quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

2,700 kg de terapia eficaz

Não desprezando a utilidade da extenuação pelo trabalho na arte de controlar o cérebro, a verdade é que existem outros processos igualmente eficazes e menos penosos. Estou de férias há oito dias e ainda não enlouqueci. O potencial antimetafísico que existe num cachorro de dois meses deveria ser transformado em fórmula química e vendido em comprimidos.
Agora vou ali ver se as orelhinhas de morcego do meu frenchie já levantaram. 

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

"E ao fim não toquei em nada do que em mim tocou"

E ao fim não toquei em nada do que em mim tocou


Entre partidas e chegadas ouvíamos capitão romance dos ornatos violeta.
Uma manhã, um avião descolou da pista do aeroporto ao mesmo tempo que um barco saiu do porto. A insídia do destino fez com que nos cruzássemos por um instante no oceano. E da minha janela vi-te transformares-te num ponto indistinto enquanto ouvia a mesma música e evitava pensar no vaticínio presente na imagem de duas linhas perpendiculares. Aquelas que se cruzam num ponto e se afastam na eternidade.
Não parti rumo à primavera. Nem sequer à maravilha. Parti rumo ao outono. E não queria navegar.
Mas pelo tamanho das ondas percebi não poder voltar.
Não me esperaram homens daqueles que resistem antes de morrer.
A música fez-se verdade em dois pontos: 
Esqueci tudo o que sou capaz.
E ao fim, percebo-o agora, não toquei em nada do que em mim tocou. 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

And it's Christmas all over again

Este ano não foi preciso apanhar um avião para chegar ao Natal. E cheguei a tempo do Chiado e das luzes e das ruas cheias de gente e de música. E depois do último presente comprado ainda teve tempo para um vinho com os amigos no final da tarde. E ao lado estava o Tejo e ao fundo via-se a ponte e por baixo do nevoeiro o céu era cor-de-laranja. Era um céu promessa.
Eu já tinha chegado ao Natal há três dias. Mas foi só nessa altura que o Natal chegou. 
E chegou a tempo.



quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

...

O mais inútil de todos os exercícios é tentar compreender as motivações daqueles que nem sequer se dignam a expô-las. Ninguém está livre de ser deixado a falar sozinho. Mas há qualquer coisa de ridículo em ser deixado a ouvir sozinho. 
Foi para essas coisas que inventaram o gesto de encolher os ombros.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

get lost



Trees and houses stray
Losing voices for the day
For the better and the bright
For a way out, of the night

I just want to slide across
I am trying to get lost
I just want to hear you talk
One more time before we stop

Losing our voices, losing our voices for that day
Losing our voices, losing our voices for that day

Trees and houses stray
Dead legs turning silver grey
All that happened yesterday
Sunlight washes it away

Where I go I'll go alone
I'll be safe 'cause this is home
Take the fast lane out of here
To escape; to, disappear

Losing our voices, losing our voices for that day
Losing our voices, losing our voices for that day
Losing our voices, losing our voices for that day
Losing our voices, losing our voices for that day

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Lâmpadas em que não me posso fundir

Ilustração, Toni Demuro

domingo, 16 de dezembro de 2012

Comunicações intergalácticas


Já se passou quase um ano desde o dia em que morreste. Já quase ninguém conta os dias que passaram e, depois de umas semanas em que estiveste presente em todo o lado, também já quase todos se esqueceram de ti. Quando o mundo te devolveu o desprezo e voltou a organizar-se em torno de si próprio eu fiquei aliviada. Foi como se finalmente ficássemos os dois sozinhos sentados no sofá da sala sem nos tocarmos e tu me perguntasses com os ombros, daquela maneira como perguntavas com os ombros, como é que vai ser agora e eu te respondesse com as mãos, daquela maneira como te respondia com as mãos, que logo se verá como é que vai ser. Quando os outros se esqueceram de ti eu consegui convencer-me que precisas da minha memória para continuar a existir e percebi que os nossos mortos só são nossos quando deixam de ser os mortos de todos os outros.
Como morto, esperava mais de ti. Não pensei que a tua inquietude irritante se transformasse neste nada. Sonhei com exuberantes aparições a horas tardias e em dias em que a casa estivesse cheia de visitas, pelo simples prazer de me envergonhares em público. Juraria que, quanto mais não fosse em ambiente intimista, aparecerias para me sussurrar ao ouvido poemas absurdos em que a palavra papoila surgisse repetida e em entoação mais forte. Julguei que me enviarias bilhetes anónimos com frases codificadas em linguagem do além. Em vez disso, transformaste-te num morto ausente, incomunicável, desaparecido. Um morto convencional que não faz outra coisa a não ser estar morto. 
Mais de meio ano depois, consegui apagar o teu número do meu telemóvel mas tive o cuidado de o decorar primeiro, como se fosse mais prudente guardá-lo na cabeça para te ligar quando eu própria morrer. Ainda me ri um bocadinho com a ideia de os mortos a chegarem ao sítio para onde se vai quando se morre, preocupados em encontrar rapidamente um telefone público para se apressarem a reestabelecer os seus contactos terrenos. Foi, acho, a última vez que me ri contigo. Pelo sim, pelo não, mantive-te no skype.
A maneira como me passaste a ignorar depois de morreres não tem contribuído para a melhoria das nossas relações. Só um desalmado poderia assistir em silêncio ao espetáculo erroneo-deprimente que tem sido o meu último ano. Continuo incrivelmente zangada contigo e pondero a possibilidade de nem sequer te vir a perdoar. Morrer, foi a coisa mais grave que tu me fizeste. 
E isso não se esquece.

