Da janela da minha nova sala vejo o jardim, ao fundo a piscina e ainda mais ao longe, o mar a perder de vista. Atrás de mim há uma divisão onde cerca de trinta caixotes por abrir escondem os restos de uma vida cheia de coisas. Vou viver um ano a olhar para frente, como se nas minhas costas não existissem divisões inteiras ocupadas por caixotes selados.
Demasiado frágeis para despachar, demasiado valiosos para abandonar, demasiado pesados para abrir.
Contexto: Cuca e Medusa orgulhosamente sós num sanatório da Europa do Norte (porque, à data, o Mediterrâneo terá aí as suas praias...)
Cuca (aproximando-se da chaise longue onde se encontra Medusa): ahahahahahaha coff coff coff ahahahahaha
Medusa: Então querida, como correu?
Cuca: Era giro o gajo... Disse-me: "A Senhora tem que deixar de fumar de uma vez por todas!"
Medusa: ahahahahahahahahahahaha
Cuca: Pois! Era giro... mas era um miúdo, pá, um miúdo. Olha, apesar disso não me pareceu nada imbecil... nada imbecil mesmo...
Medusa: Mas não é o mesmo do mês passado!?
Cuca: É, é!
Medusa: Oh querida, então... Foi esse que me disse: "A Senhora tem que deixar de usar saltos altos de uma vez por todas!"
Cuca e Medusa: ahahahahahahaha (coff coff coff - Cuca) ahahahahahahaha
Medusa (baixinho): Gente ignorante... humpf!
Cuca: Nem me fales...
silêncio
Medusa: Bem, este solinho de Primavera, vou te dizer... e tu já estás preta mulher, que ódio! Sempre invejei a tua melanina...
Cuca: eheheheheh
silêncio
Cuca: Olha, vem aí a parvalhona da Fraulein-Enfermeira; Oh "psit"! coff coff coff
Medusa e Cuca: ahahahahahahahah
Cuca: Oh Fraulein, é um Gin Tónico e um Dry Martini, sim?
Medusa: O Martini é com cereja, veja lá, não me traga azeitona de novo...
Fraulein: Ja, ja...
o uniforme alvo da Fraulein volta a desaparecer
silêncio
Medusa: Um dia destes levas com um "Ja vol", Frauleinzinha, levas, levas... Lembras-te, querida, do tempo em que eu queria ter uma pistola...? Temos que sair daqui.
Cuca: Pois temos, querida, pois temos. A Estrelita já não manda um postaleco há muito...
Depois de acordar do estampido do rebentamento olhei por mim abaixo e vi-me coberta de escoriações profundas. Nunca poderei esconder a escarificação generalizada que daí vai resultar.
As minhas palavras de conforto têm o eco metálico das coisas falsas.
Sou vista como portadora de uma doença contagiosa quando, em casos semelhantes ao meu, tenta-se falar em esperança. Trago ao pescoço o sino dos leprosos.
Sou o chapéu em cima da cama, as facas cruzadas à mesa.
O espelho partido.
Não se pode dar aquilo que não se tem.
