domingo, 23 de fevereiro de 2025

A minha nova terra

Cansado das minhas lamúrias de refugiada; farto de me ver perseguir lagartas no jardim de magnólias; incrédulo da imagem de um búzio constantemente encostado ao meu ouvido e atónito com a explicação óbvia de que é essencial ouvir o mar para reconciliar os batimentos do coração; assustado com a claustrofobia que nas sombras da noite começou a devorar os dedos dos meus pés, Capitão Strut, deus dos ventos, contador de estórias, ex corsário, construtor de pontes e criatura mais paciente que a literatura já inventou, finalmente, acedeu a mudar-me de terra. 
A minha nova terra é um colorido porto de pescadores com três tascas, uma igreja, uma loja onde se compram louças, vestidos e plásticos e, claro, o mercado do peixe.
Da varanda da sala, habitada pelas mais temerárias gaivotas, vejo os barcos que partem leves com an aurora e regressam de redes pesadas, lá para o meio da tarde, mesmo a tempo do vento norte.
Aqui todos obedecem à tirania do vento, que pode, ou não, permitir-nos abrir as portadas de casa sem morrer esmagados de encontro à parede, acender a lareira sem correr o risco de sofrermos uma intoxicação por fumo e até deixar-nos passear na praia sem ficarmos soterrados em poucos minutos.
Nos dias em que o vento não fecha o mundo costuma cair sobre nós um nevoeiro tão intenso que tornaria impossível a um forasteiro encontrar este sítio, mesmo que nisso tivesse algum duvidoso interesse. Até os bons velhos indígenas podem não raro ser vistos, com uma candeia numa mão e a outra estendida, a apalpar as paredes das casas numa tentativa nem sempre bem sucedida de encontrar a cama..
Às vezes o Capitão Strut regressa à civilização por uns dias e fico aqui sozinha com Coyota, a cadela, a imaginá-lo no São Carlos, ou nos restaurantes da moda da capital, a conviver com pessoas que nem sequer sabem amanhar enguias ou fazer um bom sashimi de tainha do mar.
Depois de chegar a esta nova terra, logo que  a maresia oxigenou o meu envenenado sangue, parti todos os televisores e desencaixotei os livros de poesia. 

Não tenho saudades nenhumas de Lisboa. 


 


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