Quero


Quero a mentira nos corpos dos outros
Sal que cai do rebordo de um copo de tequilla
E se espalha dentro de uma chaga aberta
No peito de alguém sem corpo.

Quero a indiferença nos corpos dos outros
Dia que se estende numa sombra fria
E se apaga dentro de uma chaga aberta
No colo de alguém sem corpo

Quero,
A surdez da música.
A cegueira da lua.
A paraplegia das borboletas.
Voltar a ter um corpo.  

Paris já não seria suficiente

No final do ano, ainda tentei salvá-lo.
Mas as receitas antigas são ineficazes no tratamento das doenças modernas.
Há um gosto a requentado na mistura do champanhe com ostras.




quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O príncipe quebra-nozes




Quando a cortina caiu e o teatro se levantou inteiro para aplaudir os dois bailarinos principais, ocorreu-me que o bailado ainda vai sendo o ambiente mais seguro para se meter na cabeça que um quebra-nozes é um príncipe.
No bailado, há sempre uma fada pronta a comover-se com o erro, a chamar-lhe capacidade de sonhar e a abrir as portas do maravilhoso reino das neves onde equivocados e equívocos rodopiam felizes ao som de orquestras.
Mas se Clarinha não vestisse um tutu, o quebra-nozes teria continuado a ser apenas um quebra-nozes. Não haveria fada para se comover com tamanha tontaria e, em vez de viajar até ao maravilhoso mundo das neves, Clarinha teria acordado no meio dos ratos. Onde mais se precisa de um príncipe e menos de um quebra-nozes.
Depois percebi que a sala estava ocupada até à última cadeira. E isso, sim, é um sinal de esperança na humanidade capaz de me comover até às lágrimas. 

sábado, 8 de dezembro de 2012

falta passar a ferro


- e quando é que o vais buscar?
- só posso ir no dia 20 porque até lá não está acabado.
- … er… tu percebeste que compraste um cão, certo? Não é uma camisola…
- …glup…

Comprei um cão mas tenho uma explicação melhor do que a maioria das pessoas


As pessoas que têm poucos sentimentos apegam-se aos sentimentos que têm com a fúria do sedento no deserto que não está disposto a deixar que lhe roubem a última porção de água. A escassez no sentir faz com que o sentimento se autonomize do seu objeto fundamento e ganhe um valor em si próprio. Nessa altura, o objeto perde toda a relevância porque a única coisa que interessa é o sentimento de que é pretexto.
Tive que perceber isto para compreender as razões pelas quais falharam e continuarão a falhar todas as minhas tentativas de eliminação de um certo afeto que eu já não quero carregar.
Se o processo não tem em vista a destruição do objeto mas antes a destruição do sentimento está mais próximo do suicídio do que homicídio. Eu concebo já aqui, sem pensar muito, três ou quatro situações que me levariam ao homicídio. Não concebo nenhuma que me levasse ao suicídio.
Se eu fosse apenas racional, era nesta altura que desistiria de me livrar do sentimento que me atormenta e me renderia a uma existência de sofrimento.
Mas além de racional eu sou pragmática.
A mesma lógica que revela a minha incapacidade de destruir o sentimento põe a nu a irrelevância do objeto.
Ora, se o objeto só interessa enquanto fundamento do afeto, pode ser substituído em qualquer altura porque o cérebro deixa-se enganar por um bom sucedâneo. 
E foi assim que percebi que comprar um cão é mais eficaz do que continuar a ler a Moby Dick.
Isto tudo para avisar que, a partir do dia 20 de dezembro, este blogue atingirá mínimos históricos de qualidade. Pior que um babyblog só me ocorre mesmo um doggyblog.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