"Esta é a verdadeira pobreza do homem" (Benedictus PP. XVI)
Sou, por natureza, uma pessoa invejosa. O alvo da minha inveja é constante desde que me conheço por gente: mulheres mais bonitas do que eu e apaixonadas. Podem ter a inteligência de uma anémona, as posses de um monge mendicante, o mau gosto de uma esteticista de bairro. A minha inveja é implacável. Desde que sejam mais bonitas do que eu e tenham um ar profundamente apaixonado desencadeiam-me imediatamente uma onda invejosa-rancorosa que me faz imaginar-lhes, para meu próprio consolo, uma vida escondida de tédio, dramas e, se forem mesmo muito bonitas, desgostos profundos. Com o tempo habituei-me a viver com este defeito de carácter, hiperbolizando-o em vez de o esconder. A assunção pública do meu defeito, não o torna menor mas retira-lhe parte do carácter maligno e rancoroso. Este domingo, a minha inveja conheceu novos e preocupantes domínios. Estava eu, por motivos sociais, enfiada numa igreja, quando, subitamente, senti uma onda invejosa inundar-me as sandálias Jimmy Choo. (a inveja a mim ataca-me sempre pelos pés). Inicialmente ainda tive esperança que o tsunami tivesse sido desencadeado pela perfeita loura de um metro e setenta e cinco, que estava serenamente sentada ao meu lado, nos seus fantásticos caracóis, enquanto mantinha o olhar preso ao do seu igualmente perfeito marido que, por sua vez, vigiava duas geneticamente perfeitas criancinhas, os quatro imbuídos de um irritante ar de família adoravelmente apaixonada por si própria. Infelizmente, não eram eles que me estavam a incomodar. O epicentro da minha inveja emitia vibrações directamente da nave da igreja. Era um homem com cerca de trinta e cinco anos, barba mal aparada e batina encarnada que estava despejar um sermão a uma congregação demasiado toldada pelo calor para o ouvir. Depois de uma rápida sessão de auto-análise, descobri que subi um degrau em matéria de maus sentimentos. O padre tinha um sorriso estranho, daqueles que vêm de dentro e que raramente conseguimos encontrar nas pessoas. Ria-se enquanto falava do mítico rei Midas, ria-se enquanto os miúdos da catequese se enganavam nas leituras do novo testamento e ria-se enquanto lhes perguntava se renunciavam a santanás. O padre era profundamente feliz. E isso transbordava de forma tão insultuosa que teve o desplante de centrar o sermão no tema felicidade. E eu dei por mim a despejar a minha energia invejosa numa criatura de deus que não tem mais nada que se lhe inveje, a não ser a felicidade. Uma alma mais pura do que a minha, poderia ver nisto uma forma de evolução, uma espécie de espiritualização da inveja, um recentramento numa direcção menos fútil. Por mim, acho uma catástrofe existencialista. Invejar louras apaixonadas é um tique feminino que, apesar de inconfessado, é habitual. Padres felizes? É o fundo do poço!!!
Cuca ao telefone com o senhor da empresa de mudanças: - Quanto???? 35 euros à hora??? Com um mínimo de duas horas??? Não pago isso!!!
Senhor da empresa de mudanças: - Ah, pois não paga não! Disse que queria o serviço no Sábado...aos Sábados paga 40 euros à hora, com um mínimo de 4 horas.
Cuca a antever uma casa repleta de caixotes, mais caixotes perdidos no elevador, caixotes esquecidos na arrecadação e uma dor horrível nas costas:
They're almost falling over you Why don't they call a truce Whatever they are trying to do It's of little use
They're drowning you in compliments Trying to furnish proof And though they speak with eloquence There is little truth
You're BRIGHT, you're STRONG You know your right from wrong At least to some degree You're WISE, you're TOUGH You've heard their lies enough You smile in sympathy
I'm watching your serenity The way your soul transcends Their tedious obscenities Your patience never ends
And as the night begins to fade You're heading for the door Followed by a sad parade You're on your own once more
You're BRIGHT, you're STRONG You know your right from wrong At least to some degree You're WISE, you're TOUGH You've heard their lies enough You smile in sympathy
inventário (in-ven-tá-rio) s. m. Rol, registro, catálogo por escrito e por artigos, dos bens, móveis, títulos, papéis de uma pessoa: fazer o inventário de uma sucessão. O papel em que se acham escritos e descritos esses bens. Avaliação das mercadorias armazenadas e dos diversos valores, para conhecer lucros e perdas: o comerciante deve fazer de vez em quando seu inventário. In, Dicionárioweb
Daqui a nada não restará nenhum património comum. Troquei o teu dinheiro por etiquetas. Abdiquei da custódia da empregada. Exterminei pela sede a planta que dividia contigo. Comi o doce de morango que roubei da nossa despensa. Gastei a lixívia que trouxe por engano. Cortei a mão a que se ligava o dedo onde brilhou a tua aliança. Devolvi-te o vazio e o silêncio que me emprestaste. Acordei dos sonhos para não os partilhar. Agora parto da cidade para não dormir sob a mesma nuvem. Constato que, um a um, se desvanecem todos os bens do inventário do nosso património comum. As fotografias eram digitais e perderam-se num bug. A nossa História também.
Contexto: Velhinho sem dentes, acusado do crime de maus tratos à mulher, arrastando atrás de si umas muletas. - É verdade o que está aqui escrito? Neste dia e hora o senhor agarrou a sua mulher pela cintura e bateu-lhe? - Eu???? Não toco nessa mulher há vinte anos! Até me mete nojo! - hum…e é verdade que em várias datas não concretizadas lhe chamou puta? - Eu??? …Isso é capaz, é! Não me lembro, mas é capaz. - hum…então e quer explicar porque é que chamou puta à sua mulher? - Eu??? Porque ela me chama corno e cabrão!!!
