domingo, 30 de novembro de 2014

Vem no Ibsen ...

Ando há uns tempos a tentar descobrir o criador desse magnífico conceito romantico-decadente da morte em vida. É um conceito maravilhoso, suscetível de satisfazer as necessidades e angústias metafísicas do amante mais cobarde.
Morrer em vida, tendo praticamente os mesmos efeitos, é uma decisão muito mais dramática e elegante do que, por exemplo, enfiar uma bala na cabeça.
No entanto, se pensarmos bem, comparativamente com o suicídio clássico, traduz uma cobardia reforçada. Enquanto o bom velho e simples suicida só é cobarde uma vez, o morto em vida mantém um grau de cobardia permanente, renovando, todos os dias da sua morte, a intenção inicial. É uma espécie de dolo qualificado.

De acordo com as minhas pesquisas, o criador do conceito bem pode ter sido Henrik Ibsen. 
Tenho provas.


Da peça Quando nós, os mortos despertarmos:

(...)
IRENE (levanta-se lentamente da cadeira, a voz trémula) Estive morta muitos anos. Vieram e levaram-me... amarraram-me os braços atrás das costas e fecharam-me numa sepultura com grades de ferro e paredes alcochoadas...para que ninguém à face da terra pudesse ouvir os lamentos que vinham daquela sepultura. Mas agora estou a começar a despertar - um pouco - de entre os mortos. (senta-se.)
RUBEK E achas que eu sou o culpado?
IRENE Sim.
RUBEK Sou o culpado dessa tua morte?
IRENE Culpado de me ter sido preciso morrer."
(...)

Da peça John Gabriel Borkman:

"BORKMAN ...Aos que vierem depois. Pois sim! É quase como se eu já estivesse morto.
GUNHILD BORKMAN (com ênfase) E estás!
BORKMAN: (lentamente) Talvez tenhas razão. (Num ímpeto:) Mas não! Ainda não! Estive muito perto, muito perto da morte, mas agora despertei. Renovado. Há muita vida ainda diante de mim. E posso ver esta vida nova, radiosa, que lateja enquanto aguarda. E tu também vais vê-la ...
GUNHILD BORKMAN Não sonhes mais com a vida! Continua enterrado onde estavas!
ELLA RENTHEIM (indignada) Gunhild, Gunhild! Como é que tu tens coragem..
GUNHILD BORKMAN (sem a ouvir) Vou erguer um monumento sobre a tua sepultura.
BORKMAN Um pelourinho, com certeza.
(...)"

E isto são apenas dois exemplos nas duas primeiras peças. Desconfio que quando terminar os três volumes terei, na sua plenitude, a compreensão das maneiras possíveis de se morrer em vida. 

8 comentários:

  1. Não deixes de tomar os teus comprimidos.

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    1. Tss tss ... Oh a ingratidão! Uma pessoa aqui a descodificar Ibsen com tanto carinho ...

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  2. Todos sabíamos que a Cucazinha sempre tão equilibradazinha ia acabar por enlouquecer. Só não sabíamos era quando.

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  3. WTF? Irritei algum recôndito fã do Ibsen? Não sou a única? É o dia dos anônimos ou assim?

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  4. Fiquei presa do primeiro Ibsen. A digerir a parte do "Culpado de me ter sido preciso morrer." de Irene.
    Acho que não. Se nos deixamos morrer, a culpa não é alheia a nós. Mas será muito mais fácil se nos convencermos que é.
    No entanto, posso estar enganada (nunca morri).
    Boa semana, Cuca.

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    1. Acho que há um padrão comum. O tipo de pessoa que se mata em vida talvez seja o mesmo que precisa de um culpado fora de si próprio.

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  5. O que não vai bem com tanta morte é esse renascimento radioso... A família Adams é que a sabia toda!

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    1. Milou, penso que os mortos em vida gostam tanto de morrer que renascem radiantes com a perspetiva de poderem morrer outra vez. :)

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