quarta-feira, 28 de julho de 2010

Sonho de uma noite de verão

Na noite em que fez dezasseis anos o Olimpo pariu-o directamente para os pés dela.
Como sempre, o seu aniversário apanhou-a no verão e à beira mar.
Era uma festa num bar ao ar livre. Era uma mesa descomposta pela miscelânea de adolescentes histéricas, universitários embevecidos pelas adolescentes histéricas e criaturas de outras espécies variadas.
Ele, que já não era nem adolescente nem universitário, dispensou-se de fornecer qualquer explicação para a sua existência e estendeu-lhe um copo da única bebida alcoólica que ela conseguia suportar.
Partilhava com todos os burlões aquele especial brilho nos olhos que os denuncia aos quatro anos de idade. Bastou-lhe abrir a boca para espalhar imediatamente pelo ar uma aura de luz feita de minúsculas estrelas. Como aquelas que tinha cravadas num anel de prata que usava no polegar.
Arrastada numa corrente de magnetismo que a atingiu da maneira bárbara que é exclusiva dos sentimentos até então desconhecidos, ela deslocou o espírito da mesa, que se foi lentamente transformando num pequeno adereço de cenário.
Que ela se fascinasse com ele, era inevitável. Foi provavelmente o mais perto que esteve de um homem de verdade.
Que ele perdesse uma noite de festa no bar da moda para entreter uma criança esquelética e olheirenta que se ria com os ombros e estava fascinada por Soren Kierkegaard, já é um mistério mais difícil de resolver.
Talvez gostasse mesmo dos filósofos.
Durante cinco horas o tempo parou. Daquela estranha forma que pára quando anuncia um acontecimento importante na vida das pessoas.
Depois, ela tinha que voltar para casa, onde a esperava uma cama de adolescente num quarto de cortinas cor-de-rosa. Ele tinha que voltar para Lisboa, onde o esperava um avião com destino a Nova Iorque.
Qualquer coisa relacionada com bolsas de valores e acções e ganhar muito dinheiro demasiado depressa.
No instante em que se separaram, num primeiro e único beijo testemunhado por essa lua de Agosto, ele prometeu-lhe que voltaria no ano seguinte.
Depois de ele partir houve o grande estrondo do silêncio. Três tentativas de telefonemas dos Estados Unidos. Recados escritos no papel pautado da mesa do telefone lá de casa. Dois postais com diferença de um mês. Em ambos, a estátua da liberdade de dois ângulos distintos. Ela escreveu-lhe uma carta apaixonada. E recebeu-a umas semanas depois, fechada a fita-cola, com um carimbo ilegível.
Vieram o Outono, o Inverno e a Primavera. Não houve mais tentativas de telefonemas internacionais. Nem recados em papel pautado com um ponto de interrogação anotado a lápis. Nem a terceira vista da mesma estátua da liberdade.
Para quem procurasse, e ela procurava, ouviam-se rumores. Que teria aparecido morto num bairro de negros. Que teria sido apanhado pela polícia num esquema financeiro. Que teria fugido para a Argentina com uma mulher casada. Que, simplesmente, tinha desaparecido no mundo.
No ano seguinte, os dezassete anos dela encontraram-na a curar uma pneumonia no clima mais seco do Algarve. Não sofreu por não ir ao encontro dele, porque doze meses de existencialismo fizeram-na perceber que ele não apareceria.
Intermitentemente ia-se lembrando dele. Daquela maneira que nos lembramos de um lago onde sabemos que passámos uma tarde em crianças, mas que não saberíamos situar no espaço.
Depois do primeiro ano, passado na lentidão da transformação das estações, seguiram-se mais dezanove anos, daqueles que apenas se dividem em Natal e férias de verão.

E foi então que, vinte anos depois, ao entrar numa sala onde nunca há luzes feitas de milhares de estrelinhas, ela encontrou-o à sua espera.

Tiveram a seguinte conversa:
Ela: Ás perguntas que lhe vão ser feitas sobre a sua identidade e processos pendentes em juízo é obrigado a responder e a responder com verdade sob pena de incorrer em responsabilidade criminal. Sobre a matéria respeitante aos factos não está obrigado a falar. Só fala se quiser, sem que o seu silêncio o possa prejudicar. Devo, no entanto, adverti-lo que se tiver praticado os factos aqui constantes da acusação e os quiser confessar, tal será valorado em seu favor.
Ele: Sim, Meritíssima.
Ela: Conhece a acusação? Sabe do que está a ser acusado?
Ele: Conheço a acusação e não quero prestar declarações.

Ela, para o funcionário: Faça entrar a primeira testemunha.
E depois para ele:
O senhor pode-se sentar.

6 comentários:

  1. Que linda história de desamor. Cada qual com suas razões. Entendo as dele - práticas. Não compreendo o verter das outras.

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  2. Obviously Noodles, you've never been a 16 years old girl.

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  3. Não é bem uma história de desamor. É mais um desencontro existencialista.

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  4. Ando a treinar o estilo noir porque ouvi dizer que está outra vez na moda.

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