Dois minutos depois entra na sala a vítima, igualmente velhinha e desdentada, mas sem muletas e ligeiramente menos arrastada. - Ai, as coisas que esse homem me fez! Durante estes anos todos…e bateu-me e tentou deitar-me o fogo e quer envenenar-me e chama-me de tudo e tranca-me a porta para me deixar na rua…. - hum...olhe…o arguido disse aqui, antes de a senhora entrar, que só lhe chamou puta porque a senhora lhe chama cabrão... - Eu???? Er… mas isso, eu…er…. é com carinho! Eu chamo sempre cabrão com carinho!!!
Cuca, de manhã, ao telefone com o seu novo agente imobiliário : - Muitíssimo obrigada pela sua colaboração. Vai ser muito simples e rápido. Quero uma casa nova, com uma cozinha totalmente equipada, num condomínio fechado com bom aspecto e piscina, que seja seguro e tenha lugar de garagem. Pode ser T1 ou T2 e tem que ter mobílias num estilo clean. Cuca, à noite, à porta de uma espelunca, com o seu novo agente imobiliário: - Há uma diferença entre “condomínio fechado” e um prédio com um portão manhoso. Também há uma diferença entre “edifício emblemático” e o prédio mais velho da cidade. E podia ter-me avisado que “visita assistida” significa ter o proprietário octogenário a respirar em cima de mim enquanto me tenta impingir o pardieiro. Cuca ao telefone com o seu agente imobiliário (dia seguinte): - Tenho muito pouco tempo para andar a ver casas que não me interessam, por isso quero ver fotos das casas antes de ir visitá-las. Cuca novamente ao telefone com o seu novo agente imobiliário (meia hora depois): - Tenho muito pouco tempo para ver e-mails, por isso não me mande fotografias de casas de velhos. Cinja-se às indicações que lhe dei e não me deprima! Cuca novamente ao telefone com o seu novo agente imobiliário, depois de constatada a inexistência de um único mail (fim do dia) - Também pode ser um T0 ou um T3. E pode não ter mobília. E podemos prescindir da piscina e do condomínio fechado. E vamos alargar o raio de localização para 15 quilómetros. Prevê-se que amanhã a esta hora Cuca tenha arrendado uma caravana no parque de campismo de Carcavelos.
Estava a acabar de se sentar quando chegou um novo carro à máquina de lavagem. Eh pá, puta que pariu, acabei de me sentar! Dirigiu-se lentamente ao cliente que estava alapado dentro do monovolume de vidros fumados. Carro de gaja. É para lavar e aspirar? De dentro veio uma voz feminina que apenas disse Está muito sujo. Num tom irado retorquiu Mas é para lavar E aspirar!? Saiu uma mulher de sorriso tímido, lindo, que tirou os óculos de sol que colocou na cabeça a apanhar os cabelos castanhos compridos brilhantes como ele nunca tinha visto. Ela referiu um breve Obrigada. Tentou permanecer mau humorado e rude. Arrependeu-se. Que camelo. Logo quando me calha uma gaja bonita... Ela voltou a entrar no carro e ele começou a pré-lavagem. Resolveu esmerar-se para tentar compensar a má impressão inicial. Lavou-lhe o carro à mão duas vezes. Esfregou as jantes calcinadas pelas travagens até se ver nelas. E fez sinal para que a mulher avançasse com o carro de forma a ser puxado pela máquina. Ela já não sorria e havia voltado a colocar os óculos de sol. Carregou nos botões e deixou que a máquina fizesse o que lhe competia. Dirigiu-se ao aspirador e esperou por ela.
A máquina ensaboou, esfregou, encerou e secou. Ela reapareceu por trás da última escova que automaticamente se levantou sobre o tejadilho do carro. Quando deu o verde, ela avançou e ele ajudou na manobra de estacionamento. Fez questão de lhe abrir a porta. Ela, que entretanto voltou a sorrir, corou ao pedir que aguardasse um pouco porque tinha muitas coisas no carro, coisas que queria colocar na bagageira antes que começasse a aspirar. Pediu desculpa por isso e ele já sorria de volta. Claro claro, quer que ajude? Não, deixe estar... Atabalhoadamente, ela fez a arrumação possível e deixou finalmente livres os tapetes e os porta-coisas típicas dos monovolumes. Nesta altura já mais dois colegas dele tinham aparecido para ajudar. Ela deixou-os de aspirador e panos nas mãos e foi para a estação de serviço pagar.
