terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Kübler-Ross

Com o tempo, abandona-nos o deplorável vício da recriação de um concreto quotidiano alheio. 
Foi assim que deixei de vê-lo caminhar, desajeitado, na direção do mar. Ou de ouvir a inoportuna gargalhada infantil. Ou de imaginar a sombra das costas projetada pela luz das velas; os dedos a arranharem as cordas da guitarra; a forma inusitada de pegar na chávena do café; uma ruga vertical na testa a anunciar um período de silêncio; o gesto de distender os músculos do pé. 
Então, todas essas insignificâncias, que foram ínfimas parcelas de um homem, perdem-se no universo e o vício da recriação do quotidiano é substituído por uma nova forma de culpa. 
Como os deuses e os crepúsculos, também tu te desvaneces por falta de quem te sonhe. 

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Descobri o haiku do Bashô que combina com este post!
      "amanhã os bolos de arroz
      serão apenas folhas mortas
      sonhando"
      Há um haiku do Bashô para tudo! É oficial!

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