sábado, 26 de outubro de 2013

A quimera da felicidade

Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que se passava diante de mim, - flagelos e delícias, - desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enchada e a pena úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com agulha da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.


Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Tivesse Brás Cubas logrado obter sucesso na invenção e comercialização do emplastro destinado a "aliviar a nossa melancólica humanidade" e não estaríamos condicionados a escolher aplacar a dor na indiferença, que é "um sono sem sonhos" ou no prazer, que é "uma dor bastarda".
Também existem os outros. Aqueles que nasceram de coração emplastrado na pomada que anestesia a melancólica humanidade. 
Mas esses, é claro, nem merecem que se fale deles...

1 comentário:

  1. Porque há histórias das quais a história não quer saber que histórias querem contar.

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