90 dias, 7 horas e 33 minutos depois


O meu projeto de alienação humana conta com a ajuda de Moby Dick e eu cumpro obsessivamente todos os meus planos, em especial, aqueles que se destinam a separar-me do mundo. No entanto, depois de alguns comentários de amigos próximos, começaram a preocupar-me as consequências da repentina falta de qualquer contacto com a realidade. Foi só por isso que decidi interromper aquela leitura e dedicar-me a géneros literários mais realistas e próximos da minha existência quotidiana como, por exemplo, Peter Pan, O Pinóquio ou Alice in Wonderland.
Enfim, filosofia ao alcance da minha capacidade de compreensão.
“But I don’t want to go among mad people," Alice remarked.
"Oh, you can’t help that," said the Cat: "we’re all mad here. I’m mad. You’re mad."
"How do you know I’m mad?" said Alice.
"You must be," said the Cat, or you wouldn’t have come here.” 
In Alice in Wonderland, Lewis Carrol

domingo, 2 de dezembro de 2012

Dementia

the season of sorrow

"All trials are trials for one's life, just as all sentences are sentences of death; and three times have I been tried. The first time I left the box to be arrested, the second time to be led back to the house of detention, the third time to pass into a prison for two years. Society, as we have constituted it, will have no place for me, has none to offer; but Nature, whose sweet rains fall on unjust and just alike, will have clefts in the rocks where I may hide, and secret valleys in whose silence I may weep undisturbed. She will hang the night with stars so that I may walk abroad in the darkness without stumbling, and send the wind over my footprints so that none may track me to my hurt: she will cleanse me in great waters, and with bitter herbs make me whole."


De Profundis, Oscar Wilde

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O que ficou daquilo que se foi

Um telefone pousado no gancho e um relógio num fuso horário permanentemente desfasado.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

forgive me not

Choveu sem parar durante três dias e três noites. Na manhã do quarto dia o rio começou a lamber as ruas e as praças da cidade e entrou pelas frestas das portas de madeira. Primeiro molhou os sapatos de cetim cor-de-rosa que cobriam os pés da bailarina. Depois subiu pelas pernas das camas e transformou as almofadas em corações disformes de penas encharcadas.

Da janela do último andar eu vi a cidade como se já não lhe pertencesse.

O rio trouxe-nos muitas coisas. Sacos de plástico perdidos, folhas de papel que antes de serem borrão foram poemas, bacias de metal onde se lavaram cabelos, corpos de animais afogados, as flores de um jazigo próximo. Um piano. O rio trouxe-nos um piano que, preto e desdentado de teclas, encalhou entre o lixo e um sinal de trânsito e ficou ali a acusar-nos da falta de música.

Quando o nível da água chegou à mesa onde pousaste, esquecida, a minha caixa de jóias, o rio tomou-a, fez seus os nossos segredos e arrastou-os por todas as ruas da cidade, oferecendo-os, assim nus, a quem já não tivesse portas para deles se proteger.

Da janela do último andar eu vi a vida como se já não me pertencesses.
Uma caixa de madeira aberta flutuou pela corrente e transportou uma incansável bailarina de plástico que girava sobre si própria ao som de tchaikovsky.

É isso



Nostalgia do Presente



Naquele preciso momento o homem disse:

“O que eu daria pela felicidade

de estar ao teu lado na Islândia


sob o grande dia imóvel

e de repartir o agora

como se reparte a música

ou o sabor de um fruto.”



Naquele preciso momento

o homem estava junto dela na Islândia.


