segunda-feira, 13 de junho de 2011

Anorexia sentimental

Disseram-me que sofro de anorexia sentimental.
Mesmo sem saber o que isso é, pessoalmente, arriscaria antes na bulimia...

Pão-de-ló



És um cacto, c.
Comem-te os burros!

sem emenda. nem remendo.

o sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. assim se insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem se querer, como um veneno dado. não dói, não descora, não abate – mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é ela mesma.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

la nuit

na rua, começam a deixar de passar as pessoas com os cães.

de regresso a casa. pelos caminhos ondulantes de uma bebida fresca.
sem sapatos. no sofá.
janela aberta.
na cabeça, tanta coisa floreada. riem juntos.

num discurso de gargalhadas tentou explicar que estudou a sequência dos semáforos do Largo durante três quartos de hora. no fim da tarde de ontem. enquanto lanchou na pastelaria de esquina. determinou o momento de funcionamento das luzes em que há mais trânsito a entrecruzar-se sob as sombras dos jacarandás.

silêncio. e de novo riso, tanto riso que ele quase não conseguiu dar um nó nas meias de ligas. fez delas uma venda sobre os olhos dela. "para que é que queres isto, querida?"

é daquelas noites em que nem tentou pentear o cabelo. e vestiu um vestido verde.
vai, descalça, brincar à roleta russa para o meio do cruzamento.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

terça-feira, 7 de junho de 2011

Disney Channel



Nesta terra, desenvolvi um reflexo condicionado. Sempre que tenho um problema, pego no telemóvel e marco o número do meu senhorio. Por problema entenda-se tanto o quadro da luz desligado, como não conseguir abrir a tampa de um frasco, afastar a osga da entrada da sala ou, mais raro mas já ocorrido, ficar trancada dentro de casa.
Ele também desenvolveu um reflexo condicionado. Sempre que recebe um telefonema meu aparece-me à porta ainda antes de eu ter desligado o telefone. Em tronco nu. Já era assim em Março e a tendência não melhorou com a chegada da primavera. Atribuo a prontidão à convicção crescente de que ele habita o buraco da salamandra que não existe. Para o facto de estar sempre semi nu ainda não desenvolvi nenhuma explicação esotérica.
Pouco confiante da minha capacidade de associação mental, hoje cometeu a falta de subtileza de me aparecer a cavalo.
Encarei a ousadia como uma ofensa pessoal à minha inteligência e fiquei amuada.
Os velhos da praça fingiram não reagir à aparição do cavaleiro mas bem os vi trocar risinhos trocistas enquanto dobravam as apostas na mesa de madeira.
- diga lá, o que foi desta vez?
- er… tenho o fecho do vestido encravado.
- você andou outra vez a ver telenovelas mexicanas?
- sempre é melhor que tentar imitar heróis da Disney…
- acho que isto representa uma revolta do seu inconsciente contra a racionalidade compulsiva na gestão dos afectos.
- oh, também andou a ler Freud?
- não. Dormi com algumas gajas snobs de Lisboa.

drive all night. in a 4 door maverick.



the rain disregards any agenda under the stars.
the stars are still too far to get you out or by and far.
the rain and the cracklin' light throwing thick thunder and showing off the night.
get it going.
get it gone.
when the lightning can't touch you and you can't go wrong...
in a 4 door maverick.
the roads out here are twice as wide.
when it rains it pours then we slide...
in a 4 door maverick.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

na bagunça, meu sangue errou de veia. e se perdeu.



ah, se já perdemos a noção da hora
se juntos já jogamos tudo fora
me conta agora como hei de partir
se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
rompi com o mundo, queimei meus navios
me diz pra onde é que inda posso ir
se nós, nas travessuras das noites eternas
já confundimos tanto as nossas pernas
diz com que pernas eu devo seguir
se entornaste a nossa sorte pelo chão
se na bagunça do teu coração
meu sangue errou de veia e se perdeu
como, se na desordem do armário embutido
meu paletó enlaça o teu vestido
e o meu sapato inda pisa no teu
como, se nos amamos feito dois pagãos
teus seios inda estão nas minhas mãos
me explica com que cara eu vou sair
não, acho que estás te fazendo de tonta
te dei meus olhos pra tomares conta
agora conta como hei de partir.

domingo, 5 de junho de 2011

a bipolarização do processo de escolha

Se há gesto que eu aprendi a fazer na perfeição, é o de enfiar a cabeça na areia.
Coerentemente com a minha nova natureza, acordei do dia de reflexão com apenas duas dúvidas:
Factor de protecção 20 ou 30?
Carvalhal ou Zambujeira do Mar?

a alegria da democracia




agora já voto na academia (mesa 6).


tarde de eleições em cidades pequenas. incomparável.
e se pudessem os votantes atirar tartes de chantilly à cara dos caciques...





sábado, 4 de junho de 2011

o cliché da morte

Por um minuto o nosso passado caiu dentro do buraco que se abriu quando o alcatrão da estrada se desfez à minha volta.
Por um inteiro minuto consegui esquecer a imagem do holocausto e do teu olhar plácido pousado nela.
Calou-se o som terrível do bater da porta atrás das minhas costas. Esvaiu-se da boca o sabor a deserto. Dissolveu-se a areia da boca.
Durante sessenta segundos vivi a idílica experiência do perdão.
Tempo suficiente para sentir como é branco o espaço que ocupa o contínuo esforço da tua neutralização.
Mas depois disseram-me que, afinal, não estavas morto.
A estrada recompôs-se no meu campo de visão.
E no segundo seguinte voltei a ser a tua viúva.

