domingo, 9 de novembro de 2014

Diário de Bordo

Neste navio Pirata, onde insistimos em manter hábitos de civilidade (exceto no caso dos ex presidiários residentes relativamente a quem o verbo adequado é criar e não manter), aos domingos almoçamos todos juntos na grande mesa que instalamos no convés. Colocamos a toalha de bordado da madeira que nos foi oferecida numa tarde em que andámos a roubar contentores a um cargueiro lá para os lados do Funchal; um desastrado centro de mesa feito de plantas carnívoras; o serviço da companhia das índias falsificado que nos foi enviado como oferenda de paz pelas tríades chinesas; tomamos banho e sentamos-nos à mesa, limpos, sóbrios e felizes, a comemorar esse último reduto das almas burguesas, que é o meio dia de domingo.
Hoje ordenei a Andrmenhir, o cozinheiro Pirata Viking cujo nome nunca consegui escrever duas vezes da mesma forma, que preparasse uma refeição especial. A efeméride é uma conquista pessoal minha, totalmente irrelevante para a tripulação, mas que decidi impingir-lhes com o entusiasmo dos grandes feitos coletivos, desde logo, porque em mim habita uma alma generosa e escolhi convencer-me que as minhas glórias também são dos outros.
Pela primeira vez na vida consegui fazer um bolo. Um bolo daqueles a sério que se podem comer e tudo e que até tem aspeto de bolo. Precisei de muita coragem para enfrentar o terror de um forno a duzentos graus, a parafernália de taças, colheres de pau, chávenas para medir as coisas que enfiei lá para dentro, pacotes assustadores com estranhos ingredientes como farinha e uma coisa que descobri recentemente chamada açúcar mascavado. Também tive de fazer apelo a todas as minhas forças para não desistir do projeto das outras vinte e duas vezes que passei por este processo para obter como lastimável resultado uma coisa disforme e de consistência aborrachada que até o meu cão se recusou a comer.  
Mas à vigésima terceira vez, consegui fazer um bolo. E este é o feito que oblitera todas as outras coisas que alcancei na vida porque, percebo-o agora, conseguir fazer um bolo (para mais, de chocolate, canela e framboesas) e consegui-lo fazer sozinha, é, realmente, o único sonho da minha vida que valeu a pena perseguir. 
Neste navio, hoje ao almoço, a sobremesa será leite creme feito pelo Andrminhir, o cozinheiro pirata. 
Vou fossilizar este bolo para o usar como amuleto e bússola existencial. Para não mais me desviar daquilo que é realmente importante. 

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