Jorge Luís Borges

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Clave de lua

A utilização da música como arma é um acto duplamente cobarde. 
Aproveita-se da genialidade do criador inocente e da sensibilidade do destinatário desarmado.
Para morrer, prefiro um tiro.
É assim que matam as pessoas de bem.

domingo, 18 de novembro de 2012

escape




Ainda me esforcei por ouvi-lo mas só lhe via os lábios moverem-se ao som de Escape de Craig Armstrong. Para o tornar mais real tentei imaginar-lhe um diálogo de telenovela mexicana. Não me consegui lembrar de nenhum que combinasse com uma camisa tão bem engomada. Desisti dos meus intentos e segui com genuíno interesse o percurso que uma formiga foi fazendo pelo topo da mesa. Também a ouvia ao som de Escape e dei por mim a desejar que aquela formiga levasse a cabo a sua missão épica, fosse ela qual fosse.
Sabia que o homem da camisa a esmagaria quando se aproximasse da travessa. O destino estava estampado na eficiência suspeita com que me serviu o peixe. Não teria sido justo intervir na batalha e, além do mais, já só decido vidas a troco de dinheiro. No confronto final virei a cara para não assistir à inglória derrota dos que se esforçam.
Devolvi-lhe o som a tempo de o ouvir dizer qualquer coisa sobre barcos. Mas há palavras mágicas que me fazem desaparecer dos sítios e me transportam para fusos horários distintos. Juro que senti um abraço inconfundível acompanhado do meu nome respirado com sotaque. Se uma onda mais violenta não me tivesse molhado a cara, talvez nunca tivesse regressado ao restaurante.
Escape. Escape. Escape.  
No chão, a formiga endireitou as antenas e reiniciou o mesmo percurso.
A sangria de champanhe era bastante aceitável, o copo foi-se enchendo sozinho e demorei quatro horas para perceber que não me deixaram escolher nenhum prato.
Foi uma boa tarde.

(de) composições III

sábado, 17 de novembro de 2012

Moby-Kubler

Os meus progressos na leitura de Moby Dick e a minha travessia pela escala de Kubler-Ross são uma e a mesma coisa. Fruto de disciplina espartana, tudo foi mais ou menos andando até chegar ao 32.º capítulo. Depois veio a cetologia que, mais grave do dissipar a motivação, está a ter o efeito de me fazer questionar os propósitos da empreitada. 
Temo que quando chegar ao final do livro, a realidade acompanhe a ficção e os instintos animais vençam a razão humana. 
Nessa altura, não haverá psicologia que me valha.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Nada menos que uma chuva de sapos


Consciente da urgência da catarse, pedi uma chuva de sapos.
O processo de cura não se completa sem um instante de mundo ao contrário. A impotência perante um céu que desaba na nossa frente tem milagrosas capacidades libertadoras. A catarse liberta-nos do que ficou para trás e, nessa medida, purifica-nos. Não há nada mais puro do que um conjunto de desconhecidos a contemplar a brutalidade da devastação.
Preciso de uma chuva de sapos.
Hoje deram-me um tornado, mas agora percebo que foi manifestamente insuficiente.
Não aceito menos que uma chuva de sapos.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Das pessoas que nunca mudarão



- jantamos amanhã?
- vou estar ocupada.
- mas jantamos amanhã?
- não me dá muito jeito.
- e a que horas mando buscar-te?



quarta-feira, 14 de novembro de 2012

biografias


Passei trinta e oito anos convencida que era egomaníaca. Depois… bem, depois pediram-me que escrevesse uma “pequena biografia” e foi então que descobri que não tenho nada para lá pôr. 

domingo, 11 de novembro de 2012

placebos




Enfiar a mente num espartilho e mantê-la, assim, controlada e quieta, não é tarefa para meninos. Uma dieta emocional à base de doze horas diárias de árduo trabalho intelectual e mais três de todas as Jane Austen deste mundo, em versão áudio-livro e em inglês, para tornar tudo mais insuportável, não foi suficiente para disciplinar a minha mente e impedi-la de andar por aí a vaguear por becos perigosos e mal frequentados. Convencida que o problema não estava no remédio e antes na dosagem, intensifiquei o tratamento para cinco horas diárias da Moby Dick, do Melville. Deve dormir-se o menos possível para não dar tréguas a uma mente insubmissa e pouco escrupulosa que se aproveita da redução da vigilância para estabelecer contacto com o coração.
Entretanto, dei-me conta que além de me ter caído metade do cabelo, adquiri uma estranha expressão de louca. Penso que são efeitos secundários do tratamento. Mas também é possível que me esteja a transformar num fantasma.
Parece-me o justo destino de quem entregou a alma e cortou relações com o coração.  