Chamaeleonidae



Mas a sós com o espelho, o que é que fica?


para o M. que me fez estar em casa fora de casa. para a M. que não quer me ver partir.

- tens a certeza que queres ir jantar comigo? só comigo?
+ sim.
- hum… é que já não estamos juntas há algum tempo.
+ pois não. de ti não aceito cobranças nem ofereço nada em penhor, tem paciência. mas é hoje e vamos a pé. vens ajudar-me a despedir-me.
- ah, já percebeste… então.
+ já.

+ é cómico quererem colocar um prato à tua frente.
- pois é. deixa estar, não contraries. e então…?
+ tem sido difícil. muito. tu sabes.
- sei. tenho estado calada à espera que a moeda se gaste e o brinquedo pare de dar voltas. tu, que até enjoas.
+ e como!
- e como… não podes com nada que gire e eras a criança que nos passeios da escola tinha que ir nos bancos da frente do autocarro, ao pé dos professores... ai. não acredito que vais pedir gnocchi.
+ ela fazia-os tão bem.
- por isso mesmo!
+ estou com saudades…
- vai te calhar mal…
+ és uma desconfiada. preciso que me ajudes a superar os truques.
- que truques?
+ no passeio de volta vou tos apontar.
- ah já sei… os antiquários da D. Pedro V, aquela colina esparramada à frente de S. Pedro de Alcântara.
+ sabes, ainda não sei a quem vou deixar a minha colecção de calçadas. talvez à M.



















+ à vinda para cá descobri que da Rua Maestro Pedro de Freitas Branco vê-se a cúpula iluminada da Estrela...
- deixa-te disso.
+ já deixei, querida. já deixei.
- essas exuberâncias cansam tanto como a praia. cheira-me a fim de Agosto.
+ a mim também, não penses que endoideci.
- sei que não. sei que estás aí dentro. algures…
+ não sejas idiota. não havia outra forma de suportar isto senão distraída. com borboletas. mercados de flores. quiosques de limonada. colecção de céus e de raios de sol. mas sempre de bússola no bolso.
- …











+ por isso deixei de lhes falar. a todos. já tinha os meus de casa a boicotarem-me com as humidades do amor saudoso e sofrido pelo meu desterro. e o M. que não se cansa de mim. eu que me fui tornando cada vez mais espaçosa lá em casa…
- ninguém levou a mal.
+ não sei. isso ainda vou ver. falta pouco e por isso é que ainda menos posso falar-lhes. ou é a sabotagem do final, que se quer pacífico. já não tenho forças.
- estão todos à espera. sossega.
+ receio. dizes-lhes que logo que recupere as 240 horas de sono que tenho em atraso…
- está caladinha que isso nem parece teu. daqui a nada vais começar…
+ a cidade encheu-se de sardinhas decoradas… tenho que levar uma.
- daqui a nada estás é a dizer que gostas de festas populares na rua, poupa-me! queria ver-te nessa alegria romântica no S. João do Rio Largo a levar uma navalhada!
+ é tudo no plano que só plana, menina. não pousa. bem sabes que não bisei sequer o S. João do Porto…



+ tenho sete pedras de gelo, redondas, na groselha. formam uma flor a boiar, repara!
- só tu... ninguém te conhece... a vocês, que somos duas!
+ pois somos. e gosto tanto de estar connosco.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Alone With Everybody

Alone With Everybody


the flesh covers the bone
and they put a mind
in there and
sometimes a soul,
and the women break
vases against the walls
and the men drink too
much
and nobody finds the one
but keep
looking crawling in and out
of beds.
flesh covers
the bone and the
flesh searches
for more than
flesh.

there's no chance
at all:
we are all trapped
by a singular
fate.

nobody ever finds
the one.

the city dumps fill
the junkyards fill
the madhouses fill
the hospitals fill
the graveyards fill
nothing else fills.

Anonymous submission

Charles Bukowski

domingo, 29 de maio de 2011

Um resto de tudo



No fundo das caixas há a decadência. Uma casa sem alma não parece mais vazia quando as nossas coisas saem pela janela. Parece apenas maior. Mais limpa. Limpa de nós. E se temos vontade de ficar dentro dela, a respirá-la, assim vazia, devemos concluir que fizemos tudo mal.
Os caixotes que não abrimos durante inteiros doze meses não nos pertencem. Merecem que os deixemos partir. Reciclar é melhor que congelar. Porque o gelo queima e a reciclagem purifica. Mesmo que não consigamos resistir à tentação de os abrir, já à distância de meio metro do papelão onde incineraremos os ossos da nossa vida. Mesmo que ao abri-los nos caiam aos pés álbuns de fotografias. Sobretudo se essa celulose estiver impregnada do nosso sorriso feliz. Sobretudo se for um sorriso que já não conseguiremos imitar.
É preciso livrar-nos dos restos. Neles estão os rastos. Aqueles que nos habituamos a seguir quando estamos demasiado perdidos para nos conseguirmos lembrar de quem somos. É um exercício fraudulento. Os rastos deixados pelos restos apenas nos conduzem à falsa memória do que fomos. Por vezes, a verdade do que se é está numa casa vazia.
Ou nas mãos penduradas no nada junto ao portão de saída.
Nessas vezes, claro, temos que concluir que fizemos tudo mal.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

segunda-feira, 23 de maio de 2011

planar

domingo, 22 de maio de 2011

AlmaNaque ::: o ultraje dos jacarandás


"oh por favor, toda a gente sabe que quando repetidamente a agulha corre do início ao fim do disco, sem emitir um único som, tens que a trocar. ou esquecer aquelas faixas. de vez!"

