quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Butterfly

Antecederam-no duas borboletas brancas. Recordo-me vagamente de as ter visto, numa qualquer despedida, pousadas no seu ombro direito. Deitada em frente ao mar, assisti ao bailado hipnótico que desenrolaram diante dos meus olhos. No final da dança, descansaram por um instante no meu pulso antes de retomarem a travessia do mar. Também elas navegaram muitas milhas para chegarem a esta Ilha. 
Depois, como a bruma; o vento norte; um sonho de sesta ou um deus, ele veio e cobriu-me os ombros.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Paraíso perdido

O que me quis dizer e não soube, ouvi-o, em eco permanente, durante muitas luas, como se houvesse fixado residência no interior de um búzio. O que me quis mostrar e não conseguiu, vim vê-lo e assombra-me agora os olhos. 
Se unir o que não me disse ao que não me mostrou obterei o esboço aproximado da perda. Foi nada menos que o mais próximo da perfeição a que podem aspirar os humanos.
Perder o paraíso - digo a mim própria para que a perda me seja tolerável - é, apesar de tudo, preferível a perder-nos no paraíso. É esse o destino dos que desafiam as limitações humanas.

Ah, o Algarve em agosto...


domingo, 27 de agosto de 2017

Desexilada

O exílio, é claro, não termina por decreto no dia em que regressamos a casa.
Virá a manhã de sábado em que morarei nesta cidade. Hoje, porém, ainda é apenas a cidade onde morei um dia.
Não é fácil ensinar-se geografia ao coração.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Colecionismo

As mudanças de casa são uma excelente ocasião para encontrarem objetos inúteis que foram, um dia, suficientemente  valiosos para justificarem o incómodo de os desejar, guardar e até esconder. 
Entre o pasmo e a nostalgia - creio até ter descoberto a pasmalgia, um estado de espírito ainda não catalogado  - abri um envelope cujo deslembrado conteúdo é uma vasta coleção de fotografias dos pés de um único homem. Entre muitas outras, dois pés assentes no convés de um barco e uma bandeira em plano de fundo. Um pé num horizonte azul com nuvens brancas. Dois pés submersos na água do mar. Dois pés pousados no mapa de um cartaz a anunciar um rally. Dois pés semienterrados na areia escura. Um pé pousado no braço de um sofá de riscas. Dois pés a tornearem o volante de um carro. Dois pés assentes numa mesa de mistura de som. Um pé junto do que me parece ser a janela de um avião. Outro pé ao lado de um copo de bushmills.  Os mesmos pés novamente submersos na água do mar...
Depois de inspeccionar as fotografias como se as visse pela primeira vez e de fechar o envelope, hesitei no destino a dar a tão bizarra coleção, angariada ao longo de vários meses. 
Os pés retratados há muito que sustiveram os passos da distância e os dias lavraram os vastos quilómetros de um esquecimento semeado.
Teria sido demasiado pragmático atirar o envelope para o lixo; dramático, dirigi-lo à morada do modelo; romântico, guardar as fotografias num álbum apropriado. Optei por devolvê-lo ao caos, enfiando-o ao acaso numa de várias caixas cheias de fotografias. 
É quase, espero, tão improvável reencontrar a minha bizarra coleção de pés, como voltar a amar o suficiente para, sequer, compreender a sua existência. 

sábado, 19 de agosto de 2017

Verão

As gotas de água do verão escorrem apressadas pela garganta da clepsidra. É por ela que meço os dias, contando o tempo do fim para o princípio. As cores começaram a esbater-se a partir do meio do mês de agosto. As manchas de suor e sal nos sofás brancos do lounge contam estórias dos que já partiram. Pelo chão das ruas, à noite, há riachos de gelado derretido e sangria derramada que formam pequenas lagoas nos cantos. Deixam nódoas que durarão até às primeiras chuvas de novembro. Já não há, por esta altura, um único corpo virgem de sol. E até o mar parece exausto, fingindo  expulsar, desesperançadamente, aqueles que lhe colonizam os bancos de areia. 
Este não é um verão igual aos outros na minha estância balnear. 
É aquele verão que não verei morrer. 

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Pinto as unhas dos pés de azul

Pinto as unhas dos pés de azul e penduro-me no trapézio. O sol tirou-me as estrelas mas sei que, se souber esperar, ser-me-ão devolvidas, inteiras, depois do anoitecer. As estrelas são corpos mortos. Tudo o que no mundo é amável já se extinguiu. Tudo o que é detestável também. 
Há o pó. Uma espécie de pó. Uma nuvem de pó.
Dormito de cabeça para baixo, pendurada no trapézio. Sonho um pesadelo com uma criança rechonchuda, a quem querem cortar os braços para a salvar da extinção. É um sonho de inspiração Rafaelita. A criança é, na verdade, um anjo que vi pintado num fresco a precisar de restauração. Creio que salvo os braços da criança antes de decidir, dormindo, que é apenas um pesadelo. Acorda-se, todos o sabemos, quando se identifica a origem do mal. No amor também. A racionalização extingue tudo. Até as estrelas. 

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Anedota muçulmana

Vi um homem prestes a saltar de uma ponte.
– Não salte! – disse eu.
– Ninguém me ama – disse ele.
– Deus ama-o. Acredita em Deus? – perguntei.
– Sim – disse ele.
– É muçulmano ou não muçulmano? – perguntei.
– Muçulmano – disse ele.
– Eu também! – disse eu. – Deobando ou barelvi?
– Barelvi – disse ele.
– Eu também! Tanzeehi azmati ou tanzeehi farhati? – perguntei.
– Tanzeehi farhati – disse ele.
– Eu também! Tanzeehi farhati jamia ul uloom ajmer, ou tanzeehi farhati ul noor mewat? – perguntei. 
– tanzeehi farhati ul noor mewat – disse ele.
– Morre, Kafir! – disse eu, e empurrei-o.

Arundhati Roy, in, O Ministério da Felicidade Suprema.

Eterna fraude

São eternas as mãos do anjo de lata que ao amanhecer nos aponta o rio, ou o céu, consoante a direção que escolhe Eolo. É eterna a inconstância dos deuses e a sua avidez da mortalidade que pertence aos homens. E eterna é ainda esta velha memória das coisas dentro das células: um jardim, um tigre, uma pena, um búzio, certo olhar, uma onda que sempre embala a mesma rocha.

sábado, 5 de agosto de 2017

L-I-S-B-O-A

Deu-me, de presente de boas-vindas, a melhor prata que esconde no rio; três nuvens com o formato das copas das árvores; ruas razoavelmente vazias à hora da sesta. A casa cheirava àquilo que cheiram as nossas casas quando regressamos para as habitarmos: essência de culpa e esperança. Abri as portas devagar. Estive ausente tantos anos que é possível que os fantasmas se tenham cansado de me esperar. 
À noite, bem sei, Lisboa não me embalará o sono. Nunca dormi decentemente nesta cidade. 
Digo-lhe ao ouvido que, desta vez, não a abandonarei. Lisboa volta ao rosto para que não lhe leia o desdém. Mede-me a temperatura dos pés e sabe, como o sabem as mulheres muito velhas e os anjos, que nunca regresso para ficar. 

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Em quantos caixotes cabe a vida?

E uma vez mais, a minha vida útil dentro de caixas de cartão; a inútil em sacos pretos do lixo. E a sensação de que o que fica é o pouco que importaria conservar.