sábado, 3 de março de 2012

Não sabia que era assim, morreres-me

Uma estupefacção sem fim. Acorda-se e toma-se banho e faz-se aquelas coisas que fazem os nossos dias medianos e medíocres e reais. E depois, no meio de uma dessas coisas como subir uma escada ou abrir a porta ou ligar um telemóvel a um carregador, ela aparece. Como se estivesse estado sempre atrás da porta a espreitar-nos. A tua morte. A estupefacção da tua perpétua não existência.
O sari indiano que já nunca me verás vestir. O riso trocista de um verso torto que não terei de esconder. Aquela viagem de oito horas que perdeu o sentido. Os números que sobram no telemóvel. O skype feito de um único número que já não tocará. Uma camisola com um buraco na gola.
Prometeram-me que leria avidamente conversas gravadas, reveria vídeos teus a dizer coisas, procuraria sentidos em palavras desviadas e, numa tarde de chuva, num desses dias de absolutamente nada, entre o filme das dezoito e um chá de frutos silvestres, acabaria por me desfazer em ranho e água salgada.
Mas a prometida catarse não chegou nunca.
Na falta de ter onde te chorar não aprendo a habituar-me à tua morte. E ela em vez de desaparecer senta-se nas esquinas das portas e surpreende-me indisciplinada nos momentos inoportunos.
Hoje olhei para ti naquelas fotografias da revista e não sei como dizer isto mas vi-te demasiado vivo para quem já morreu. Esse tique que me desconhecia de torcer os lábios para morder a boca. E acho, acho sempre, acho todos os dias, que é apenas meu, esse “coração despedaçado rasgando novos arquipélagos”.

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