Byron não deixava de ter razão quando nos acusava o servilismo, uma raça que nem merecia possuir o paraíso de Sintra. Talvez o melhor de Lisboa seja mesmo Sintra, talvez não. Talvez seja a espuma do Atlântico ou os ratos-gambozinos de Mafra. Talvez a ponte para a Caparica da minha infância. Não foi por causa de Lisboa que não gostei de viver em Lisboa. É com langor que me dou ao assunto, desinteressado de compreender por que raio de razões sempre que regresso me apetece vir embora. Há um verso de O’Neill, o mais lisboeta dos poetas, que abrevia o sentimento: «Dias que passei no esgoto dos sonhos». Foram oito anos disto, a tomar consciência disto, irremediavelmente confinado ao exílio por não me dar com a aritmética dos números, por teimar em apanhar a camioneta em vez do 55, por recusar submeter à razão dos números o significado dos nomes. To call a spade a spade, como diria o amigo inglês que não tive mas que me fez muita companhia no decorrer desses anos de aprendizagem. Em Lisboa chama-se a isto, por desmesurado calculismo, inconveniência, impertinência, porque por lá é tudo forma e número, forma e número.
Pelo Henrique Bento Fialho, Aqui
Viagens na minha terra.
ResponderEliminarA Praça Dom Luís tinha/tem um jardim onde os vizinhos se reuniam e tratavam pelo nome. O prédio tinha a porteira que conhecia toda a gente e o marido que desenrascava todos quando acontecia uma avaria na casa de cada um. Estava perto de uma rua onde cheirava a bacalhau e lá estavam os exemplares expostos para quem os quisesse ver, e de outra rua que tinha uma tasca onde cheirava sempre a iscas à hora do almoço, e a pena que eu tinha por ser das poucas comidas de que não gostava/gosto, mas o que adorava o cheiro das iscas. Dia sim, dia não, com a Praça da Ribeira ali tão perto, lá ia eu com a minha avó, em certas alturas os vizinhos também encomendavam compras uns aos outros, era uma festa a Praça da Ribeira e as vendedeiras sabiam o nome das freguesas e vice-versa e tinham ali isto ou aquilo que estava mesmo à espera da pessoa e esteja descansada que amanhã ponho logo de parte para si assim que chegue, e o cheiro a azeitonas no outro piso e as flores e a senhora que já nem sabia quantos anos tinha a quem a minha avó comprava algodão e ficava ali um tempo a conversar. Depois havia a mercearia do senhor Joaquim e do irmão, aquele tipo de mercearia que também é uma obra de arte e o senhor Joaquim, sempre que lá íamos, abria os boiões mágicos e lá ficava eu com as mãos cheias de línguas de gato e de beijinhos (os biscoitos) que o senhor Joaquim fazia questão de oferecer e a minha avó que não, que não podia ser, mas o senhor Joaquim fazia questão e era sempre assim e pronto. O pão fresco era comprado na dona Isabel que, quando era o caso, dizia que naquele dia dava jeito era dinheiro trocado, paga amanhã quando vier e a minha avó que isso não tinha jeito nenhum, mas era assim e pronto, isto já para não falar na dona Luísa dos correios e podia continuar, continuar, continuar...
Esta é a versão verdadeira de uma outra Lisboa que tive oportunidade de conhecer. Também sei bem da Lisboa do Casal Ventoso, foram incontáveis as vezes que passei por lá, foram incontáveis as vezes que num autocarro de um número qualquer ia alguém ao meu lado com os olhos vidrados, com as pernas a tremer e o cigarro já na boca com a impaciência de quem já não suporta nem mais um minuto sem satisfazer o vício (serviu de exemplo para manter-me bem afastada de tudo o que tivesse que ver com drogas) mas essa foi/é só mais uma Lisboa, devem continuar a existir muitas Lisboas e Portugais então, há uma data deles.
Obrigada pela tua Lisboa, Cláudia.
EliminarAdorei-a. A minha Lisboa, e é a única cidade que considero minha, também não é a do Henrique.
Mas o texto fez-me lembrar que Lisboa são várias.