Um rapaz apaixona-se por uma princesa e todo o conteúdo da sua vida reside nesse amor, o relacionamento é contudo de tal espécie, que é impossível ser concretizado, é impossível ser traduzido da idealidade para a realidade. Os escravos da miséria, os sapos imersos no pântano da vida, naturalmente que gritariam: um amor destes é uma loucura! Um bom partido, sólido em termos práticos, é a rica viúva do cervejeiro. Deixemo-los em paz a grasnar no pântano. Não é assim que age o cavaleiro da resignação infinita; não desiste do seu amor, nem por toda a glória do mundo. Não é pateta nenhum. Em primeiro lugar, assegura-se de que este amor é realmente o conteúdo da sua vida, e a sua alma é demasiado sã e orgulhosa para se entregar à mínima prodigalidade em estado de embriaguez. Não é cobarde, nem receia que esse amor se insinue por entre os seus mais remotos e recônditos pensamentos, e se enrede em infindáveis enleios por entre todos os ligamentos da sua consciência – viesse o amor a ser infeliz, e nunca chegaria a desembaraçar-se dele. Sente um ditoso prazer em deixar que esse amor lhe ponha todos os nervos a vibrar e, no entanto, a sua alma tem a solenidade da alma de quem esvaziou a taça de veneno e sente como o suco penetra em cada gota de sangue – pois este instante é de vida ou de morte. Quando assim absorveu todo o amor e nele mergulhou, não lhe falta coragem para tentar e arriscar tudo. Examina o conteúdo da vida, reúne os pensamentos apressados que como pombas amestradas obedecem a cada um dos seus gestos, agira sobre eles a sua varinha, e eles lançam-se em todas as direcções. Mas quando ora todos regressam, todos eles como mensageiros da aflição, e lhe explicam que é uma coisa impossível, fica então imóvel, afasta-os, isola-se e empreende então o movimento. (…) Em primeiro lugar, o cavaleiro terá então força para concentrar todo o conteúdo da vida e o significado da realidade num único e só desejo. Falte a um homem esta concentração, este ensimesmamento, fica-lhe logo de início a alma dispersa na multiplicidade e nunca chegará então a fazer o movimento, conduzir-se-á na vida com a inteligência da gente de dinheiro que coloca o seu capital em títulos todos eles diferentes entre si para ganhar num quando perde noutro – em suma, não é assim que é o cavaleiro. Em seguida, o cavaleiro terá força para concentrar o resultado de todas as operações do pensamento num único acto de consciência. Falte-lhe esse ensimesmamento, logo de início fica-lhe a alma dispersa na multiplicidade, e nunca há-de encontrar tempo para fazer o movimento; continuará a tratar das coisas da vida, nunca entrará na eternidade; pois no preciso momento em que estiver mais próximo, ocorrer-lhe-á subitamente que se esqueceu de qualquer coisa e tem que voltar atrás para ir buscá-la. No momento seguinte pensará que é possível, o que também é inteiramente verdade; porém, com semelhantes observações nunca se chegará a fazer o movimento – contando com elas, antes nos afundaremos ainda mais no lamaçal. O cavaleiro faz então o movimento (…)só as naturezas inferiores encontram regras para as suas acções em terceiros, e as premissas para as suas acções fora de si mesmo. (…) Quem isto entender, seja ele homem ou mulher, nunca será enganado, pois apenas as naturezas inferiores imaginam que são enganadas. Nenhuma rapariga que não possua este orgulho entenderá na verdade o que é amar, mas, se o possuir, nem a astúcia, nem o engenho do mundo inteiro poderão enganá-la.
Soren Kierkegaard, in Temor e Tremor, Relógio de Água
Soren Kierkegaard, in Temor e Tremor, Relógio de Água
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