quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A estética do sistema

O relatório que me chegou à secretária tinha quatro conclusões. Na última, uma assistente social, num dia mau, fez constar um prognóstico reservado.
Eu também tinha tido um dia mau. Mandei chamar o rapaz.
Trouxeram-mo hoje em resultado da confluência de dois dias maus na vida de duas mulheres que nunca se viram.
Apareceu sem banho tomado, com um cabelo comprido por lavar e com um T-shirt cheia de nódoas. Expliquei-lhe que não podia comer pastilha elástica na minha presença. Nem cruzar os braços. Nem empoleirar-se na bancada. E que também não podia meter as mãos nos bolsos. O tratamento por pá, como lhe foi dito por três vezes, não era aconselhável a alguém a quem o “sistema” denunciou como protagonista de uma situação de “prognóstico reservado”.
Perguntei-lhe qual era o seu projecto de vida. Respondeu-me que o seu projecto de vida era arranjar os dentes da frente.
Arranjar os dentes, descobri eu depois, era um projecto de vida que o “sistema” considerou válido. Tanto, que até o fez constar do mesmo relatório que o prognosticou reservadamente.
Os papéis dizem que fez vítimas. Mas que a idade lhe permite uma segunda oportunidade. Essa oportunidade ficou dependente do cumprimento das condições que o “sistema”, depois de estudar bem o caso dele, considerou relevantes.
E o “sistema” deu-lhe três tarefas: Aparecer numas reuniões; fazer diligências para arranjar uma actividade; tratar os dentes da frente.
Ele faltou às reuniões todas. Não tentou arranjar outra actividade que não fosse a de continuar a deambular pelas ruas. Mas achou que a única justificação que me devia era o motivo pelo qual não tratou dos dentes.
Encolhi os ombros e mandei-o embora.
A culpa não é dele.
Ele é apenas um dos dentes podres do “sistema”.

4 comentários:

  1. A nossa lógica, com estes, não conta nada. E não há sistema que lhes valha. E não tarda muito, nem a eles, nem a nós.

    ResponderEliminar
  2. Já nem sequer têm medo. Só indiferença. Ás vezes imagino uma cadeia com um larguinho e eles sentados nos bancos à espera que as portas se abram. Do lado de fora.

    ResponderEliminar
  3. Eu lido com eles todos os dias. E a verdade é que aprendo muito, demasiado até, mas apenas coisas que a minha mãe não quereria que eu soubesse. (desculpem a esquizofrenia. estava mais a jeito)

    ResponderEliminar
  4. Mimi, eu só os vejo no dia em que os confio ao sistema e, depois, naqueles casos em que o sistema me atira à cara que não deveria ter confiado em nenhum deles.

    ResponderEliminar