Algum tempo depois, ela fez accionar o automatismo das portas de vidro e saiu em direcção a ele. Estava vento. Ela tinha os cabelos compridos e brilhantes como ele nunca tinha visto. Vestia qualquer coisa que esvoaçava com eles. Ele viveu esses vinte segundos do percurso de volta ao carro com a imagem dela em câmara muito lenta e o Michael Bolton a gritar-lhe dentro da cabeça num inglês pouco correcto de quem não tem mais que o ciclo preparatório.
Desculpe mas reparei que o carro da Sr.ª tinha os pneus em baixo e estive a acertar isso... Obrigada. Sabe, eu também já tinha reparado mas não sei fazer... Quanto lhe devo? Nada, nada, a lavagem já a pagou lá dentro, não foi? Está tudo ok. Da aspiração também não é nada pois estavam duas fichas encravadas na máquina e aproveitei para a Sr.ª. Se a Sr.ª quiser, verifico os pneus sempre que voltar cá, é só lembrar-me, não há crise.
Ele ajudou-a a fazer a manobra e ficou a vê-la até que o último brilho do tejadilho do carro dela desapareceu no meio do trânsito.
Parte II: Muito cabra, mas o Mundo é mesmo assim
Carro imundo. O meu italiano lindo... Mas dar € 12 para o lavar...!? Tem que ser. Se estiver muita gente, primeiro vou verificar os pneus. Que chatice, já não tenho klenexes e vou ficar com as mãos nojentas. Mas tem mesmo que ser, ainda fico sem pneus andando nestas condições... Ok, não está ninguém para lavar. Mas também o macaco que costuma aqui estar não se vê! Não me digam que a porcaria da máquina está avariada! Ah, vem aí o gajo. Hum, se eu fizer aquele arzinho de mulher desamparada será que ele me lava o carro à mão? Mas só se for pelo mesmo preço da lavagem na máquina...
...
Que idiota malcriado! Vais ver a gorjeta que vais levar no fim, palhaço. Olha, olha, deve estar arrependido, a esfregar o carro desta maneira... Parvalhão. Bolas, ainda arranca a pintura toda... Agora desapareceu! Se calhar desmaiou. Ah ok, lava as jantes, lava que estão pretas. Esfrega, esfrega, parvalhão. Ok, ok idiota, já percebi que é para avançar. Olha para a carinha de gozo dele, a pensar que não consigo colocar o carro na máquina! Deve estar a pensar “o marido deu-lhe o carro...” Vai, vai, desaparece para o buraco de onde rastejaste.
...
O rádio até funciona bem cá dentro... Nunca percebi como é que a máquina “sabe” onde esfregar, os carros são todos diferentes... Eu sei sim, são sensores, não preciso de fazer de idiota cá dentro.
...
Xiiii, é ele de novo na aspiração... Que caramba, não há mais ninguém que possa aspirar o carro nesta espelunca!? Ainda me fana o portátil... Olha para ele a “ajudar-me” a encostar o carro... Minha nossa, que idiota. Bem, tenho que “ganhar” esta aspiração de qualquer maneira, não me apetece pagar mais que € 10 para ter o carro habitável. Cá vai o ar de mulher desamparada. Estão cá outros dois macacos.Vamos lá ver se cola...
...
Espero bem que aspirem direito e que não me engordurem os vidros com panos meios sujos de serviços anteriores.
...
Não era aqui que se vendiam aquelas águas americanas coloridas...? Ah aqui. Bolas, € 2,5 por meio litro de água com corante! Que se lixe... Roxa ou laranja...? Roxa. Deve ser doce como o raio. Que fila, porque não abrem a outra caixa!?
Olha, olha, estão a calibrar os pneus!!! Boa! Aposto que um deles está a ter uma frase do tipo se fosses minha mulher, trazia-te sempre de pneus calibrados... Mecânicos, trolhas, é tudo da mesma laia.
É para pagar a água e a lavagem. € 13.
...
