domingo, 24 de março de 2013

Que o maior dos dedos do pé seja o segundo


Disseram-me que era uma festa, coisa que eu teria sido incapaz de perceber se não me tivessem avisado. Talvez as mesas enfeitadas de toalhas de alga e as estrelas-do-mar penduradas nas nuvens tivessem sido uma boa pista se não se desse o caso, que se dá, de eu agora já só compreender as coisas quando alguém as explica. O coelho do relógio passou por mim a correr, deu um gritinho despropositado e fez de conta que não me viu. Não ter percebido poupou-me o embaraço. A lagartixa aproximou-se do meu ouvido para se queixar que, no wonderland, já só se fuma tabaco de água. Aceitei o cachimbo sem fazer perguntas e partilhei o ar enojado do Ás de ouros que se sentou na minha frente. Uma abelha levantou-se do lugar para trocar impressões com o meu cão sobre a vida íntima da rainha branca. O cão mordeu-a e uivou entediado. Duas chávenas de chá mais tarde vi um cardume de peixes seguir uma lagosta até ao palco improvisado onde tocaram um blues que não envergonharia em New Orleans. E foi só quando o som do saxofone se calou que dei pela falta do chapeleiro louco. Fiz um gesto na direção do coelho para lhe perguntar por ele. Mas depois, por não saber se hoje sou Alice ou a rainha de copas, calei-me a tempo de evitar a exposição pública do logro que sou. A rainha de copas saberia do chapeleiro. Alice não quereria saber. Eu não deveria estar aqui.
Dei dois cubos de queijo azul ao cão antes de comer os meus. Tornei-me desconfiada depois da minha última passagem pelo wonderland. Ou talvez apenas não me possa dar ao luxo de encolher nem mais um centímetro. É ténue, a linha de fronteira entre a mesquinhez e o instinto de sobrevivência. O gato que ri tirou-me a língua em sinal de discordância e desapareceu devagarinho.
Logo que começou a chover, a festa desfez-se numa bolha que eclodiu em pequenos confettis que caíram sobre dois pés descalços subitamente plantados ao lado dos meus. Dei um salto na cadeira ao reparar que, naqueles pés, o segundo dedo era o maior de todos. Foi assim que reconheci o chapeleiro louco. Mas, nesse instante, o sol eclipsou-se e mergulhámos todos numa escuridão que seria silenciosa se o meu coração não tivesse começado a bater em stereo.
Quando o negrume se dissipou e eu ouvi-me a mim própria gritar “cortem-lhe a cabeça” “cortem-lhe a cabeça”, percebi que, afinal, ainda sou a rainha de copas. 
E nem sequer foi necessário explicarem-me.

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