Haverias de me odiar hoje pelo peso da nostalgia. Há dois dias que sou atormentada pela tua expressão de placidez etérea estampada na capa de um livro. Acho que o que me perturba é a falta de memória de a ter visto em ti. Talvez seja legítimo photoshopizar os mortos para lhes devolver uma tranquilidade que nunca lhes pertenceu. Fica-te bem. Fez-me pensar que pessoa terias sido se tivesses entrado numa loja dos chineses e comprado aquela expressão. Depois entregavam-ta num saco de plástico azul e irias rua fora a abaná-la ao ritmo de um pensamento mais insistente. Ou talvez a tenha visto e já me tenha esquecido. Dirias que começo a perder o controlo da amnésia e terias a habitual razão. Não sei se o magnésio ainda se vende em ampolas cor-de-rosa pastilha elástica. Se vender, talvez o compre para condizer com as minhas sandálias novas.
Escrevo-te para te lembrar que é Páscoa porque duvido que haja disso no sítio onde te foste enfiar e não quero que percas hábitos de civilidade para o caso de ter de ter que conviver contigo numa outra vida. Um dia sentámo-nos numa varanda e desembrulhaste um ovo de chocolate gigante que comemos com vinho tinto. Mas também podia já ser Natal. A verdade é que o chocolate sabia a mofo e serviste-me um discurso de uma hora sobre as minhas manias de burguesa. Uma hora depois o chocolate continuava a saber a mofo, o vinho acabou-se e, de acordo com a memória estatística, eu devo ter-me ido embora farta de ti.
Quanto às minhas manias de burguesa, sobrevieram-te, persistindo até hoje embaladas pelo som da tua voz de censura que por vezes ainda se vem instalar nos meus ouvidos, agora reduzida à triste função de grilo falante de uma consciência carente de apoio em permanência.
De qualquer forma, acho que atualmente as galinhas já nem sequer põem ovos de chocolate. O mundo parecer-te-ia muito melhor se pudesses voltar. E a convivência com os teus muito mais tolerável. Especialmente agora que nos ensinaste a solidão.
Vê lá isso da Páscoa com cuidado. Ouvi dizer que é boa altura para se ressuscitar.
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