Que porcaria de vento. Ah que lindinhos, à espera de gorjeta... nem um biscoito de cão vão levar! Olha por ti abaixo, homem-de-fato-macaco... Malcriado. Que idiotas. Voltarei sempre, fica descansadinho, para levar a aspiração de graça e não ter que sujar as mãozinhas nas válvulas dos pneus!
Enquanto dormias, Lisboa respirava. O restaurante era quente e estava cheio. Os pratos eram muitos e a vodka era pura. Havia risos, filosofia fácil e lendas urbanas. E, já na rua, havia pessoas com pressa de chegar a um local onde estariam mais pessoas. Talvez alheadas de si próprias. E depois havia frio e pernas estendidas em chaise longues a acompanhar mais vodkas. Com vista para a ponte feita de luzes de todas as cores. E outros risos, filosofia fácil e mais lendas urbanas. Alguém me estendeu um casaco contra o frio. E enquanto o vesti fiquei sentada a olhar para a ponte como se te procurasse no meio dela. Talvez alheada de mim própria. Perdida numa espécie de kitsch urbano que respirava enquanto tu dormias. E depois veio a música. E os risos pareceram-me mais falsos, a filosofia demasiado evidente e as lendas urbanas histórias sem mística repetidas de boca em boca. E de repente senti-me como se sentem as pessoas vestidas com um casaco emprestado. Desconfortável com a respiração de uma cidade. Por querer estar a dormir dentro de outra.
Adoro o Mar. Nasci numa cidade construída numa baía sobre o Índico. Cresci a 3 kms da praia. Recusei-me a concorrer às Instituições Europeias porque não suportaria continuar a viver no Centro da Europa. Vou agora instalar-me a cerca de 250 kms da costa. Vai custar-me horrores ressacar a falta de maresia.
Adoro o Mar. Mas gostava de não o trazer nos olhos.
No meio daquela multidão, ele buscava avidamente os sapatos dela. Porque não a podia procurar de outra forma. E mantinha assim, discretamente, o controlo dos seus passos. Distantes estavam todos. Era assim que ele a seguia. Pelos sapatos.
Não olhava para ela. Medo. Pavor. Dele próprio.
Era assim que ele a achava no meio daquela confusão. Pelos sapatos. Sempre que os encontrava, descansava um pouco. E logo começava a ansiar de novo. Pelos sapatos dela.
Porque não podia olhá-la. Medo. Pavor. Dele próprio.
Entrada ao estilo carriage way, coberta, sendo a alameda do portão até à casa em gravilha (pelo prazer do som que produz)
Um pomar perfumado
Muros até ao limite do possível
Quarto de vestir individual, sublinhando-se a palavra quarto, por oposição a um roupeiro grande onde se consegue entrar
Uma banheira que verdadeiramente acomode duas pessoas, encostada a um janelão que dê para o pomar referido supra
Uma biblioteca para finalmente arrumar os livros até ao tecto com piano à escolha do marido
Madeira verdadeira, sublinhando-se a palavra verdadeira, por oposição àquelas coisas indescritíveis com meio centímetro de espessura e que dizem que flutuam: nas caixilharias e no chão.
Uma camélia e uma magnólia branca, pelo menos
Um par de cadeiras Barcelona Mies Van der Rohe em tom caramelo tostado
E janelas, janelas, janelões que dêem para o verde
Não gosto de despedidas. O ar lamechas fica-me mal. Por alguma razão estranha, as palavras da praxe, por mais verdadeiras que sejam, quando ditas por mim soam aos diálogos dos filmes portugueses dos anos oitenta. A minha hesitação em tocar nas pessoas acaba sempre em abraços desajeitados, iniciados pelos outros, durante os quais eu me concentro numa forma digna de lhes pôr um termo. O facto de ter um choro difícil e uma despropositada ironia não ajuda. Para mim, as despedidas são uma catástrofe relacional. Tanto as pequenas como as grandes. Nas festas, há muito que me habituei a despedir-me apenas dos anfitriões, esperando os raros momentos em que estão sozinhos. Na vida, prefiro afastamentos civilizados a despedidas efusivas. Hoje saí de casa com a missão secreta de me despedir de algumas das mais de cinquenta pessoas que habitam o meu local de trabalho. Não saber praticamente nada sobre a vida desses que me rodearam, aliado à circunstancial inexistência de nostalgia, privilégio de quem acredita partir para melhor, faziam adivinhar uma despedida fácil. Três frases formais e um aceno profissional. Hoje passei o dia a adiar o instante em que sairia do meu gabinete para cumprir a missão secreta de me despedir de algumas das mais de cinquenta pessoas que habitam o meu local de trabalho. Adiei-o tanto que chegou a hora em que todos os outros abandonaram o edifício e partiram para as tais vidas pessoais que eu desconheço completamente. E quando o edifício ficou estranhamente vazio, e pela primeira vez meu, passeei-me pelos corredores com uma daquelas caixas que se usam nos momentos das despedidas profissionais, nos filmes americanos, perguntando-me se amanhã alguém vai notar a minha ausência. O alívio da impossibilidade do cumprimento da minha missão secreta, fez-me baixar a guarda e por um momento, a sós, consegui dizer um adeus condigno a uma fase da minha vida. Ou assim achava eu, até chegar ao parque de estacionamento e encontrar a única pessoa de quem não me queria despedir. Faltaram as três frases formais, o aceno profissional e até a ironia e o abraço desajeitado. Ficámos ali um a olhar para o outro. E eu, pela primeira vez na vida, a lamentar ser tão má nas despedidas. Não saber dizer as coisas certas no tom credível, não conseguir tomar a iniciativa de abraçar as pessoas. Ser de choro difícil. E depois, entrar no carro com um nó na garganta.