*

ja-ca-ran-dá
[do tupi yakara'nda]
s. m.
1. bot.; nome de várias plantas da família das bignoniáceas e das leguminosas.
2. bot.; árvore (jacaranda mimosaefolia) da família das bignoniáceas, originária da Argentina e Bolívia, de porte médio e flores violáceas em forma de campânula.

são tangos que florescem em Maio.
enchem o Largo onde vivo.
inflamam os meus adeus de um arroxeado de crítica definição.
perturbam as minhas noites com o seu perfume amargoso que me tem empurrado para a beira-rio. em busca da aragem do mar.

*

ao espelho, na penumbra. não o partiu. a primeira vontade de o fazer escorreu e se perdeu pelas fendas que o desalento fez no chão de tábuas corridas.

saiu sentindo a necessidade de inexistir. inexistir completamente.

just trying to have a (happy) life















sobre a banda de sonora que escolheste para as nossas saudades em

http://starsmythicalcreatures.blogspot.com/2011/05/banda-sonora-escolhida.html

Esta semana, lá no meu trabalho (Quando a realidade supera a ficção)

- deixe-me ver se percebi: o senhor partiu a arma com um martelo e depois foi entregá-la aos pedaços à GNR.
- isso mesmo, fui.
- hum… e tinha a arma para quê?
- estava para lá. Tinha sido do meu avô e depois do meu pai.
- e não sabe que ter armas sem licença é crime?
- sei, sei. Mas estava para lá.
- e porque é que se lembrou de a partir com um martelo, já agora?
- para evitar dar um tiro na minha mulher...
- er… hum...
- ...e mesmo assim fui entregá-la partida. Sabe porquê?
- nem imagino.
- porque a minha vontade de lhe dar um tiro era tanta que aquilo era capaz de voltar a colar-se tudo só com a força da minha cabeça.

O amor é fútil



Os sentimentos justificam-se pelos detalhes, pelas insignificâncias, por aquilo que é absolutamente acessório e não interessa nada.
Ocorreu-me isso quando hoje olhei para os meus pés sujos de areia e senti saudades de sentir aquilo que sentia quando ele me lavava os meus pés sujos de areia.

últimos dias

Caí de tédio entre as dezanove e as vinte, teletransportando-me para uma soneca deprimida e deprimente no sofá da sala. Não me lembro de ter sonhado – reaprendi a sonhar recentemente, depois da milagrosa e ainda inexplicada cura das insónias – mas aposto o meu polegar direito em como o meu sonho foi aborrecido e pessimista numa estranha mistura de criaturas que, de acordo com qualquer dicionário de sonhos, prenuncia milhões de tragédias.
Acordei com vozes, muitas vozes, demasiadas vozes, em frente à minha janela e devo admitir que pensei imediatamente que eles se tivessem todos revoltado contra mim e se tivessem reunido para me linchar. Ainda fiz um rápido rewind pelas últimas decisões que tomei esta semana, na ânsia de, antes de morrer às mãos do povo, perceber porque é que os irritei. Dizem, nos livros de auto-ajuda, que tudo o que compreendemos não nos faz sofrer. E eu tive uma esperança de última hora que a dor que presumo anteceder qualquer morte por apedrejamento também se pudesse incluir nesse adágio dos vigaristas da auto-ajuda.
Foram conjecturas inúteis. Três minutos depois havia música na Praça e, pela primeira vez desde a minha chegada, não era eu quem a controlava.
Quando saí à rua deparei-me com cinquenta pessoas – todos os homens e mulheres deste lugarejo, velhos e crianças incluídos – a dançar ao som de umas colunas emprestadas pelos Bombeiros.
Segundo me explicaram, e garanto-vos que a explicação era indispensável, aquilo que estavam a dançar eram marchas.
Não se deram ao trabalho de enfeitar com luzinhas as três árvores da praça, de prender fios com papelinhos coloridos, de instalar um holofote. Muito menos de organizar uma quermesse, construir uma barraquinha de farturas ou, ao menos, trazer cervejas de casa.
A festa era só aquilo. Umas colunas de som, uma voz de mulher recambiada dos anos quarenta a cantar músicas com letras que me pareceu me falavam de Alfama e cinquenta pessoas a dançar.
Acabou tudo às vinte e três em ponto. O meu povo insiste em cumprir escrupulosamente a lei, principalmente a do ruído, e sobretudo quando eu estou a ver.
Já em silêncio e com os foliões dispersos, fiquei sentada num dos bancos da praça, ao lado do meu senhorio israelita da Mossad, com a cabeça para trás e os olhos fixos nas estrelas.
- Disseram-me que um dos privilégios de viver no campo é poder olhar o céu e ver estrelas. Mas acho isto muito decepcionante. Estava à espera de melhor…
- Estava à espera de quê? Você pensava que a tinham mandado para o planetário de Lisboa?
Aproveitei logo aquele pequeno momento de hostilidade para tentar resolver o mistério das coisas que neste lugar não são o que parecem.
- agora que me vou embora, podia dizer-me, finalmente, porque é que a sua organização me vigia?
- o quê??
- sim, sim. Qual é o vosso interesse em mim?
- bem… organização não sei… só posso falar por mim.
- deixe-se de coisas. Sei bem para quem trabalha…
Ele pareceu-me genuinamente confuso.
- asseguro-lhe que a câmara municipal não tem nada a ver com a minha vida.
- Ora… Estou a falar da SUA organização. Não do seu emprego de fachada.
- não sou assim tão organizado. E quanto a isso do interesse… eu sou um simples homem, né?
- ah, confessa que há segundas intenções quanto a mim?…
- claro. Se você fosse coxa, marreca e feiosa não lhe trazia peixe fresco.
- explique-me, então, o que é que a sua organização quer de mim!
- organização? Chamam assim, lá em Lisboa?
- não se finja inocente…acabou de dizer que é um mero operacional de uma coisa maior...
- ouça cá…você não namora muito, pois não?

sábado, 21 de maio de 2011

O ímpeto confessório é a mais detestável de todas as manifestações egoístas

- Não tens nada para confessar?
- Absolutamente nada. Tenciono viver emparedada com todos os meus erros.

quadros que também são estados de espírito


Quadro de Jack Vettriano (The Letter)

Levo a planície no coração



A minha missão nesta terra terminou dois meses antes do esperado.