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

terça-feira, 6 de novembro de 2012

os donos do circo


É possível dividir a humanidade entre aqueles que se apaixonam por pessoas e os que apenas se apaixonam pelo sentimento que algumas pessoas lhes suscitam. De um lado e do outro são sempre os mesmos. Claro que apenas os últimos conseguem essa coisa da felicidade amorosa. O mistério reside na incapacidade de aprendizagem por parte dos primeiros.

domingo, 4 de novembro de 2012

Um quadro onde passar o dia


Paysage aux Papillons, Salvador Dali

sábado, 3 de novembro de 2012

Das coisas que são realmente graves e têm a capacidade de me chatear 2

Que a Mara e o Fábio, lá da Casa dos Segredos, não consigam viver em permanente harmonia e felicidade doméstica enchendo os nossos coraçõezinhos de esperança e fé nas capacidades infinitas do amor.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

marcadores


Arrumo um livro e cai-me aos pés a fotografia dos pés dele.
O livro está cheio de crimes. Em capítulos, secções, subsecções. Não consigo perceber porque utilizei esta fotografia, como marcador, no livro que nos transforma a todos em criminosos.
Apanho-a do chão e volto a colocá-la, ao acaso, entre as páginas do livro. Algures entre a burla e a falsificação.
Esse espaço onde cabe o amor.

domingo, 28 de outubro de 2012

sábado, 27 de outubro de 2012

Disney Channel is back



Seria de supor que a itinerância constante nos abre a vida a um imenso rol de rostos e a uma roda viva de experiências novas e irrepetíveis. Estatisticamente sim. Mas comigo não. O meu mundo é tão minúsculo e feito de repetições de personagens que às vezes temo que tudo não passe de uma conspiração ao jeito de “The Truman Show”. As seis pessoas que conheço insistem em aparecer-me, com toda a improbabilidade do mundo, onde quer que eu esteja e sem a menor colaboração da minha parte.
Uma hora depois, sentados num muro:
 - Kierkegaardiana? Mas que raio é isso?
- oh, esqueça. Daria muito trabalho a explicar e não tem assim tanto interesse.
- Foi alguma doença que apanhaste nas ilhas?
- Não me trate por tu. Já falámos sobre essa questão do excesso de familiaridade.
- Mas agora já não sou teu senhorio… não temos impedimentos de ordem ética.
- Você não sabe o que está a dizer, pois não? E não use essa expressão na minha frente que me desencadeia pensamentos angustiantes.
- Pensamentos angustiantes tenho eu por tu usares esse vestidinho na minha frente.

Devolver ao mar o que o mar apenas nos emprestou


Escolhi uma noite sem lua nem estrelas. Por ser para ti, usei o meu melhor vestido de seda cinzenta e calcei uns sapatos prateados. A hora era aquela em que o mundo é entregue aos insones e aos desesperados e as praias são cantos esquecidos de existência. Cheguei contigo pela mão absortos no silêncio e na escuridão total. Para que a música não me distraísse dos batimentos do coração. Para que com a luz não viesse a sombra e nela a denúncia da demência no reflexo onde tu não aparecerias.
Apertei-te a mão com mais força quando entrámos no mar gelado e fomos varridos pela primeira onda de noite e vazio e escuro e nada. Deixei-me enrolar na turbulência e afundar e emergir. Nadei até ao limite das minhas forças na direção de coisa nenhuma. Reconheci a derrota para o mar e negociei o preço da minha vida.
O mar deixou-me fazer a viagem de regresso da escuridão.
Apenas para voltar à praia. Nua e de mãos vazias.
Talvez, ao fundo, houvesse um barco a afastar-se na direção da linha do horizonte.
Nunca o saberei. O preço que paguei pela minha vida foi a promessa de não olhar para trás.     

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Soren & Choo



It is told that there was once a man who through his misdeeds deserved the punishment which the law meted out to him. After he had suffered for his wrong acts he went back into ordinary society, improved. Then he went to a strange land, where he was not known, and where he became known for his worthy conduct. All was forgotten. Then one day there appeared a fugitive that recognized the distinguished person as his equal back in those miserable days. This was a terrifying memory to meet. A deathlike fear shook him each time this man passed. Although silent, this memory shouted in a high voice until through the voice of this vile fugitive it took on words. Then suddenly despair seized this man, who seemed to have been saved. And it seized him just because repentance was forgotten, because the improvement toward society was not the resigning of himself to God, so that in the humility of repentance he might remember what he had been. For in the temporal, and sensual, and social sense, repentance is in fact something that comes and goes during the years. But in the eternal sense, it is a silent daily anxiety. It is eternally false, that guilt is changed by the passage of a century. To assert anything of this sort is to confuse the Eternal with what the Eternal is least like -- with human forgetfulness.

