domingo, 19 de setembro de 2010

O Cilício - Mortificação Voluntária Com Vista à Penitência de Pecados

cilício (latim cilicium, -ii, tecido de pêlo!pelo de cabra)
s. m.
1. Cinto áspero ou eriçado que alguns católicos trazem sobre a pele para mortificação e penitência.
2. Fig. Tormento ou mortificação voluntários.
Confrontar: silício
.
In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Tu, a falares da tua vida como se ainda fosse minha. Mortificação voluntária com vista à penitência de pecados. Eu, incapaz de me concentrar na tarefa de fingir que te ouço. Fragmentos de amnésia que se espalham pelo meu cérebro. Nesta dimensão: A breve imagem de uma mulher que se maquilha. Com a firmeza de quem se mascara. A mão a desenrolar delicadamente uma meia preta. Colada à perna. Um copo de vodka que cai no chão. O momento em que a campainha anunciou a tua chegada. Inesperada solidez de cristal. A antecipação do som da porta que se há-de fechar nas tuas costas. À saída. Dois risos infantis a desembrulhar o mesmo presente. O nosso infinito, perpétuo, constante, imutável, insaciável e doentio desejo. A aliança a tingir o meu dedo de negro.
E de repente e sem aviso, ser atingida por estilhaços de memórias. Noutra dimensão: Um aeroporto com sotaque espanhol. O abraço do gelo na consolidação do destroço. A tua inexpressiva tenacidade de assassino. Eu a bater de encontro à porta. Os grandes espelhos do elevador a devolverem-me uma expressão absolutamente vazia. O lugar do teu corpo na cama substituído pelo ódio. A violência da dor.
E depois, a insuportável memória a diluir-se na ária de Puccini.
Novamente a mesma mulher ao espelho. Vestindo-se para ser despida. Mortificação voluntária com vista à penitência de pecados. Os teus olhos pousados nos meus sapatos. Um corpo que se encontra no espaço da tua presença. A ganhar terreno à trela da dona. Uma mentirosa sensação de conforto. A tua voz a embalar a garantia de que os aeroportos não têm sotaque espanhol. De que o olhar vazio que vi no elevador não era meu. O movimento dos teus lábios aos quais tirei o som. As tuas mãos na minha garganta. Finalmente o silêncio. O nosso ground zero. Aquele instante em que a anestesia aplaca a dor.
Fragmentos de amnésias e estilhaços de memórias. Estilhaços de memórias e fragmentos de amnésias.

Descalço uns sapatos prateados que não estou certa que me pertençam. Asseguras-me que não os roubei. Foste tu quem os comprou para mim. Embrulhados em papel vegetal branco. Dentro de uma caixa de veludo preto. Pedes-me que te estenda um pé para que o voltes a calçar. Entrego-te uma perna na obediência da cadela que dá a pata ao dono.
Quando já não estiveres aqui serei capaz de me lembrar que, afinal, sempre me pertenceram. Mas também me lembrarei que já não me servem.

Fragmentos de amnésias e estilhaços de memórias.

3 comentários:

  1. nunca pude te consolar disto. estava demasiado longe. e tarada, a parir.

    ResponderEliminar
  2. Minha querida, suspeito que nunca tenha havido consolo possível.

    ResponderEliminar
  3. para adquirir cilício acesse http://suipoenitentiam.com/

    ResponderEliminar