quarta-feira, 21 de julho de 2010

Diário de uma toxicodependente


Cuca lembra-se que se acabaram os lexotan. Cuca não pode viver sem lexotan porque leu na bula que se não os tomar terá sintomas de abstinência. E depois de ter lido isso, passou a sofrer de todos os sintomas só por pensar que ficará sem lexotan.
Cuca dirige-se à farmácia, antecipando uma ressaca de falta de droga. Já tem dores de cabeça. Tremem-lhe as mãos. Sente-se nervosa. Tem dúvidas se estará a ter uma visão. E ainda não falhou um comprimido.
Já na farmácia, Cuca lembra-se que mudou de casa. Ninguém a conhece naquela farmácia. E se a conhecessem não poderia ir lá. Não pode ser vista a comprar coisas dessas. Não tem receita médica. Nunca tem, mas na farmácia onde ia vendiam-lhe tudo e mais alguma coisa. Ate morfina, se se lembrasse de pedir. Cuca fica confusa. Tenta disfarçar. Pensa que se comprar muitas coisa estúpidas a falta de receita médica passará despercebida. O farmacêutico será mais simpático. Perceberá que não é uma toxicodependente. Que não quer os comprimidos para se injectar. Que não vai morrer de overdose e amanhã a polícia judiciária não vai aparecer a perguntar pela receita médica.
Cuca faz o seu melhor sorriso dengoso. Penteia-se. Ajeita o colar de pérolas. Pede pastilhas para a garganta. Dois cremes que não vai usar. Uma pasta de dentes com ar cool. E depois, muito baixinho, olhando em redor para todos os lados. Certificando-se de que ninguém ouve.
- E era também uma caixa de Lexotan de 1, 5 mg, se faz favor.
E depois de ver o ar de poucos amigos do farmacêutico, tentando condicionar o inconsciente do homem:
- dos mais fraquinhos.
Farmacêutico implacável:
- Receita médica!
Cuca faz ar de anjo, diz que o médico está de férias, explica que tem que tomar sob pena de morrer de ataque cardíaco, jura que traz a receita noutro dia. Amanhã, pronto.
Farmacêutico assassino:
- Nem pensar! Sem receita médica não lhe vendo isso.
Cuca paga as inutilidades que só adquiriu para tentar subornar o farmacêutico. Sai da farmácia furiosa, frustrada e pobre. Acentuam-se os sintomas da futura ressaca. Já está a sofrer de distúrbio de personalidade. Coça-se. Entra no carro e conduz como uma louca. Lembra-se que há outra farmácia a menos de um quilómetro. Dirige-se para lá em quase marcha de urgência. Atravessa o carro em frente à porta da nova farmácia tapando a saída aos outros utentes. Passa à frente na fila. Repara que tem as mãos nas ancas e um deplorável ar de quem está disposta a partir o estaminé. Derruba um cartaz com uma senhora nua que anuncia um fraudulento produto anti-celulite (cuca é testemunha da fraude).
E, gritando na direcção do balcão, desgrenhada, com ar de doida perigosa.
- Quero uma caixa de lexotan!!
Limpa um fio de baba que lhe escorreu pelo queixo.
- E não tenho receita médica nenhuma!!
Farmacêutico, depois de uma olhada de alto a baixo:
- Está bem. De 1, 5 mg, de 3 mg ou de 6 mg?

8 comentários:

  1. I LUV U.
    Ando nos de 3. Mas parto-os ao meio.

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  2. Toxicodependente, só se for do verbo. Já não bastava o centauro do cabriolet?

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  3. Explica-me a razão de eu ter imaginado esta cena toda contigo naquele vestido com detalhes amarelos que não compraste no Sábado, ajudando-me moralmente a não sair a correr da loja com aquele outro preto que atava nas costas... tu não me digas que o foste lá buscar à tarde...

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  4. Miuda, és uma vidente de mão cheia!!! Veste-te de mãe de santo e vai já a correr montar uma banca.

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  5. EU SABIA! EU SABIA!

    Traidora... o preto ainda lá estava...? Se ainda lá estiver compra que eu faço-te uma transferência... nós, as dependentes, temos que nos auxiliar...

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  6. Noodles@ de facto, o centauro só podia caber num cabriolet.

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  7. Escreves bem. Lê este, a ver se gostas:

    A MINHA VIDA

    "Eu aos quatro anos na Feira Popular, às cavalitas do meu pai, a comer uma nuvem de algodão-doce lá nas alturas e a olhar para a minha mãe, tão pequenina, cá em baixo, a sorrir. Eu aos seis anos, com uma boneca partida, a perguntar à minha mãe se ela morreu e se vai para o céu como os meninos bons. Eu aos nove anos com um vestido novo, vermelho com riscas brancas muito finas, é o meu aniversário, estou feliz e as velas do bolo não se apagam, por muito que eu sopre. Eu aos treze anos dentro da cama, numa manhã de Inverno, a sentir um fio de sangue quente e a voz da minha mãe a dizer-me que é mesmo assim, filha, agora já és uma mulherzinha. Eu aos quinze anos encostada a uma árvore, os lábios do rapaz mais bonito da escola a aproximarem-se da minha boca e eu sem saber o que fazer. Eu aos vinte e dois anos, recém-formada, a entrar pela primeira vez num escritório e a perceber que o emprego pode ser uma prisão. Eu aos vinte e quatro anos à porta da igreja, com o Jorge a meu lado e a família nas escadas e os amigos a lançarem arroz e os pés inchados e a chuva súbita e a Catarina a crescer dentro de mim sem ninguém saber. Eu aos vinte e cinco anos na maternidade, respirando desordenadamente e fazendo força às cegas, o corpo em alvoroço, a luz mortiça nas paredes brancas, a dor maior que o mundo, o grito preso na garganta e depois aquele milagre, a minha filha pousada junto aos meus seios, a respirar comigo. Eu aos trinta anos num automóvel verde, a caminho do Algarve, com a Catarina lá atrás, a brincar com as tranças e a pedir um irmãozinho. Vejo a minha vida num relance, tal e qual como dizem que acontece a quem morre de repente. Não sei nadar, estou fora de pé e na praia continuam todos distraídos."


    SILVA, José Mário. Efeito borboleta e outras histórias. Lisboa : Oficina do Livro, 2008. 140 p. ISBN 978-989-555-374-7.

    A tua escrita remete-me para este livro. Fica a sugestão.

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  8. Este texto é fantástico. Se eu escrevesse assim era uma mulher feliz. Tenho que comprar o livro. Obrigada pela sugestão.

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