sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

O fio de voz

Aprendi a adivinhar-lhe a alma nos contornos de um fio de voz. A inflexão de uma vogal pode desvendar a insónia de ontem. A pronúncia de um erre mais difícil, a irritação disfarçada. Uma pausa despropositada entre o sujeito e o verbo, a mais profunda das tristezas. Adquiri o poder de, ouvindo-o discorrer sobre banalidades, reconstruir passos nas longínquas calçadas de pedra; gestos lentos debaixo de avassaladores crepúsculos; Involuntários movimentos nos músculos faciais. Cheguei a ver as asas da última gaivota no brilho alienado dos olhos, revelado, assim, no rasto da palavra amanhã. 
Mas, um dia, partiu-se aquele fio de voz. E foi então que conheci a cegueira. 

4 comentários:

  1. é por estas e outras palavras que juntas com o maior dos talentos, que sondo o tecto em busca de inspiração para comentar sem estragar a tua bela composição... nã te invejo (talvez um pouco :), eu admiro-te, sinceramente, sem bajulação.

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  2. O Xilre escreveu sobre o mesmo tema. Não tão desenvolvido mas igualmente bem.

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