A tua mais irremediável prisão é essa corda que te sai do músculo do coração e junta os pés com as mãos e faz de ti uma pequena trouxa humana no
fundo de um velho barco à deriva.
A tua mais irremediável prisão é essa corda que te sai do músculo do coração e junta os pés com as mãos e faz de ti uma pequena trouxa humana no
fundo de um velho barco à deriva.
O anjo pressentira a minha noite, o chão negro de onde brotava a vida, e sabia como isso seria mortal.
E, se eu pudesse gritar, gritaria: porque eu também lhe estendera as minhas mãos - amávamo-nos, amávamo-nos - e eu sabia e eu sabia o ser que amava e por quem era amado: a minha própria noite.
Que se amem, e se apavorem um do outro - disse ele, o que deixara tudo acontecer e agora aparecia a um pórtico superior, lá no alto, junto do mastro vazio.
Temem a loucura um do outro - disse ele - e é isso que se amam.
Depressa, depressa.
Era um crime.
Os anjos não tocam violino.
(...)
In Herberto Helder, Apresentação do Rosto, Porto Editora.
E ali estávamos nós de novo na plateia do São Carlos, eu enterrada num vison comprado em segunda mão e roída pela fome, Mimi, já gelada e tuberculosa, a destilar as últimas gotas da sua paixão, Rodolfo a banhar-se na mais comovente onda de negação e outra vez o mesmo pensamento, aquele que sempre me assalta nestes momentos de extrema tragédia: mas porque é que na ópera as pessoas demoram tanto tempo a morrer?
Ainda me impressiona a chuva triste que se cola às costas das mãos e que não se consegue sacudir com um gesto impaciente.
Ainda me assusta o olhar delator dos loucos quando se cruza com o meu e reage com a efusão de quem encontra um amigo num mercado chinês.
Ainda detesto a nostalgia do pôr-do-sol e das flores que murcham nas jarras e do musgo nas lápides sob a última luz da tarde.
Ainda sonho que sigo um coelho e me perco no subterrâneo surrealista das coisas bonitas e fascinantes onde Alice e a Rainha de Copas são as duas faces do espelho.
Ainda trago no peito a mancha escura da memória dos dias em que não fui feliz todos os dias.
Às vezes o peso da noite acorda-me no estremecimento de não saber onde tenho a espada. Entreguei-a há tanto tempo que devo ter esquecido onde a guardaram. Todos os armistícios têm o preço do desarmamento. E acordada não me queixo. Paguei pelo amor infinitamente menos do que vale. Pagaria, a cada dia, cem vezes mais.
Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.
In Jorge Luis Borges, As Causas
Trad.: Fernando Pinto do Amaral
Dizem-me que no mundo, na europa, no país, em Lisboa, na minha freguesia, há ameaças, vírus e políticos, internamentos, doentes, mortos, aplicações e máscaras. Não sei nada sobre essas coisas.
Ontem, a maré foi das grandes e o rio ia cheio e espelhado pela falta do vento. Hoje amanheci entre o sol e os braços do meu amor. Comprei dálias no mercado biológico aqui ao lado e demorei-me, ao som do jazz, a dispô-las na jarra.
Se escolheres bem e tiveres muita sorte e tiveres vivido muito tempo dentro de um poema, pensei, talvez a tua vida, toda a tua vida, possa ela própria transformar-se num conjunto de estrofes harmonizado por um sentimento.
Agora, o meu amor toca guitarra aqui ao meu lado e, de alguma forma, eu sei:
Enquanto houver dálias ao sábado, tudo estará bem.