terça-feira, 4 de outubro de 2011

da síndrome dos sapatos de verniz e meias até ao joelho

descreveram-no como simpático mas conservador. não entendi o mas. alertaram-me que dava sono e falava demais. desconfiei que ia gostar.

chegou a horas. o que significa que teve a atenção de se atrasar cerca de seis minutos. vestia de alfaiataria, a camisa era engomada e os botões de punho discretos. o sorriso era ainda de rapaz, pois que aos homens é inato conservar o ar descontraído da juventude. formal, mas sem demandar criados de libré.

vamos conversar?

perguntou-me pelo sobrenome e ficou feliz por me situar entre os seus pares.
os sorrisos encontraram-se, cegos da diferença de idades.
não surpreendeu pela gentileza nas portas e na escadaria, passando depois de mim nas primeiras, adiantando-se na descida da segunda para amparar a eventualidade da minha queda.
presumo que a nossa demora tenha gerado alguma apreensão àqueles a quem ele dá sono. quando demos pelas horas, já todos nos esperavam para o almoço. estávamos tão bem. estávamos tão bem no meu entusiasmo que se lhe pegou, com a sua serenidade a assistir, feliz, aos meus lampejos de olhar num futuro maior que o dele. foi com pena que nos despedimos daquele gabinete.


adoro conversar com pessoas mais sabedoras, e percebem-no logo. ao fim de três minutos estava a declarar-me empatia instantânea e a gabar-me a postura – o que endosso sempre aos meus pais.

nasci e sempre vivi mais adulta. sinto-me bem entre eles. a ouvi-los. invejo o tempo deles, que é um tempo que gira ligeiramente fora de tempo. é o tempo confortável das coisas pensadas e da vida vivida.
quando lhes tomo amizade estimo-os como a um aparador herdado. um verdadeiro aparador aparece-nos depois de anos de chocolates. de amêndoas confeitadas. de caixas de chá. há um número mínimo de latas de shortbread ou buttercookies que têm que se suceder. o açúcar deve permanecer nos três açucareiros por várias estações e ser sempre acrescentado. nas gavetas, as toalhas têm que misturar-se com as velas de aniversário que já ouviram as suas palmas e guardaram o desejo pensado naquele momento do sopro. partidas mas seguras pelo pavio sem arder. não dispensa as duas marcas redondas da garrafa de vinho do porto a manchar a prateleira, escondidas debaixo da caixa do faqueiro.


espero esta seja mais uma das minhas amizades-aparador. e que sempre que lhe abra as portas possa encher a sala daqueles cheiros doces. todos.

gostei tanto de conversar com ele.

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