No dia seguinte, quase todos os balões já tinham perdido o hélio. De forma irregular. Uns ainda estavam colados ao tecto, outros a um metro dele. Os mais coloridos estavam espalhados pelo chão.
Foi quando eu percebi que não vais vê-la crescer. Não com estes olhos de vida.
A tristeza da tua ausência fica cada vez mais funda. A dor é física.
Lentamente vou acordando para o facto de ser infinita.
As pirâmides do Egipto: pequenas. A esfinge: mistérios de criança. Paris: um ligeiro odor a demodé. O mar do México: previsível. As praias de Cuba: cheias de pobres. Phi-phi Island: deve ter sido bom antes do tsunami. República Dominicana: mais ou menos igual à Caparica. Amesterdão: repetitiva. O deserto: cheio de areia. África equatorial: demasiado húmida. O Nilo: um riacho. Salvador: Uma espécie de Coimbra com praia. Dubrovnik: repleta de russos mal-educados. Quando me tocas aquela zona da pele, entre o pulso e o antebraço, tu és Istambul visto do Bósforo.
viuvez (i-u...ê) s. f. 1. Estado de quem é viúvo. 2. Fig. Solidão; privação. 3. Desconsolo; desamparo. In, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
A viuvez, mais do que um estado civil é um estado de espírito. Apesar de tudo, confere ao dissolvido património conjugal a dignidade que lhe falta na mera separação. Evita-se a distribuição de culpas e tem o conforto do absolutamente irremediável.
A um homem de quem fui mulher, não tenho feitio para ser menos do que a sua viúva. A circunstância de a outra pessoa continuar a respirar é um mero fait diver pelo qual não nos devemos deixar distrair.
Estrelita não exagerou nada. Era um papel de parede pior que horrendo. Acho que agora se chamaria art decor. Na altura, quando tínhamos que viver embrulhadas nele, era só tenebroso. Especialmente quando se estava de ressaca. E havia muitas ressacas naqueles tempos, ou não fossem eles os dias vodka redbull. Também foram os dias das Polaroid nas paredes, do alucinante ritmo da noite de Lisboa, das massas italianas com vinhos manhosos, das camas que se partiam misteriosamente, do elevador a que atribuímos um nome próprio. Dos Verve para Estrelita e dos Alphaville para mim. Foi nessa casa mítica que percebemos que a normalidade não queria nada connosco. E que, em retaliação, passámos a não querer nada com ela. Acho que os nossos gentis senhorios teriam ficado surpresos se soubessem que, à noite, as meninas-doutoras se chamavam Maria e Madalena, eram enfermeiras ou hospedeiras (e até chegaram a ser engenheiras) e tinham uma especial propensão para se enganar nos números, na hora de deixar o contacto telefónico. Ao perceber que nas memórias dessa casa nunca foi inverno, como se tivéssemos caído num milagre dos trópicos que se prolongou por quase dois anos, ocorre-me que devemos ter sido muito felizes. Apesar das tragédias que nos iam acontecendo, mas das quais ainda tínhamos a capacidade de rir à gargalhada por, até as tragédias, terem o charme exótico das coisas novas. Também ajudou o facto de ser impossível levar a sério qualquer drama enquadrado por aquele tétrico papel de parede. Fomos felizes da maneira como que se é feliz quando nem sequer se pensa nisso.