Numa sala escura, três ou quatro homens de gravata sensaborona e corte de cabelo de gosto duvidoso, sentaram-se na frente de uns papéis cheios de números e decidiram que há um outro povo que precisa mais de mim do que este.
Como já começa a ser hábito, a minha nova vida foi-me comunicada através de telefone por uma voz arrastada num falso tom incomodado. Pelo menos, desta vez, pouparam-me ao apresentador de concursos, feliz por ter nascido, que anuncia exílios como quem entrega o primeiro prémio de um tétrico concurso de enciclopédias.
Aqui, na terra, ninguém sabe de nada. Ainda pensei em aparecer ontem, à hora da sueca, para lhes dizer que as nossas soirées culturais terão que prosseguir sem mim. Mas depois limitei-me a acenar-lhes da janela e a gritar-lhes que escondessem as moedas, não fosse a GNR aparecer e descobrir o casino ilegal que instalámos nos bancos da praça.
Afinal, hoje é dia de feira. E não teria sido sensato ensombrar-lhes a felicidade pela antecipação do prazer de comprar baldes de plástico, batas de velha, molhos de couves e selins de bicicleta, tudo devidamente embalado pela apropriadíssima música do Tony Carreira, a vida que eu escolhi.
Decidi que a melhor maneira de lhes dar a notícia é amanhã, na matinée. Vou subir ao palco e fazer um anúncio público. Fiz uma chegada discreta mas exijo uma despedida apoteótica.


O problema dos burocratas que, por decreto, deram a minha missão por cumprida é que, por falta de espaço, nunca tiveram a planície no coração.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Cancelado

Ele era um aeroporto. Nunca me aconteceu nada de bom num aeroporto. Prefiro portos de abrigo.

sábado, 14 de maio de 2011

Madhouse

Uma vez em cada dois anos, ser internada num manicómio transforma-se no sonho da minha vida.


Um jardim grande com grades ao fundo. Um pequeno lago com peixes mortos à dentada. Três limoeiros com loucos pendurados nos ramos. Um banco de madeira verde com enigmas gravados à unha. Meio túnel escavado. Núvens em forma de cães raivosos.


E lá dentro:


Um quarto completamente branco. Pijamas de linho às riscas. Bandejas com comprimidos coloridos. Uma janela que não se consiga abrir. Lençois pregados à cama.


O tempo parado.


Enfim, um sítio em que me pudesse, finalmente, sentir em casa.

Estou farta de gente mentirosa

O meu senhorio israelita da Mossad veio sentar-se na minha mesa no restaurante. Como de costume, era a única mesa ocupada.
Deve ter estado à espreita, nas minhas costas, para surgir no exacto momento em que eu enchi a boca com secretos de porco preto.
Também lhes ensinam estas coisas lá nos campos militares onde os treinam.
Incapaz de protestar sem perder a dignidade, acabei por o deixar sentar-se na minha frente e roubar-me uma azeitona.
Ainda fiz um esforço por tentar lembrar-me se lhe teria pago a renda. Antes de conseguir chegar a uma conclusão percebi que vinha em missão social.
Os velhos da praça disseram-lhe que passei a exibir uma expressão carrancuda e zangada. Que já não se ouve música das minhas janelas. Que vou despejar o lixo durante a noite para não ter que passar por eles. Que ganhei a guerra contra as mulheres que me espreitam para a sala condenando-me à bunkerização nas tardes de sábado.
Da vila, chegam-lhes notícias igualmente preocupantes. Diz-se que lá no meu trabalho já não me vêem passar pelos corredores com um sorriso imbecil na cara. Que quando entro na sala grande tenho um ar mal disposto e, por vezes, me esqueço de dizer bom dia. Que, ultimamente, os grandes textos encriptados que assino estão pejados de expressões como “personalidade desconforme às mais elementares regras sociais” e “falta de competências para uma normal vivência numa sociedade que se quer segura” e “imunidade absoluta aos efeitos das penas”.
Acabei de deglutir o porco preto em silêncio e não lhe expliquei que a génese do meu problema se situa algures entre o cansaço e a mentira.
Ele ficou a olhar para mim durante uns minutos e depois disse com um tom grave:
- Nunca serás capaz de nos compreender.
Fingi não reparar na ousadia da despropositada informalidade.
Sem querer, ele diagnosticou a minha doença.
Não se faz verdadeiramente parte de algo que não se apreende e eu nunca conseguirei compreender as infinitas limitações dos seres humanos.

