quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Meninas de cabelos azuis e seus irmãozinhos de nariz comprido

"Então teve uma espécie de triste pressentimento e pôs-se a correr com todas as forças que lhe restavam nas pernas, e viu-se daí a poucos minutos no meio do prado onde estava dantes a Casinha branca. Mas já não existia a Casinha branca. No lugar dela havia uma pequena lápide de mármore onde se liam em caracteres de imprensa estas dolorosas palavras:
AQUI JAZ A MENINA DOS CABELOS AZUIS MORTA DE DOR POR TER SIDO ABANDONADA PELO SEU IRMÃOZINHO PINÓQUIO”.




in, As Aventuras de Pinóquio, Carlo Collodi.


Passei o dia deitada num relvado da minha Lisboa, aquela que tem vista privilegiada para a ponte Vasco da Gama, com duas crianças que, em turnos rotativos de meia hora, me leram as aventuras do Pinóquio, de Collodi.
Esta discreta exploração da mão-de-obra infantil, além de ser uma razoável e económica alternativa ao áudio livro – só custa o preço de duas pizzas, alguns gelados e umas quantas garrafas de água – tem a vantagem de trazer incorporada, além da mais honesta e perspicaz crítica literária, a análise do perfil psicológico do autor.
Nenhum outro método de leitura me teria feito perceber que a dado passo Collodi se engana, e depois de explicar que o burro foi atirado ao mar preso por uma pata, refere que o mesmo asno havia sido preso pelo pescoço.
Por outro lado, a cerca de dois terços do livro já os meus pequenos leitores estavam em condições de concluir que Collodi era, de acordo com a de doze anos, um psicopata reprimido e, na visão do de nove, um tarado violento.
A melhor qualidade das crianças é a sua desassombrada lucidez.
Pensando nisto, parece-me que deve ser qualquer coisa que se perde quando a menina de cabelos azuis é abandonada pelo seu irmãozinho Pinóquio e a tal da Casinha branca dá lugar à lápide de mármore.

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