Perdi o olhar num dos espelhos das casas por onde passei. Sabemos que assim é quando, numa inútil tarde de chuva, distraídos e ao telefone, procuramos num dos cantos da boca a causa de uma irritação qualquer e, nesse estado de irreflexão, o espelho devolve-nos um olhar falsificado.
Perdi-o e só agora constatei a ausência.
Talvez o tenha perdido no espelho do hall de entrada da que foi a minha primeira casa minha, na mais bonita rua de Lisboa, e onde o espaço era demasiado exíguo para arrumar tanta solidão.
Mas também posso tê-lo deixado, na urgência da saída, no espelho da sala de um antigo solar, entre as porcelanas e os castiçais de prata, vigiados por um morto que nos censurava do alto da parede onde o penduraram. Era uma casa rodeada de nevoeiro, perdida no meio do oceano, com vista para um prado interminável onde as vacas iam dormir.
É ainda possível, embora improvável, tê-lo esquecido no meio da planície alentejana, na casa que ficava em frente à praça onde os velhos gastavam a reforma na batota e que tinha um terraço onde, deitada, vi chegar e, depois, partir, a lenta primavera.
Ou posso tê-lo perdido naquela casa, quase dentro do mar, onde o vento, à noite, me trazia a fúria das ondas de encontro às rochas, e eu aprendi a escutar-me na sinfonia do caos.
E pode ter-me sido roubado na saída de uma outra casa onde, junto ao meu próprio retrato pintado a acrílico, despojei a minha alma. É uma casa que fechei nas catacumbas do esquecimento e que jaz na imobilidade do gigantesco lençol branco com que escolhi cobrir a realidade.
Sei, porém, que ainda o tinha à saída dessa outra última primeira casa, de paredes com palmeiras lilases ou rosas verdes pintadas, onde os verve tocavam de manhã à noite, aprendi a poesia, demos nomes aos objetos e foi sempre verão. Lembro-me de o ter visto no espelho do sr. Otis, o elevador, quando carreguei comigo o último dos caixotes.
Irremediavelmente, perdi-o na vasta geografia de um exílio tão longo que se fez pátria.
Devias publicar cara Cuca. O carácter afectivo, íntimo ou de um planalto de espelhos, é magnífico, lindo, onírico, de uma sinestesia melancólica mas pungente para quem lê, demasiado belo para se limitar à constrição de um blog. Há livros inteiros sem um segmento de prosa assim.
ResponderEliminarBom fim de semana cara Pirata.
Ora Onónimo, porquê vender o que podemos dar sem prejuízo próprio?
Eliminar:)
O problema são os espelhos... (razão tinha Borges quando dizia que são abomináveis...)
ResponderEliminarPerdem-se coisas nos espelhos. Suponho que também seja possível encontrar coisas nos espelhos. Isso torna-os menos abomináveis.
EliminarLembra-se daquele do esqui? Este está quase tão bom.
ResponderEliminarPerdi a minha referência de humor autodepreciativo desde que o Mexia se deixou de blogues.
EliminarObrigada. Como sou insuspeita de ser modesta, posso dizer que não dava muito por este post.
ResponderEliminarhouve uma altura em que perdi parte de mim num espelho.
ResponderEliminarpassei a comprar tudo por catálogo...
Até outros espelhos?
Eliminarnã davas muito por este post mas devias dar, nã que eu entenda muito da poda, mas gostei pra lá de tanto :)
ResponderEliminarse o encontrar, o que me dás em troca?
Um espelho!!!!
EliminarE se esse olhar ficou exausto de tanto perder-se por aí e ao sentir necessidade de um pouco de recolhimento virou-se para dentro de ti? E se o olhar perdido vem encontrar-se, aqui, precisamente aqui, transformado em palavras escritas?
ResponderEliminar(claro que sim, Cuca, ao contrário das outras pessoas que comentaram eu estou com os olhos postos nas alvíssaras e é apenas algum pudor que está a impedir-me de gritar, encontrei-o! Encontrei-o!)
Este post está mesmo qualquer coisa. Ai, olha-me para esta frase: "Irremediavelmente, perdi-o na vasta geografia de um exílio tão longo que se fez pátria."
Hum, não sei se se conseguem encontrar olhares perdidos em palavras encontradas. Vou estudar esse assunto...
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