domingo, 8 de maio de 2011

Se a vida te dá limões, faz... Limoncello



Qui saudadjé di ocê

Amigo:
Acho que foi por ter passado por um campo de girassóis no meio do qual havia uma única papoila. Vermelha e não encarnada.
Gostarias de me ver aqui por estas estradas fora a assassinar pássaros e lebres com a determinação de quem nunca fez outra coisa na vida a não ser assistir a matanças de porcos. Ainda não me convidaram para nenhuma. Em substituição vieram-me chamar para presenciar o nascimento de um burro. Não cheguei a tempo. Demorei a encontrar o calçado apropriado.
Gostaria eu, ainda mais, de te ver aí por essas praias fora caminhar em ziguezague com um livro debaixo do braço e outro a gritar-te dentro da cabeça. Aposto que chegas sempre a tempo mas apenas porque vais descalço.
Pedi ao inverno que te abrace por mim. Suponho que já aí tenha chegado. Espero que não exagere nos afectos e te poupe a uma hipotermia.
Em Setembro voltarei a mudar de terra. Estive a analisar o globo terrestre e descobri que estarei uns quilómetros mais perto de ti.
Ocorreu-me que se há catorze anos a World Press Photo só demorasse até Abril para chegar a Lisboa talvez ainda hoje eu fosse uma pevide.

sábado, 7 de maio de 2011

domingo, 1 de maio de 2011




o teu fantasma

Nas noites em que me distraio ainda me assombras os sentidos. Apareces aos pés da cama que há muitos anos nem sequer é minha. Pálido e magro. Olhas-me com a expressão indignada que só adquiriste post mortem e insistes na mesma pergunta.
- o que nos aconteceu?
Às vezes desapareces quando acendo a luz. Ou a vela de baunilha com que afasto o teu cheiro a sabão. Outras vezes sobes a cama e ficas deitado ao meu lado a segurar-me uma mão que gela no contacto com os teus ossos. Transparentes.
O que nos aconteceu foi um homicídio seguido de suicídio.
Pedes esclarecimentos.
Mas nesse mistério de morte nunca conseguiremos perceber, de entre os dois, quem matou e quem se deixou morrer.
É um enigma absurdo.
A mão que tu seguras não consegue sentir a força dos teus dedos. E o rosto em que procuras explicações não se faz reflectir nos espelhos do quarto.
Somos ambos fantasmas.

sábado, 30 de abril de 2011

Repetir Abril

Não se deixem enganar pelo título. Cuca não escreve posts com conotações políticas.
Abril foi um mês perdido num estado comatoso-vegetativo. E é só por isso que era útil repeti-lo.
A minha actividade cerebral limitou-se ao esforço de concentração necessário à tarefa de me manter agarrada às paredes para não cair no meio do chão e correr o risco de me deixar esmagar por pés humanos grandes e desastrados. Daqueles que não sabem dançar.
Abril foi também o mês em que deixei de ser insone.
Embalada por tanta inacção preferi dormir a aturar-me.

Temo que seja o início de uma tendência.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

a candura do folclore ingénuo

saudades lamechas


da Cuca e da Estrelita.
(banda sonora desta declaração à escolha de cada uma)

domingo, 24 de abril de 2011

o cordeiro do sacrifício

No altar da perfeição, enfeitado pelo pragmatismo e mascarado de sucesso, todos os dias se oferecem sacrifícios de inocentes.
Os altares, já se sabe, são locais perigosos e propensos a asneiras diversas.
E, por vezes, sem que demos conta, no afã do afio das facas e dos pescoços cortados em nome do que nada interessa, somos nós que acabamos transformados no cordeiro do dia.


sexta-feira, 22 de abril de 2011

Concerto Pascal

Eles sentaram-se nos bancos da praça, recostaram-se, cruzaram as pernas, deixaram cair o pescoço para o lado em atitude de profunda reflexão e ficaram imóveis, entregues à quietude da noite com os olhos fixos nas estrelas e os espíritos perdidos entre dimensões inatingíveis. Ou isso.


Na dúvida se aquilo que estava a fazer poderia ser considerado difusão de obra alheia, e na falta da respectiva licença, optei por fingir não ter dado conta que, atraída pelo som que saía das minhas janelas, uma modesta multidão transformou-se em plateia de um concerto de jazz.


Quarenta minutos depois, o CD chegou ao fim e eu fechei as janelas.
Os velhos da praça não se foram logo embora.

Ficaram ali a comentar que aquilo do jazz só era pena não ser o Tony Carreira a cantar.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

G.Steiner dizia há dias que todos deveríamos saber de cor passagens inteiras dos livros que mais gostamos.
Porque saber de cor é saborear com o coração.
Já me contentava em conseguir fazê-lo com a minha própria vida.
Conservar a memória do deleite, quero dizer.

dorrr dji cotovêlu



a expressão teve origem nas cenas de pessoas sentadas em bares, com os cotovelos apoiados no balcão bebendo e chorando um amor perdido. então, de tanto ficar naquela posição, as pessoas ficavam com dores no cotovelo. atualmente, é muito comum utilizar essa expressão para designar o despeito provocado pelo ciúme ou a tristeza causada por uma decepção amorosa.


in dicionário brasileiro da língua portuguesa

Deus está nas mais pequenas coisas


esta terceira Páscoa da K. fica marcada por dois grandes acontecimentos: a descoberta do leite com Nesquik pela caneca e o despertar para os dogmas católicos, aquilo a que os mais dramáticos gostam de apelidar de “mistérios da fé”.


pois que Medusa não deixa passar em branco nenhuma ocasião festiva, já que é uma criatura festiva por natureza e adora porque adora ter gente em casa. por mais atarefada que esteja a sua vida. festa é festa. e já começou a incutir na K. o gosto por receber. o animal doméstico que há em Medusa despertou com a fúria de quem anda enjaulado há tempo demais e lá estavam as duas a preparar o centro de mesa e um arranjo para a entrada de casa, tudo alusivo à Páscoa. tratava-se do jantar que a K. oferece aos seus padrinhos de baptismo no Domingo de Ramos.


cola, tesoura, papel de várias cores. ovos de esferovite para pintar. tintas. pintainhos. o resultado foi sendo alcançado ao som da história de Jesus que excluiu as partes ruins, devidamente substituídas por uma tareia de palmadas no rabo. a K. ia ouvindo com atenção e, por vezes, espanto. que asneira terá Jesus feito para levar tanto castigo? apesar das cogitações, o interesse maior pelas tintas era evidente.


arranjo composto, palmas e abracinhos. quem conhece já sabe que lá em casa não há boneco que não tenha nome. e resolveram dar um ao pintainho.




