sábado, 3 de março de 2012

Medusa não se chama Medusa na vida real

ainda bem que veio a chuva e veio a chuva e choveu todo o dia, choveu por dentro e por fora das nuvens, um fenómeno rico, estupendo. é nestes dias em que chove assim que se enchem as jazidas de prata - toda a gente sabe que a prata chove do céu.

houve tempo para arrumar os livros lidos há muito mas que vão ficando. tenho três mesas de cabeceira, durmo numa trincheira de coisas.

houve tempo para escolher flores e para a extravagância démodé de levar um lenço a proteger os cabelos da chuva. que caiu o dia todo e todo o dia.

por causa de toda essa chuva os meus olhos deixaram o verde e castanho da enfermidade estética de que padecem e fecharam-se num cinza chumbo. o dia todo.

houve tempo para ir buscar mais uma garrafa do vinho que ando a beber com a devoção de quem descobriu um santinho novo - isto já não me acontecia com um Douro desde 2008, ano também bissexto, durante cujo Inverno bebi o Juliana até que desapareceu. gosto de pensar que o bebi todo, o que é ridículo se confessar que devo ter bebido menos do que uma dúzia de garrafas.

mais uma que fui buscar à chuva, de lenço à volta do cabelo e já de flores no braço. o sábado é dia de mercado e é dia de comprar flores, mas toda a gente sabe isso.

já não chovia há muito.

a chuva abranda o girar do meu mundo porque acho que não estou a perder nada em ficar mais meia hora na cama a ler os jornais com a barriga a gritar pelo pequeno-almoço. porque acho que não estou a perder nada quando falto às duas inaugurações de dois quase-amigos na Miguel Bombarda. porque acho que não estou a perder nada se colocar ordem na caixa dos meus colares. porque acho que não estou a perder nada.

deu tempo para fazer os dois telefonemas que a semana não deixou. deu tempo para dar pêsames que foram a tempo porque ainda não tinha tido tempo de perceber o que se passara. e ainda nos deu para rir e lamentar as distâncias. e de receber um convite numa voz vinda do fundo da sala do outro lado do telefone. e de dizer que sim, que no Verão nos vemos. e deu tempo para falar de todos e mandar beijos e beijos a todos e de pedir macarons coloridos (dos de Paris).


rasguei algum papel. encontrei um brinco que tinha perdido na mala. estive a rabiscar.

consegui abrir o Carm com jeito e lambi os dedos do naco do fígado de ganso quando as tostas acabaram. deu tempo de não ter que fazer o jantar, mas de ir fazendo o jantar.


o chão da minha sala é um tapete verde rodeado de pedra branca. onde existem, desmaiados, pés de copos de vinho de outras noites. e ao contrário do que possam pensar, por aquilo que sou, isso não me dói. poucos me conhecem até jantarem comigo, em casa, sem toalha na mesa que veio da casa de jantar da minha avó Carolina. que cheira a cera de abelhas e também é manchada de pés de copos de Douro.


por mais que me movimente estou sempre no mesmo lugar. sou uma árvore plantada dentro de mim.


agora chove menos. ou melhor, chove muito mas chove muito miúdo. chove em vapor, chove em tule.

todas as férias deviam começar com um dia de chuva assim.

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