"Da guerra Hinnerk guardara dois objectos, se assim os podemos designar: uma pistola, que levava sempre debaixo da camisa na parte da frente das calças, e uma sensação constante de medo, que precisamente por nunca desaparecer, por "nunca descansar", adquirira com os anos um estatuto bem diferente das circunstâncias, quase teatrais, que interferem habitualmente na excitação de um corpo. Esse medo, sendo algo que não saía, era já como um dado científico concreto: como uma nariz mais ou menos torto, como um olho cego, como alguém que coxeia. Hinnerk não saía à rua sem medo, não ficava em casa sem medo, não adormecia sem o medo, e mesmo nos momentos em que a consciência se tornava menos construída, quando a individualidade apresentava a estrutura mais frágil - como nos sonhos -, mesmo aí uma espécie de azedume fixo permanecia constante no meio da aparente loucura de imagens que se sucediam sem controlo, misturando espaços, tempos, possibilidades, e impossibilidades. No meio deste Estado Individual que o Homem é, e que oscila durante o sonho, Hinnerk mantinha-se tenso, única maneira de permanecer seguro, e esse tal azedume, fixo como uma estaca na cabeça de Hinnerk, era não menos que uma precaução, diremos, militar, precaução que nunca abrandava, e que por vezes parecia exibir um conjunto de procedimentos físicos restritos que deveriam ser seguidos obrigatoriamente. Como resultado desta estaca permanente de defesa, Hinnerk descansava terrivelmente, levantava-se de manhã como se acabasse de combater corpo a corpo.
(...)
Com os hábitos certos e monótonos Hinnerk procurara diminuir as possibilidades daquilo a que se poderá chamar o novo. Rapidamente, em tempo de paz, percebera a ligação entre o medo e o imprevisto, e assim tentara colocar em cada um dos seus dias um rigor de patrulha, dividindo-se numa espécie de existência observada e em observador de si próprio."
Gonçalo M. Tavares, in Jerusalém
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