- e então meu amor, que nome vamos dar ao pintainho…?

- é o pintainho Jesus.





em tempo, o risoto a la parmigiana ficou divino.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Haja critério!


- E foi vinho que o sr. ingeriu?
- Sim, sim, vinho tinto. É a bebida que eu gasto. Que eu não bebo aguardentes, nem café, nem essas coisas.
- ...

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Love issues




(...) I'll see you in the sunlight
I'll hear your voice everywhere
I'll run to tenderly hold you
But, Darlin' you won't be there


I don't wanna say good-bye
For the summer
Knowing the love we'll miss
Let us make a pledge
To meet in September
And seal it with a kiss

Haverá, talvez, uma coisa ainda mais ridícula que as promessas dos amantes:

O esforço que fazem os amantes para não cairem no ridículo de fazer promessas.

terça-feira, 12 de abril de 2011

perder a cabeça ::: pelo olhar de um príncipe












“… não sentirás. quase nada.


que darei ao carrasco uma moeda de ouro para que afie meticulosamente a espada e o faça de um golpe só.

mmmmmmm… a linda santinha cefalofore que tu serás.”

Até vem no Nietzsche e tudo

OS SAPATINHOS SÃO JIMMY CHOO, primavera de 2011


Finalmente, consideremos quão ingénuo é dizer: “O homem deveria ser de tal ou de tal modo!” A realidade nos mostra uma encantadora riqueza de tipos, uma abundante profusão de jogos e mudanças de forma – e um miserável serviçal de um moralista comenta: “Não! O homem deveria ser diferente.” Esse beato pedante até sabe como o homem deveria ser: ele pinta seu retrato na parede e diz: “Ecce homo!”[ Mas mesmo quando o moralista dirige-se a apenas um indivíduo e diz “você deveria ser de tal e de tal modo!”, ainda não deixa de ser ridículo. O ser humano, visto pela frente ou por trás, é um pedaço de destino, uma lei a mais, uma necessidade a mais para tudo que há de vir e será. Dizer-lhe “muda-te” é exigir que tudo seja mudado, mesmo retroactivamente. E realmente houve moralistas consequentes que desejavam tornar o homem diferente, isto é, virtuoso – desejavam-no reformado à sua própria imagem, como pedante: e, para tal fim, negavam o mundo! Nenhuma pequena loucura! Nenhum modesto tipo de imodéstia! A moral, à medida que condena por sua própria causa, e não a partir dos interesses, considerações e pontos de vista da vida, é um erro específico pelo qual não se deve ter compaixão – uma idiossincrasia de degenerados que causou danos imensuráveis. Nós outros, nós imoralistas, pelo contrário, fizemos de nosso coração uma morada para todo tipo de entendimento, compreensão e aprovação. Não negamos facilmente; encontramos honra no fato de sermos afirmativos. Cada vez mais, nossos olhos se abrem a uma economia que necessita e sabe utilizar tudo que a sagrada insensatez do padre, a doentia razão do padre, rejeita – aquela economia na lei da vida que encontra alguma vantagem mesmo nas espécies mais repulsivas de pedantes, padres e virtuosos. Que vantagem? Mas nós mesmos, nós imoralistas, somos a resposta.


In Friedrich Nietzsche, Moral Como Antinatureza


Com trÊs filhas pequenas em casa, tomara que esta verdade nunca seja a nossa.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

o teu fantasma







ela estava em pé, em frente à janela da minha sala, em carne e osso. como Flaubert a descreveu: vestido, pele branca, quase pálida, grandes olhos castanhos directos. os lábios eram mais carnudos do que me lembrava, mas a boca era pouco desenhada. os cabelos, antes escuros, deveriam ser longos. “linda Bovary” – pensava, enquanto ela se voltou para mim. “estás à procura de alguma coisa?” – ao ouvi-la, apavorei-me. estou louco.

o vulto também falava, era ela, e como nunca tinha existido, não estava morta. “o que queres?” – perguntou novamente, caminhando na minha direcção – deixei de raciocinar.

repetiu a pergunta, olhou em volta e sentou-se no meu sofá. ao fim de alguns minutos, conversávamos. contei-lhe em que ano estávamos, país, cidade, dia. respondi a cada pergunta que me fez, tentando ser engraçado. “queres comer alguma coisa?”

“sim, estou com fome.”

enquanto comíamos, eu no chão, ela estendida, não parei de falar. contei-lhe em resumo sobre guerras, arte, música, coisas que pensei que lhe interessariam. ela me olhava atenta – “continua", dizia-me, quando eu fazia alguma pausa; mas eu não podia mais. não podia mais com a ideia de estar louco a falar com o vazio da minha sala.

“gostaria de continuar, mas tu precisas de ir embora.” – disse-lhe gravemente.