Cuca, desesperada, deitada na marquesa do hospital, coberta por um daqueles arrepiantes lençóis verdes, à espera do médico-cirurgião, 45 minutos atrasado: - Ai!! Dói-me muito!! Médico, todo feliz por ter nascido e por estar agarrado a um bisturi: - Bom dia!!! Então, cá temos a nossa paciente-impaciente de quem as minhas assistentes já me fizerrrram tantas queixas! Cuca, a quem a cegueira da dor deixou escapar o elemento bisturi: - Quer fazer o favor de se deixar de piadinhas-cliché e acabar rapidamente com a minha miséria?? Segue-se uma previsível discussão sobre a impossibilidade da utilização de anestesia num caso clínico igual ao de Cuca. Foram utilizados os argumentos técnicos “carniceiro”, “falta de civilização” e “isto não é a segunda guerra mundial”. No calor do brainstorming científico talvez tenha vindo à baila o termo “nazi”! O médico, por mero azar, era alemão.
Cuca ganhou a anestesia, mas suspeita-se que tenha perdido para sempre a sensibilidade.
Chegada a Lisboa para o "Agora é que a vida começa a sério" instalei-me alí para os lados do Gemini. Primeiro, no sítio onde algumas coisas desta santa vida se iniciaram, não me recordo se no 2º, se no 3º piso - sei que era o último - de um prédio com a idade da minha avó. Sei que o estudio era branco, e a casa de banho azul. E que a dividia com a Cuca. Logo a seguir, no piso inferior do mesmo prédio. Atentas as concretas memórias que me ficaram daquele local, justificava-se que recordasse o nome da Rua e o número da porta. Se alguém a disser reconheço-a certamente. O prédio pertencia aos senhorios que viviam no andar de baixo. O Sr. Afonso e a D.....(?). Sempre simpáticos, prestáveis e solitários senhorios. Sempre demasiado preocupados com "as Meninas Doutoras". Lembro-me que, cada vez que lhes iamos pagar a renda (em dinheiro contado visto que desconfiavam dos bancos), nos contavam chorosamente a nebulosa história do filho que apareceu morto dentro de um carro a que alguém ateou fogo. Mais ou menos pouco tempo depois de eu ter nascido. Daquilo que a cada vez iam revelando fiquei convencida que o tipo devia ser uma boa bisca, que era contrarevolucionário, que pertencia a alguma milicia secreta ou grupo armado terrorista.
Daquele inicio de vida, naquele simpático e vetusto prédio a mais arrepiante memória que tenho é a das cores com que fui obrigada a conviver durante cerca de ano e meio. Uma vida que tem por cenário quatro paredes roxas às flores brancas, não se apresenta muito promissora, não obstante florida. E eu estava a começar a minha. Aquela que ia ser a sério. Mas pior era o pesadelo do quarto ao lado: fundo rosa velho (do forte) e ramagens verde garrafa! Corredor azul escuro, cozinha e wc indescritíveis (a memória não reteve qualquer informação acerca daquela preciosidade). Ah! e a porta misteriosamente trancada que dava acesso a uma divisão cheia de tralha até ao tecto. Desconfio que o seu conteúdo justificava a parte da história que o Sr. Afonso e a esposa omitiam no seu relato mensal.
Não se pense, porém, que dali resultaram vidas de caos, tragédia e horror. A este cenário policromático respondemos com cera com cheiro de mel de abelhas e poesia declamada com o maior ardor. E com musica, muita musica da boa.
Consigo ver-te da minha sala quando te penduras na janela da cozinha a fumar um cigarro.