Purity of Heart is to Will One Thing, Soren Kierkegaard

Os sapatinhos são Jimmy Choo

Das coisas que são realmente graves e têm a capacidade de me chatear

Há uns iogurtes gregos que vêm anunciados como sendo de "amoras pretas" mas que, depois, quando se abrem, constata-se que têm amoras cor de amora.
Se vou comer amoras, para mais dentro de iogurtes gregos, acho que o mínimo exigível é que não tenham cor de amora.

sábado, 20 de outubro de 2012


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Aos costumes disse nada


Mas no final do dia havia sol na praia. E um grupo de italianos a fazer aquele barulho que os italianos fazem. E gente a dançar nas mesas ao ritmo de copos de Moet & Chandon. E não restava mais trabalho nenhum para eu fazer. E um dos italianos perguntou-me porque é que não me ria.
E eu pensei por um instante na minha razão.
E ri-me. 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

I must down to the seas again


I must down to the seas again, to the lonely sea and the sky,
And all I ask is a tall ship and a star to steer her by,
And the wheel's kick and the wind's song and the white sail's shaking,
And a grey mist on the sea's face, and a grey dawn breaking.
I must down to the seas again, for the call of the running tide
Is a wild call and a clear call that may not be denied;
And all I ask is a windy day with the white clouds flying,
And the flung spray and the blown spume, and the sea-gulls crying.
I must down to the seas again, to the vagrant gypsy life,
To the gull's way and the whale's way where the wind's like a whetted knife;
And all I ask is a merry yarn from a laughing fellow-rover
And quiet sleep and a sweet dream when the long trick's over.


in, John Masefield

Gestão danosa


Uma análise aturada do meu espólio sentimental leva-me a concluir pela saída possível:
Apresentar a alma à insolvência.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

o banquete dos chacais


Numa sala com vista para uma rua chique de Lisboa, os chacais sentam-se em cadeiras de falso cabedal preto e reúnem-se em torno do meu coração. Um deles tira-o do interior de uma pasta de plástico e pousa-o na mesa de vidro. Com cuidado. Para que não se suje a carpete cinzenta. Depois pesam-no numa balança de pesar farinha. Anotam números incompreensíveis e entreolham-se com ar grave. Há murmúrios de desaprovação. Escolhem um deles e encarregam-no de o espremer. Pelo puro interesse científico em determinar quantas gotas deita. Explicar-me-ão mais tarde.
Nunca nada foi tão reduzido à sua objetiva realidade como o meu coração na mesa dos chacais.
Um montinho de carne crua e ensanguentada.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Um grito

Eco de silêncios reprimidos

O silêncio não matará aquilo que calas.
Ecoa os sons de piano que tatuaram os meus ouvidos.

domingo, 7 de outubro de 2012

Dia non-sense


E houve um dia em que se percebeu que toda aquela gente tinha enlouquecido. Não durante a noite, como um efeito adverso do sono ou da sua falta. Aos poucos. Perdendo a razão todos os dias em ínfimas mas contínuas doses de estricnina social. Enlouqueceram presos num pântano de incapacidade, de frustração, de angústia e de solidão profunda. E até aqueles que foram tendo consciência da perda sua lucidez, deixaram-se ensandecer enganados pelo placebo da artificialidade. A promessa de alívio que não chegou a tempo.
E os loucos tinham sempre frio e procuravam uma fonte de calor qualquer. Não interessa qual. Não interessa junto de quem. 

sábado, 6 de outubro de 2012

homicídios

Se ele é maior e mais forte do que tu e sabe disso, será, com toda a certeza, menos cauteloso.
Envenena-o.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Beach Barbie in the winter



Por agora, neste lounge a três metros do sítio onde as ondas vêm morrer mansas, ainda nos servem o vinho gelado ao som de Erykah Badu.
Mas os toldos e as gaiolas de pássaros de louça que por cima das nossas cabeças abanam ao ritmo do vento contam tudo. Não estariam aqui nesta altura se tivessem passado o verão inteiro a mover-se com tanto frenesim.
Em breve, os casais bronzeados deitados nas camas a trocar protetor solar darão lugar a ingleses de meia idade e galochas a apanhar conchas na praia.
Por trás de nós, na fila de restaurantes, bares e pequenas lojas de recordações, já se adivinha uma plateia de gaivotas expulsas do mar. Cadeiras de vime amontoadas de encontro a janelas sujas. Sacos de plástico a esvoaçar sem dono nem destino. Uma bola vazia esquecida. Restos do verão que se acumulam nas esquinas.
Deitada ao sol, neste sofá branco, esqueço o vinho e agarro-me a essa promessa de outono. O lounge será desmontado, a Erykah deixará de dizer, enquanto se ri, que ooh i´m so in love with you, ooh badhi, badhou,  não será necessário fingir a felicidade e eu e o meu espaço exterior estaremos, finalmente, em sintonia: seremos ambos uma estância balnear abandonada.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

compra-se

Uma pequena dose de indiferença.