“não… fala-me do amor …”

“bem – comecei um discurso – o único direito que temos é a morte, e em alguns países, a matar. a liberdade é um bêbado equilibrando-se numa corda bamba. ser jovem é a única religião; a beleza, a única virtude; o amor é uma doença curada com antidepressivos. não podemos caminhar nas ruas à noite, e durante o dia fazêmo-lo com medo; estamos enjaulados e devidamente anestesiados”.

(pausa).

“no mais, minha querida, todos nós fazemos uns jogos, às vezes somos peões, rainhas, reis, dependendo das posições… e tu, ainda serias considerada louca. temos a loucura toda classificada em termos e analogias mitológicas, que nos dizem o que está certo, o que está errado, quem está triste ou angustiado. e disso tu não escaparias, com certeza. tu e toda a maioria não batem bem, estão insanos por causa de neuroses e porque sonham demais ou de menos”.

(ataque).

“e tu continuarias a ser considerada uma puta, uma messalina, uma vadia… sinto muito dizer-te”. ela só me olhou com ar de quem tinha dado o melhor que podia a quem não lhe reconhecia qualquer valor à oferta.

(desistência).

beijei-a e não senti culpa.

Deficiências


A capacidade de ultrapassar as perdas é uma característica inata nos seres humanos. Infelizmente, alguns nascem com uma deficiência na alma que os torna absolutamente imunes aos efeitos da passagem do tempo na intensidade do desgosto.

Como quem nasce sem audição ou sem olfacto eu nasci amputada na possibilidade de ultrapassar as minhas perdas.


Não há imagem de pinhal que não me retorne a angústia de ter perdido a boneca Clara na sombra de um pinheiro. Trinta anos.

As castanhas assadas no S. Martinho sabem-me, todas, à morte do meu avô. Vinte e um anos.

Qualquer passagem por prateleiras de supermercado com latas de comida de animal seca-me a garganta na memória do gato Óscar. Catorze anos.

Acordar todas as manhãs continua a ser uma bofetada diária feita de cinco dedos de ausência daquele que foi toda a minha vida futura. Três anos.

E por fim…

…Um mês.


Se ao menos hoje eu conseguisse passar por um pinhal sem reviver o desgosto da perda da boneca Clara, ainda poderia ter esperança. Esperança que daqui a trinta anos menos um mês, a minha última perda – e a maior de todas elas – pudesse, finalmente, ser ultrapassada.

domingo, 10 de abril de 2011

Artistas circenses

Sobre as pessoas que não podemos ter, aprendi algo muito importante:
Não existem.

Inspeccionada

Esperou três semanas pelo convite que não chegou. À quarta semana veio sem ser convidada. Encontrou uma casa sem número de porta, numa rua que não vem no mapa e no meio de uma localidade sem placas que a denunciem. A mesma eficácia germânica fez com que também descobrisse a identidade da única pessoa que, para além de mim própria, possuía uma chave. Instalou-se antes de eu chegar. Mudou a disposição dos móveis. Atirou as minhas refeições pré-cozinhadas para o lixo. Reorganizou-me o roupeiro. Disciplinou a empregada. Desceu de Lisboa ao inferno com a finalidade de inspeccionar as minhas novas condições de vida. Durante três dias – ou terão sido três anos? – fiscalizou tudo. Desde o número de curvas que faço no percurso de quinze quilómetros de casa para o trabalho, à qualidade da carne do único supermercado disponível, aos níveis de sal do pão que me vendem, ao grão de areia das praias mais próximas, à árvore genealógica do meu senhorio israelita.

No final, porque o pragmatismo é hereditário e o meu tem fonte conhecida, concluiu da seguinte forma:


- Bem, o melhor que se pode dizer é que quem consegue viver aqui, consegue viver em qualquer lugar.

amor e uma cabana

Portugal


quinta-feira, 7 de abril de 2011

Gente que sabe que o mais importante é manter o estilo em qualquer ocasião



Com a mudança livrei-me dos gritos irritantes das gaivotas que entravam pela janela do meu antigo gabinete. O facto fez parte de uma lista manuscrita onde rabisquei as vantagens de ter sido obrigada a mudar de sítio. A lista fez parte de um processo de convencimento tão desesperado quanto ineficaz. Mas a primavera chegou à minha nova terra. E com ela as andorinhas. E a vantagem do silêncio foi rapidamente anulada pela azáfama destas criaturas esvoaçantes que afinal até são muito mais estúpidas do que aquilo que se pensa. Agora sou distraída pelas permanentes tentativas de suicídio de aves negras que se atiram em voo picado contra a janela fechada do meu novo gabinete. Além disso, quando não estão desmaiadas pela violência do embate contra os vidros, fazem barulho. Um barulho infinitamente mais irritante do que os mios das gaivotas. Um barulho que me faz sentir saudades dos dias em que imaginava várias formas de assassinar gaivotas e vivia confrontada com o problema de saber se, no que respeita ao acompanhamento enológico, gaivota deve ser tratada como carne ou como peixe. As andorinhas não me suscitam esse dilema. Suponho que o mais correcto será acompanhá-las com vinho tinto.

Sem uma perna, com uma muleta, cruzando a ponte

Foi através da inserção destas palavras num motor de busca, vírgulas à parte, que alguém veio ter a este blog. Parece-me uma descrição adequadíssima para me encontrar.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

coretos e altares

… e no coreto que inauguravam naquela tarde de fim de Julho, um conjunto de músicos vestidos de branco tocava um chorinho fresco que lhe sabia a hortelã. gosto que se entrosava na limonada com cacos de gelo disformes servida pelo homem do carrinho quadrado com rodas de bicicleta. o som do pica-gelo contra a pedra gigante que derretia devagar e encharcava o saibro à volta. foi aí que sujou os seus sapatos de sola, que eram novos. já não tinha idade para ir brincar com o irmão e os primos, mas ainda só assistia aos beijos escondidos que o magala dava na sopeira lá de casa. Domingo.

e foi estranho porque, no meio daquela gente toda, apareceu-lhe um rapaz de casaco azul e nariz comprido que, alegando agoniante sede, lhe pediu para partilhar a limonada. no copo, uma só palhinha.

e ela aceitou.

