II
Akira era uma esteta. Escolheu para morrer uma linda noite de lua cheia com a neblina zero a garantir a consagração da mais bonita tela que pintou na vida. Durante muitas horas o seu corpo branco emoldurado por um kimono vermelho sangue, jazeu deitado e perfeito naquele banco de jardim. O braço nu que pendia sem que a mão chegasse a tocar no solo. O joelho direito ligeiramente mais elevado que o esquerdo. A cabeça voltada sobre o ombro, afundada no ombro, a tornar impossível não evocar a metáfora de Leda, presa num cisne para toda a eternidade. É inviável que a combinação destes elementos tenha sido obra do acaso.
A lua há-de ter iluminado o brilhante cenário de si própria, na solidão de um corpo abandonado pela alma, desertado da própria mente, num banco de um dos jardins de Tóquio.
E se nos tivesse sido possível surpreender Akira morta debaixo da quietude da lua cheia a tingir de azul a alvura da pele de Akira morta saberíamos que a beleza, a inusitada beleza das coisas, aquela beleza que nos ataca a curva das pernas quando somos surpreendidos por um Caravaggio ao dobrar da esquina, não só pode ter lugar num cenário de tragédia, como, porventura, até nele terá a sua morada privilegiada.
Foi isto que viu o casal de corujas que se abrigou na árvore da frente.
Porque o guarda que, na manhã seguinte, sacou do seu bastão para enxotar outra vadia, adormecida sobre a propriedade pública, ao tocar na perdida, recebeu apenas por resposta um olhar verde, fixo num universo cheio de nada. E o olhar de Akira morta foi de tal forma impressivo que o guarda que a encontrou durante muito tempo não viu mais nada.
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