Consigo ver a tua vida porque apesar da forma meticulosa como decoraste a casa, esqueceste-te de comprar cortinas. Não tens mais de trinta e dois anos. No passado, leste todos os livros que pudeste, namoraste com todos os homens que quiseste, acreditaste no futuro que te vaticinaram. Agora, tens um daqueles maridos dos anúncios, com um carro das revistas, que faz sempre mais barulho do que os outros quando o seu dono, teu marido, sai de casa às oito da manhã vestido com os fatos que lhe escovas na varanda do quarto. O teu cabelo aloura proporcionalmente à velocidade com que emagreces. Aumentas o tamanho dos decotes para que o dono do carro perceba que tem uma mulher ao lado. Mas o dono do carro está sempre ao telemóvel. Chegas a casa antes dele para lhe cozinhares um jantar de Japanese fusion que há-de ser comido com algum desdém e duas horas de atraso. Sem te avisar. Sentas-te à mesa e fazes o teu melhor sorriso enquanto lhe perguntas como foi o dia dele. Aprendeste a fazer isto com a tua mãe. Que aprendeu a fazer isto com a tua avó. O teu marido nunca te pergunta como foi o teu dia. Não lhe interessa. A ti também já não te interessa. O teu dia começa no instante em que ele toca à campainha por não se dar ao trabalho de tirar as chaves do bolso. O porta-chaves custou-te um mês de salário ganho com um emprego que ninguém percebe porque manténs. Todos os dias, depois do jantar, ele deita-se no sofá a assistir a um programa de televisão enquanto pensa numa maneira de ganhar ainda mais dinheiro. Tu escondes os pratos na máquina de lavar louça que a empregada há-de ligar no dia seguinte. Sentas-te ao lado dele. Insistes numa tentativa falhada de carinho de fim de dia. Levantas-te. Voltas à cozinha. Abres a janela e penduras-te a fumar um cigarro. É nesse instante, em que o dia acabou de começar e já antecipas o prenúncio do seu final, que te ocorre que as noites são cada vez mais curtas. Que o teu marido preenche a sua ausência com os gadgets com que enfeita a casa. Que nunca vais ter um filho porque não condiz com a decoração da sala nem é compatível com automóveis desportivos dois lugares. Ou Barbies humanas. Às vezes, aos fins-de-semana, ele desliga o telemóvel para receber os amigos. Ficas com a sala cheia de pessoas que, depois de te estenderem os casacos para que os pendures, se esquecem que existes até chegar o momento em que o teu marido lhes chama a atenção para ti com uma história doméstica engraçada. Fazes parte de um número de circo. És a partner do dono do negócio. Ganhas uma taça de Champagne. Sabes que se te queixares o suficiente terás um novo Rolex que enviarás desapaixonadamente para o cofre de um banco onde fará companhia a uns quantos Chaumet. Ou uma viagem a um país distante onde não vais ter com quem partilhar o fascínio da tua primeira visão do monumento lá do sítio, porque o teu marido vai estar uns passos atrás a ultimar os pormenores do negócio que te pagará a próxima crise conjugal. Também sabes que, se te queixares demais, um dos telemóveis para onde ele agora liga às tuas escondidas, passará a tocar na (já só dele) sala de estar. A avisar que está atrasado. Acho que esse teu esquecimento na compra das cortinas é uma mensagem inconsciente, trancada numa garrafa que atiras ao mar. Todos os dias. Fumas o cigarro com a expressão de um animal encurralado entre um sonho e um pesadelo sem que consigas decidir qual é a realidade e qual é a mentira. Os livros que leste não te ensinaram a viver na desilusão que se instala quando se desvenda, por dentro, o cenário dos filmes. Às vezes, vejo-te, pendurada na janela da cozinha, a brincar com a gravidade. Conheço demasiado bem o teu olhar.
E assim entendem-se as razões que fazem com que uma agnóstica sem remédio sinta sempre uma imensa vontade de se prostrar de joelhos em frente da Pietà.
Não é a Virgem. É o sofrimento de todas as mães. É a genealidade de Michelangelo que o soube reproduzir tão sublimemente. Aos 23 anos.
É verdade que te esqueceste de algumas coisas importantes. Como repreender-me ao menos uma de todas as muitas vezes em que fiz várias espécies de asneiras. Ensinar-me a cortar as unhas dos pés. Impedir-me de fazer uma permanente ao cabelo aos catorze anos. Dar-me aqueles conselhos úteis sobre o amor, a vida, o sexo e as vacas. Obrigar-me a aprender a fazer uma cama, varrer o chão ou estrelar um ovo antes de ir viver sozinha a muitos quilómetros de distância. Mas também é verdade que o único motivo pelo qual te esqueceste dessas coisas importantes foi por estares demasiado ocupada a tentar convencer-me que o mundo é um sítio fantástico para se morar.
Obrigada por te teres esquecido de tantas coisas importantes.