Disseram-me que era uma festa, coisa
que eu teria sido incapaz de perceber se não me tivessem avisado. Talvez as
mesas enfeitadas de toalhas de alga e as estrelas-do-mar penduradas nas nuvens
tivessem sido uma boa pista se não se desse o caso, que se dá, de eu agora já
só compreender as coisas quando alguém as explica. O coelho do relógio passou
por mim a correr, deu um gritinho despropositado e fez de conta que não me viu.
Não ter percebido poupou-me o embaraço. A lagartixa aproximou-se do meu ouvido
para se queixar que, no wonderland, já só se fuma tabaco de água. Aceitei
o cachimbo sem fazer perguntas e partilhei o ar enojado do Ás de ouros que se
sentou na minha frente. Uma abelha levantou-se do lugar para trocar impressões
com o meu cão sobre a vida íntima da rainha branca. O cão mordeu-a e uivou
entediado. Duas chávenas de chá mais tarde vi um cardume de peixes seguir uma lagosta até ao palco improvisado onde tocaram um blues que não envergonharia em
New Orleans. E foi só quando o som do saxofone se calou que dei pela falta do
chapeleiro louco. Fiz um gesto na direção do coelho para lhe perguntar por ele.
Mas depois, por não saber se hoje sou Alice ou a rainha de copas, calei-me a
tempo de evitar a exposição pública do logro que sou. A rainha de copas saberia
do chapeleiro. Alice não quereria saber. Eu não deveria estar aqui.
Dei dois cubos de queijo azul ao
cão antes de comer os meus. Tornei-me desconfiada depois da minha última
passagem pelo wonderland. Ou talvez apenas não me possa dar ao luxo de encolher
nem mais um centímetro. É ténue, a linha de fronteira entre a mesquinhez e o
instinto de sobrevivência. O gato que ri tirou-me a língua em sinal de discordância
e desapareceu devagarinho.
Logo que começou a chover, a festa
desfez-se numa bolha que eclodiu em pequenos confettis que caíram sobre dois
pés descalços subitamente plantados ao lado dos meus. Dei um salto na cadeira
ao reparar que, naqueles pés, o segundo dedo era o maior de todos. Foi assim
que reconheci o chapeleiro louco. Mas, nesse instante, o sol eclipsou-se e
mergulhámos todos numa escuridão que seria silenciosa se o meu coração não tivesse começado a bater em stereo.
Quando o negrume se dissipou e eu
ouvi-me a mim própria gritar “cortem-lhe a cabeça” “cortem-lhe a cabeça”, percebi
que, afinal, ainda sou a rainha de copas.
E nem sequer foi necessário
explicarem-me.
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