quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Quando uma manhã

Quando finalmente chega o dia pelo qual tanto esperaste e numa manhã igual a todas as outras olhas para a pessoa que o espelho te mostra e só vês a pessoa que o espelho te mostra e depois sais para a rua e o céu é azul e cinzento e só vês aquilo que o céu é e entras no carro e ouves uma música mas só ouves as notas de que a música é feita e chegas ao destino e ligas-te à terra e recebes palavras que foram escritas para ti mas só lês as palavras que lá estão escritas, quando finalmente chega o dia pelo qual tanto esperaste e acordas numa manhã igual a todas as outras e vês o mundo da janela que fica fora de ti e sabes que àquela hora há alguém que navega dentro de um barco que é apenas alguém que navega dentro de um barco e tem o rosto tisnado pelo sol e rugas nos olhos pousados num qualquer pensamento comezinho e não é melhor nem pior nem diferente de todas as outras pessoas, quando finalmente acordas no dia pelo qual tanto esperaste e vês e ouves o que há para ver e ouvir, dizia, percebes que te fizeste livre.
Então, sentirás, por um breve mas inesquecível instante, a infinita tristeza do eco nihilista; a sombra escura do profundo desapego; o coração conservado em vácuo esterilizado. Em suma, o acre sabor da mais pura liberdade. 

6 comentários:

  1. e sentirás tudo com equanimidade, essa maneira de estar que deixa tudo à porta, das portas sensoriais. ouvi dizer...

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  2. só nesses breves momentos ou em sonhos raros.

    não sinto tristeza nessa equidistância de todas as coisas, antes lucidez. permite observar-me de uma forma surpreendentemente imparcial (ou ter a ilusão disso).

    abandonar tangencialmente a experiência do gestalt para observá-lo.

    parece sugerir que a experiência para-emocional/lógica é possível sem a anulação do ser
    (não me refiro à lógica mecanicista do sujeito alheado de si a deduzir uma sucessão de expressões matemáticas por mero formalismo, um hemi-autómato).

    ah, a falta de tempo...

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    1. A tristeza, na equidistância, é um breve momento. Assim como se fosse uma espécie de choque térmico.

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