O trabalho liberta

A minha nova terra é um campo de concentração com o mar ao fundo. A ausência de fornos não é um resquício de humanidade. Deve-se ao facto de, no trabalho intelectual, o número de incapacitados ser desprezível. Especialmente porque nem sequer têm que nos alimentar.
Entretanto, percebi que a minha conjuntura pessoal dá veracidade à frase. O trabalho liberta porque nos liberta de nós próprios. Liberta-nos de coisas penosas como o pensamento livre e descontrolado. Liberta-nos da angústia existente na ausência de uma vida para vivermos fora dos muros.
Na falta de coragem para me internar num sanatório e passar o dia com um canivete suíço na mão a esculpir corações nas árvores do jardim enquanto marco o tempo pela hora da distribuição dos comprimidos cor de rosa, parece-me que o campo de concentração é um sucedâneo satisfatório.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Para Roma com amor

Aproveitando esse luxo que ainda me parece estranho e que consiste em ter "uma nova terra" com cinema, fui ver o "Para Roma com Amor" do Woody Allen.
Não há nenhum amor no filme, mas há alguma Roma e muito Woody Allen. 
Digam o que disserem, ao contrário dos últimos dois, é um Woody Allen típico. E neste novo mundo de incertezas é reconfortante entrar-se numa sala para ver um Woody Allen e servirem-nos exatamente aquilo que comprámos.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

(de) Composições II

(de) Composições



Deixaram sair os últimos clientes, varreram o chão, fecharam as portas e tu ficaste sozinho, sentado na sala mal iluminada, a brincar com as teclas do piano. Havia, provavelmente, um copo com Bushmills ao lado de um maço de Marlboro. Havia, com toda a certeza, um telefone a transmitir esse instante em que compuseste a música mais triste que já ouvi na vida. 
Quando o som atravessou a longa distância e a tristeza encheu de sombras o azul do meu falso mundo, tu já tinhas saído do bar. Fiquei durante muito tempo a imaginar-te na penumbra ensombrada pelo fumo do tabaco, a voltares as costas ao piano, a caminhares até à porta dessa maneira lenta, grave e séria como caminhas sempre. E a olhares uma última vez para o céu. À procura das estrelas antes de entrares no carro e partires para uma outra espécie de noite. Ainda mais escura. 
Ouço todos os dias a música que compuseste nessa madrugada. E todos os dias te vejo fazer o mesmo percurso. Lento e grave e sério. E é sempre noite. E tenho a certeza que não havia uma única estrela naquele céu. 
Disseste que terias de morrer para poderes continuar a viver a tua vida. 
Mas só muito tempo depois percebi que não era uma simples figura de estilo. 
A música que criaste nessa noite, a que também é minha todas as noites, é a composição sonora da morte em vida. 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A décima sexta casa


Cheguei há dois dias à minha nova terra e à minha décima sexta casa.
Cheguei sem alma.
Essa ingrata inimiga que ficou a pairar vazia sobre uma rocha perdida no meio do atlântico.
E que falta me tem feito a alma.
Os outros que o digam.

domingo, 16 de setembro de 2012

O rapaz da loja de fotografias também devia ser psicólogo

Queixo-me ao empregado da loja de fotografias que não tenho jeito para separar as fotos que, por erro meu ao carregar nos botões da máquina, foram impressas em conjuntos de duas.

O rapaz explica enquanto pega numa das fotografias e coloca a tesoura entre um rosto emoldurado por uma paisagem marítima e um outro com um jardim como plano de fundo:

- Põe-se a tesoura exatamente ao meio e corta-se com firmeza e sem hesitações.

Exibe-me, triunfante, dois autónomos pedaços de celulose com os nossos olhares definitivamente libertos um do outro.

Da importância do Bombay Sapphire na cicatrização dos tecidos

E assim subi (ou desci) todos os degraus da escala de Kubler-Ross, assentando os pés no patamar último da aceitação, com a satisfação interior de ter cumprido um programa que a psicologia estabeleceu para gente previsível e catalogada, como eu.
Não sei o que vem depois da aceitação. Espero que seja a amnésia e não o alcoolismo.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

The Lady of Shalott 3

The Lady Shalott


PART I

On either side the river lie

Long fields of barley and of rye,

That clothe the wold and meet the sky;

And thro' the field the road runs by

To many-tower'd Camelot;

And up and down the people go,

Gazing where the lilies blow

Round an island there below,

The island of Shalott.


