanha. O palco será tomado pelo mar. Filas de cadeiras formarão a vereda que tantas vezes subi ao teu lado. A Madama a exorcizar uma dor futura nas colunas do rádio do carro. Os pinheiros velozes a fugirem na nossa direção. O espanto nos olhos dos pássaros com a angústia evadida através dos vidros abertos. E finalmente, o topo da montanha, o mar lá muito ao fundo, as notas diretamente da garganta da Madama para o azul dos sonhos no tecto imenso. 
Quando a Madama cantar a ária, regressarão aqueles dias em que nenhum amor havia ainda sido declarado extinto. Estaremos mais próximos do que as nossas mãos fundidas. 
Por um segundo, teremos a oportunidade de desdizer o tempo. 
Eu não olharei para trás e tu estarás lá, à saída do inferno. 
E então, nada disto será a verdade. 
A Madama tocará apenas para nós, no rádio de um carro, parado, no topo de uma montanha, vazia, com vista para o mar. E dançaremos novamente com o mesmo desespero de todos os dias. 
E desta vez, quando a música terminar, não regressarei a casa. E o amor nunca terá sido declarado extinto. Enquanto a Madama cantar a ária. 

Do tédio

Amanhã e depois e ainda no dia seguinte e no outro e no outro. Sobe a lua, desce a noite, cai o dia. O oceano avança e recua. Os rios obedecem a um ritmo que não é seu. O tempo é um artifício inventado para incutir a falsa sensação de movimento. Na verdade, somos tão imóveis como as rochas. Apenas sujeitos à lentíssima erosão dos elementos. 
A eternidade é este tédio milenar. O crescimento silencioso de uma unha partida. O declínio discreto de uma papoila. O alastrar impercetível daquela mancha na pele. A tecla gasta do piano. A sombra do esquecimento que vai deslizando pela parede. 


terça-feira, 27 de outubro de 2015

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Diálogos com deus

Deus - minha filha...
Cuca - sai!!!!!!
Deus - mas Cuca... há quanto tempo não falamos?
Cuca - só posso concluir que os comprimidos têm sido eficazes.
Deus - Beckett escreveu que...
Cuca - ó deus ... vai para casa, pá! Está a chover e assim. 
Deus - ainda não?
Cuca - não! 

domingo, 25 de outubro de 2015

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A outra face

A liberdade viajou na asa negra
da impotência.
Aterrou numa manhã de chuva miúda.
A voz na rádio disse que a humidade era de 96 por cento.
Soube, nessa manhã de maio de há muito anos, que coisa alguma bastaria.
E o amor, o amor nada. Nunca poderei ser mais amada do que no instante em que até o amor foi insuficiente. 
Então, fizeste-me livre.
Os homens não sabem que a liberdade é apenas a face mais brilhante da moeda da impotência. 

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Dilema de Fausto 2 (sondagem)

Já sei: Ainda não responderam à sondagem do post infra porque estão todos a pensar na resposta.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Dilema de Fausto

A BRUXA (começa a ler, declamando com grande ênfase): 
Ouve, por quem és:
Do um fazes dez
E o dois e o três 
Tal qual deixarás,
E rico serás.
Perderás o quatro!
Cinco e seis serão, 
Diz a bruxa então, 
Sete e oito, e a conta
Assim fica pronta:
E o nove é um.
E o dez é nenhum.
Está feita da bruxa a tabuada comum.

FAUSTO
Acho que a velha está a delirar.

In, Fausto, Johann W. Goethe, tradução de João Barrento, Relógio D' Água.

Rios de tinta sobre Fausto e esquecem o essencial: O verdadeiro dilema de Fausto não é entregar a alma ao diabo. Fausto é um descrente. A eternidade não o preocupa. O dilema de Fausto é que quem nada quer desesperadamente, deixa o diabo sem moeda de troca. 
Ocorre-me que essa é a mais verdadeira condição do perdido. 
E tu, ainda encontras sob o céu moeda de troca da alma?


Hades

Os casamentos feitos nas estrelas podem ser bonitos. 
Mas são aqueles que se fazem no inferno que são eternos. Forjados com o ferro das amarras dos condenados; fundidos no caldeirão do pecado; habitados por mil e um demónios.  
Eternos como as chamas do Tártaro. 

Calling


quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Adeus mundo real

Dou por terminada a minha curta expedição ao horrível mundo da realidade. 
Não sei se o tempo que estive fora foi demasiado ou insuficiente. Sei que uma semana de atenção ao real fez-me recordar as razões pelas quais decidi passar a habitar as páginas de um ou vários livros, mantendo-me quentinha e confortável dentro de uma bolha de sabão esterilizado, decorada com versos, e flutuando, distante e ocasionalmente, por entre as coisas e as pessoas e as coisas das pessoas.
O mundo tornou-se mais incompreensível do que o mais críptico parágrafo do Ulisses. E por impossível que isso possa parecer, também mais aborrecido.
Além do mais, a expedição foi um fracasso.
Dez dias de atenção ao real não foram suficientes para, por exemplo, perceber quem ganhou as eleições no meu país. Aliás, não chegaram sequer para conseguir apreender o conceito de país, ou essa claustrofóbica ficção de ser cidadã de um país. 
Tentei apreender o mundo através da televisão mas só consegui encontrar duas espécies de programas: aqueles em que pessoas muito zangadas e feias discutem, com ganas de psicopata, assuntos cuja importância me escapa e outros em que pessoas muito zangadas e feias e perseguem psicopatas homicidas.
Não sei o que dizer sobre uma sociedade obcecada com a psicopatia ao ponto de a tornar uma fonte de entretenimento. Suspeito, porém, que não me apetece viver nela.
A tentativa de apreensão da realidade através do elemento humano também não correu melhor. Só conheço pessoas inteligentes. Alienaram-se, pois, muito antes de mim. 
Regressei às páginas dos livros de onde tenciono não voltar a sair. 
Há mais verdade no Fausto de Goethe do que nesta massa demente que já há muito vendeu a alma ao diabo por uma miserável dose de ilusão. 

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Telhados

Aqui, no telhado, pendurada pelos pés, inclinada sobre a noite, aliviada de uma parte do firmamento, dou pela sua presença. Está sentada no meio das telhas, a ocupar o meu antigo lugar. Noto-lhe a transparência dos ossos e uma expressão antiga no olhar. A de Eva, talvez. Diante das portas fechadas do paraíso, diz quem viu. 
Apanhada na minha indiscrição, decido não dar parte de fraca e interpelo-a diretamente. 
Afinal, somos velhas conhecidas. 
- noite fria para quem pertence ao dia. E então, ainda lhe escreves?
- sim, claro. Até hoje, mais de duzentas cartas, incontável número de letras e até algumas notas de música.
Há uma obstinação doentia na descrição. Como quem, inventariando demónios, pensou muitas vezes na resposta. 
Estico os músculos do pescoço e assento o peso nos cinco dedos de um só pé.
Não preciso de perguntar se ele já lhe respondeu. Mas, daqui, pendurada no telhado, com vista limitada para o firmamento, questiono as razões da demente empresa.
- é a minha pena e é eterna.
Responde com voz sumida.
Quando volto a olhar para cima, já desapareceu. 
Penso quão terrível pode ter sido o crime. 
Sei que já o esqueceu.