Do merecimento


Há uma amiga que, quando colocada perante os ataques de mau feitio que volta e meia assolam aqui a Estrelita, costuma alertar para a necessidade de cautela quando se pragueja, especialmente envolvendo terceiros.
“Ah e tal, e porque o mal que se deseja pode reverter contra nós. E em dobro.”
“Tudo na vida é uma questão de merecimento.”

Coisas da sua bela avó cabo verdiana.
Coisa para demover qualquer mente temente ao destino, ao karma, à purificação da alma e quejandos.

A Estrelita, sendo uma alma liberta dessa coisa da causa/consequência, quando invadida por uma dessas ondas, deixa-se ir. E tal como as bolhas da tradicional água do vimeiro das garrafinhas verdes, explode e faz arder a língua.
Isto posto, é só para dizer que há por aí umas quantas criaturas que mais podiam era estoirar-se, à séria, e para o resto da vida, de forma lenta e penosa – de maneira a compensar o Universo das alegrias e momentos de felicidade que alguma vez tenham tido.
Apenas, e só, porque é só isso que merecem.
Pronto, `tá dito.

E agora pergunto:
A Estrelita é má e mesquinha? Não, não é.
A Estrelita é vulgar e ordinária? Não, não é.
A Estrelita é invejosa e rancorosa? Não, não é.

A Estrelita acredita no equilíbrio do Universo e gostava de viver numa sociedade verdadeiramente Justa, onde o que se faz, e o que se é, custa a vida que se tem.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

soft & sweet ::: suicide note

o sorriso de um coração sem dono é infinitamente mais triste que a tristeza de um coração viúvo. há uma histeria gritante no segundo de que a serenidade surda do primeiro sente cobiça dolorida.


matei todos os sonhos que tiveram para mim – tenho a casa vazia, deitei-me com mais homens do que aqueles que amei e o que amei de verdade nunca acordou comigo num dia feriado.


eu quero ir-me embora.


os beijos azedam na minha boca. desta vez não chames pelo meu nome, não me peças que fique. esperei a vida inteira por quem nunca me amou e perdi tudo, até o medo.

a esta hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.

para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas essa voz, tu sabes, não é a tua.



os dias foram sempre tão compridos.

e a solidão tão grande.

domingo, 3 de abril de 2011

um progresso é um progresso...

Há motivos racionais e objectivos para a sensação de optimismo que tomou conta de mim. É verdade que ainda não aprendi a fazer bolos. Daqueles grandes, bonitos, deliciosos. Ainda nem sequer tive coragem para comprar farinha e uma batedeira, que presumo essenciais à realização do meu pequeno sonho doméstico. Ainda assim, esta tarde fui dar por mim, feliz e extraordinariamente satisfeita comigo própria, a escolher chávenas de café. Para cúmulo, nem sequer comprei as pretas. Consegui regressar a casa com umas chávenas de flores coloridas. Com a mesma satisfação inimputável, ignorei as coisas importantes que tinha para fazer e destruí duas horas da minha vida, em estado semi-psicopatológico, a desembrulhar as ditas chávenas e a arrancar-lhes os auto-colantes. Por fim, cheguei mesmo ao extremo de fazer um café e de o beber na chávena nova, sentadinha no sofá, a pensar como deve ser bom ser-se uma pessoa normal.

duelos

E na noite em que finalmente tudo acabou, não se tinham passado três mas trinta anos. Eles eram dois velhos. Debruçados sobre uma mesa de jogo. De feltro verde carcomido pelo tempo e pelas traças. Dois velhos. De mãos trémulas em redor de dados de faces gastas. Quem os visse assim curvados, já não saberia dizer, entre o bluff e a batota, qual dos dois tinha marcado mais pontos. Em tempos houve um quadro de scores apontados a giz branco. Mas depois, sem apagador, o quadro acabou por se transformar num caos de vitórias e derrotas de saldo nulo. A uma determinada altura da noite, ela juntou os dados na sua mão, despejou-os na dele e, fazendo um gesto de desistência com os ombros, iniciou os pesados movimentos que anunciavam a sua retirada. O vício, apenas o vício, ainda o levou a ele a puxar de um velho baralho de cartas e a iniciar uma lenta distribuição do jogo pelos dois. Mas ela sabia que, também naquele baralho de cantos desfeitos, há muito que não restava nenhuma dama. Saiu da mesa, condenando-o a uma insonsa vitória por desistência do adversário. Na noite em que finalmente tudo acabou, ela deitou-se, dormiu e fez aquilo que já não fazia há muitos anos.

Sonhou.

No seu sonho, ainda não tinha mãos de velha.

sábado, 2 de abril de 2011

compatibilização de sistemas operativos

Enquanto o computador me transmitia a mensagem “a verificar o software do iphone actualizado” ocorreu-me que poderia igualmente ser o vaticínio de um daqueles bolinhos da sorte chineses. Foi assim que encontrei a tradução do meu próprio estado de espírito. Também eu tenho o raciocínio momentaneamente bloqueado pela necessidade de actualização de software. São os incómodos de se ter uma mente incomparavelmente mais lenta que o coração.