domingo, 29 de maio de 2011

Um resto de tudo



No fundo das caixas há a decadência. Uma casa sem alma não parece mais vazia quando as nossas coisas saem pela janela. Parece apenas maior. Mais limpa. Limpa de nós. E se temos vontade de ficar dentro dela, a respirá-la, assim vazia, devemos concluir que fizemos tudo mal.
Os caixotes que não abrimos durante inteiros doze meses não nos pertencem. Merecem que os deixemos partir. Reciclar é melhor que congelar. Porque o gelo queima e a reciclagem purifica. Mesmo que não consigamos resistir à tentação de os abrir, já à distância de meio metro do papelão onde incineraremos os ossos da nossa vida. Mesmo que ao abri-los nos caiam aos pés álbuns de fotografias. Sobretudo se essa celulose estiver impregnada do nosso sorriso feliz. Sobretudo se for um sorriso que já não conseguiremos imitar.
É preciso livrar-nos dos restos. Neles estão os rastos. Aqueles que nos habituamos a seguir quando estamos demasiado perdidos para nos conseguirmos lembrar de quem somos. É um exercício fraudulento. Os rastos deixados pelos restos apenas nos conduzem à falsa memória do que fomos. Por vezes, a verdade do que se é está numa casa vazia.
Ou nas mãos penduradas no nada junto ao portão de saída.
Nessas vezes, claro, temos que concluir que fizemos tudo mal.

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