Willows whiten, aspens quiver,

Little breezes dusk and shiver

Thro' the wave that runs for ever

By the island in the river

Flowing down to Camelot.

Four gray walls, and four gray towers,

Overlook a space of flowers,

And the silent isle imbowers

The Lady of Shalott.


(…)

Only reapers, reaping early

In among the bearded barley,

Hear a song that echoes cheerly

From the river winding clearly,

Down to tower'd Camelot:

And by the moon the reaper weary,

Piling sheaves in uplands airy,

Listening, whispers "'Tis the fairy

Lady of Shalott".


PART II

There she weaves by night and day

A magic web with colours gay.

She has heard a whisper say,

A curse is on her if she stay

To look down to Camelot.

She knows not what the 'curse' may be,

And so she weaveth steadily,

And little other care hath she,

The Lady of Shalott.


And moving thro' a mirror clear

That hangs before her all the year,

Shadows of the world appear.

There she sees the highway near

Winding down to Camelot:

There the river eddy whirls,

And there the surly village-churls,

And the red cloaks of market girls,

Pass onward from Shalott.

(…)

And sometimes thro' the mirror blue

The knights come riding two and two:

She hath no loyal knight and true,

The Lady of Shalott.


But in her web she still delights

To weave the mirror's magic sights,

For often thro' the silent nights

A funeral, with plumes and lights,

And music, went to Camelot:

Or when the moon was overhead,

Came two young lovers lately wed;

"I am half-sick of shadows," said

The Lady of Shalott.


PART III

A bow-shot from her bower-eaves,

He rode between the barley sheaves,

The sun came dazzling thro' the leaves,

And flamed upon the brazen greaves

Of bold Sir Lancelot.

A redcross knight for ever kneel'd

To a lady in his shield,

That sparkled on the yellow field,

Beside remote Shalott.


(…)

His broad clear brow in sunlight glow'd;

On burnish'd hooves his war-horse trode;

From underneath his helmet flow'd

His coal-black curls as on he rode,

As he rode down to Camelot.

From the bank and from the river

He flashed into the crystal mirror,

"Tirra lirra," by the river

Sang Sir Lancelot.


She left the web, she left the loom;

She made three paces thro' the room,

She saw the water-lily bloom,

She saw the helmet and the plume,

She look'd down to Camelot.

Out flew the web and floated wide;

The mirror crack'd from side to side;

"The curse is come upon me," cried

The Lady of Shalott.


PART IV

In the stormy east-wind straining,

The pale yellow woods were waning,

The broad stream in his banks complaining,

Heavily the low sky raining

Over tower'd Camelot;

Down she came and found a boat

Beneath a willow left afloat,

And round about the prow she wrote

'The Lady of Shalott.'


And down the river's dim expanse--

Like some bold seër in a trance,

Seeing all his own mischance--

With a glassy countenance

Did she look to Camelot.

And at the closing of the day

She loosed the chain, and down she lay;

The broad stream bore her far away,

The Lady of Shalott.


Lying, robed in snowy white

That loosely flew to left and right--

The leaves upon her falling light--

Thro' the noises of the night

She floated down to Camelot;

And as the boat-head wound along

The willowy hills and fields among,

They heard her singing her last song,

The Lady of Shalott.


Heard a carol, mournful, holy,

Chanted loudly, chanted lowly,

Till her blood was frozen slowly,

And her eyes were darken'd wholly,

Turn'd to tower'd Camelot;

For ere she reach'd upon the tide

The first house by the water-side,

Singing in her song she died,

The Lady of Shalott.


Under tower and balcony,

By garden-wall and gallery,

A gleaming shape she floated by,

Dead-pale between the houses high,

Silent into Camelot.

Out upon the wharfs they came,

Knight and burgher, lord and dame,

And round the prow they read her name,

'The Lady of Shalott'


Who is this? and what is here?

And in the lighted palace near

Died the sound of royal cheer;

And they cross'd themselves for fear,

All the knights at Camelot:

But Lancelot mused a little space;

He said, "She has a lovely face;

God in his mercy lend her grace,

The Lady of Shalott".


Poema de Lord Alfred Tennyson