ela estava em pé, em frente à janela da minha sala, em carne e osso. como Flaubert a descreveu: vestido, pele branca, quase pálida, grandes olhos castanhos directos. os lábios eram mais carnudos do que me lembrava, mas a boca era pouco desenhada. os cabelos, antes escuros, deveriam ser longos. “linda Bovary” – pensava, enquanto ela se voltou para mim. “estás à procura de alguma coisa?” – ao ouvi-la, apavorei-me. estou louco.
o vulto também falava, era ela, e como nunca tinha existido, não estava morta. “o que queres?” – perguntou novamente, caminhando na minha direcção – deixei de raciocinar.
repetiu a pergunta, olhou em volta e sentou-se no meu sofá. ao fim de alguns minutos, conversávamos. contei-lhe em que ano estávamos, país, cidade, dia. respondi a cada pergunta que me fez, tentando ser engraçado. “queres comer alguma coisa?”
“sim, estou com fome.”
enquanto comíamos, eu no chão, ela estendida, não parei de falar. contei-lhe em resumo sobre guerras, arte, música, coisas que pensei que lhe interessariam. ela me olhava atenta – “continua", dizia-me, quando eu fazia alguma pausa; mas eu não podia mais. não podia mais com a ideia de estar louco a falar com o vazio da minha sala.
“gostaria de continuar, mas tu precisas de ir embora.” – disse-lhe gravemente.
“não… fala-me do amor …”
“bem – comecei um discurso – o único direito que temos é a morte, e em alguns países, a matar. a liberdade é um bêbado equilibrando-se numa corda bamba. ser jovem é a única religião; a beleza, a única virtude; o amor é uma doença curada com antidepressivos. não podemos caminhar nas ruas à noite, e durante o dia fazêmo-lo com medo; estamos enjaulados e devidamente anestesiados”.
(pausa).
“no mais, minha querida, todos nós fazemos uns jogos, às vezes somos peões, rainhas, reis, dependendo das posições… e tu, ainda serias considerada louca. temos a loucura toda classificada em termos e analogias mitológicas, que nos dizem o que está certo, o que está errado, quem está triste ou angustiado. e disso tu não escaparias, com certeza. tu e toda a maioria não batem bem, estão insanos por causa de neuroses e porque sonham demais ou de menos”.
(ataque).
“e tu continuarias a ser considerada uma puta, uma messalina, uma vadia… sinto muito dizer-te”. ela só me olhou com ar de quem tinha dado o melhor que podia a quem não lhe reconhecia qualquer valor à oferta.
(desistência).
beijei-a e não senti culpa.