domingo, 29 de setembro de 2013

No sofá da sala

Um dos maiores inconvenientes das redes sociais é tornarem impossível o exercício do direito ao esquecimento. O esquecimento, na sua mais doce obliteração absoluta da nossa memória. Aquele esquecimento tão completo que ficamos de de boca ligeiramente aberta e olhar espantado quando dois ou três anos depois a televisão, um amigo, uma fotografia esquecida, nos lembra que no mundo, para além das outras de que nos lembramos, também existe aquela pessoa.
As redes sociais roubam-nos o exercício desse direito sadio. As pessoas saem das nossas vidas mas  continuam a ocupar espaço no nosso computador. São músicas cheias de sentidos equívocos em que o you tanto podemos ser nós, como a anterior, a próxima ou oneself; são frases enigmáticas a denunciar estados de espírito misteriosos; são comentários idiotas que nos fazem perguntar se a pessoa está drogada ou se nós é que em tempos estivemos drogados; são rostos espalhados por toda a parte; o perfil do lado direito com uma praia conhecida em plano de fundo; o perfil do lado esquerdo com uma estante onde reparamos num livro novo.
É a brutal exibição pública dos detalhes da felicidade doméstica a afrontar o nosso direito de querer que o outro desapareça. 
Uma pequena morte, uma morte privada, uma morte só nossa...
É o direito a essa forma de morte do outro que as redes sociais nos tiram. Não podemos ignorar quem continua a respirar a vinte centímetros do nosso pescoço. E não podemos desamigá-los porque isso seria uma declaração pública de não indiferença. Seria uma ainda forma de comunicação. Uma cobarde confissão de incómodo.  
Eles estão ali e é como se tivéssemos que viver com eles para sempre sentados no sofá da sala. 

9 comentários:

  1. Numa perspectiva prática, diria que se pode tirar do "feed" principal sem desamigar. Numa perspectiva mais vasta, essa é a sina que Borges descreve em "Funes, o Memorioso" e que antecede as redes sociais. O que antes era a sina de Funes, passou a ser a de todos nós. Memoriosos, sim, funestamente.

    Boa tarde, Cuca.

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    1. Ainda assim, Funes foi compensado por uma estupidez natural. Torna-se menos funesto no caso dele :)

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    2. (foi esse o livro que me fez descobrir a Anne Bonny e decidir tornar-me Pirata)

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  2. "Otra pirata de esos mares fue Anne Bonney, que era una irlandesa resplandeciente, de senos altos y de pelo fogoso, que más de una vez arriesgó su cuerpo en el abordaje de naves. Fue compañera de armas de Mary Read, y finalmente de horca. Su amante, el capitán John Rackam, tuvo también su nudo corredizo en esa función. Anne, despectiva, dio con esta áspera variante de la reconvención de Aixa a Boabdil: "Si te hubieras batido como un hombre no te ahorcarían como a un perro"."

    Não foi bem esse livro -- Anne Bonny aparece na "Historia Universal de La Infamia" e Funes no "Ficciones", mas é um pequeno pormenor :)

    Devo a ambos alguns dos momentos mais memoráveis da minha vida -- não memoráveis no sentido de Funes, mas memoráveis numa escala mais humana.

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    1. Ia jurar que tenho as duas estórias reunidas no mesmo livro... vou verificar isso.

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    2. Eu tenho, nas Obras Completas, publicadas no original pela Emecê; em Portugal, julgo que pela Teorema; originalmente, contudo, foram em livros e épocas de vida diferentes -- detalhes sem importância. :)

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  3. Só para clarificar, eu não estou drogado, sou mesmo assim...Caso essa dúvida alguma vez surja.

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  4. Eu também não costumo estar muito para lá. Tenho sim frequentes e embaraçosas perdas de memória... Tem dias que são um benção nada FUNESta.

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