domingo, 4 de abril de 2010

Riscos que se correm quando não se está quietinho em Lisboa ou de como a minha cidade natal é um sítio tão lindo e eu gosto tanto...


Saio de casa com a intenção de dar um simples passeio para sacudir a nostalgia que se me colou às pernas como um cão abandonado.
Caminho a pé pelas ruas completamente desertas, procurando com entusiasmo as melhorias que o progresso trouxe à minha cidade natal. Enquanto não consigo encontrar nenhuma, vou andando e andando mais, distraída com elevados pensamentos urbano-arquitectónicos do tipo: porque raio está uma fábrica poluente implantada no centro da cidade e ai que enquanto a maior parte das cidades celebriza o seu centro com uma estátua, uma grande rotunda ou uma fonte luminosa, esta marca-o com um cemitério.
Quando começo a recuperar do pasmo da fealdade de tudo quanto me rodeia, percebo que andei demais, que a dor insuportável que tenho nos pés não é uma manobra de distracção do meu generoso inconsciente para me aliviar o espírito dos incómodos da falta de estética e que com estas sandálias de salto alto tornou-se absolutamente impossível regressar a casa andando.
Nesse instante, com a violência de um choque eléctrico, ocorre-me que nesta terra não há metropolitano (que me conste nem sequer há um mísero túnel), que também não há autocarros e que é tragicamente improvável que um dos dois táxis que aqui existem passem por mim para me resgatar.
Assim, com os pés tolhidos de dor, cabelos despenteados pelo desagradável vento, enquanto inspiro lentamente o ar poluído das fábricas e me deprimo com a visão horrível do cemitério, dou por mim a perguntar-me como é que as pessoas desta terra fazem quando se lhes avaria o carro e querem ir aos sítios.
Absorta neste enigma e incapaz de me aguentar mais tempo em pé, tomo a corajosa decisão de me ir sentar num tugúrio de aspecto muito pouco convidativo, com o absurdo nome de café central, onde finjo que quero um café, apenas para que me deixem ficar lá sentada a engendrar uma forma de fugir dali para fora.
Estou eu a contemplar a chávena cheia de marcas de baton encarnado-prostituta que obviamente não é meu, quando, pelo canto do olho, capto a figura geriátrica da minha professora primária sentada numa mesa com outras cinco múmias, todas a tomar um chazinho.
Como não vejo a senhora há cerca de quinze anos, confio na falta de memória que costuma acompanhar a senilidade e acredito que desde que não me mexa muito consigo passar despercebida.
Trinta segundos depois, no exacto e inesquecível tom que utilizava para me chamar ao quadro, a sádica senhora interpela-me visivelmente plena de felicidade e orgulho. Quando estou prestes a fugir do café, sou detida, não pela boa educação, mas pelos pés destruídos pelas sandálias novas, acabando, assim, enrolada numa mesa cheia de velhas.
Sou miseravelmente atacada por seis professoras primárias de alguém - nelas se incluindo, medo, medo, medo, a que foi professora primária do meu pai - que insistem em dar-me os parabéns pela “bonita vida” que aparentemente escolhi, que juram que sou a pessoa mais elegante que já viram na sua mui longa vida e que fazem questão de me encher a cara de cuspo naftalinoso. Como se não bastasse, tocam-me. Tocam-me com aquele toque de velhinha desesperada que nos toca para ter a certeza que somos reais ou que ainda ali estamos ou para poder ir dizer às noras que nos tocaram. Ou seja, tocam-me propositadamente.
E ali estou eu, numa cidade horrível, com os pulmões carregados de poluição fabril, dentro de um café que só é central para os mortos, sem condições físicas para me arrastar, a ser atacada por um bando de ex professoras senis que agora insistem em enfiar-me um chá a escaldar pela garganta abaixo, quando o meu apuradíssimo instinto de sobrevivência me faz ter a fantástica ideia de me perguntar como é que, sem metro, autocarros e táxis e no pressuposto que as velhas ainda estejam vivas, terão ido ali parar.
É então que a resposta aos meus problemas surge do lado de fora do café, através dos vidros sujíssimos, em forma de um Mercedes dos anos oitenta, estacionado em cima do passeio. Dentro do Mercedes dos anos oitenta está um homem de colete encarnado a condizer com a tinta debotada do carro. Para que não haja dúvidas de que se trata de um chauffer, como me há-de informar já de seguida, no seu francês perfeito, a Dona Adelaide, colocaram-lhe um ridiculamente despropositado chapéu, daqueles que já só se consegue arranjar nos adereços dos filmes europeus de muito má qualidade.
E cinco minutos depois, ainda perseguida pelo bando mumificado que me inveja o vestido e me mexe na fita do cabelo e me espeta as unhas de encontro aos braços, sou empurrada para o interior do Mercedes que lá arranca entre os guinchos das professoras e os roncos do motor.
Quando finalmente me libertam em frente ao portão da casa da minha família, o meu profundo alívio por ter sobrevivido a um passeio pela terra natal é o mais próximo à felicidade do regresso às origens que me hão-de conseguir arrancar nos próximos quarenta anos da minha existência.
Ainda em estado de choque, nem reparo que o chauffeur da dona Adelaide, é, nem mais nem menos, que o mesmo homem que há vinte e cinco anos atrás conduzia a carrinha da escola que nos levava a todos a uma piscina municipal onde nadavam crianças e piolhos.
E o último pensamento poético da minha vidinha sobre o estupor da minha terra natal é o seguinte: Será que o raio da velha foi todos estes anos amante do motorista?!

2 comentários:

  1. cuca: a via sacra teve, pelos vistos, uma reedição na marinha grande... e em vez de uma cruz, finalizou com uma estrelinha da mercedes... nada mau!!

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  2. Fritz, Só tu é que é entendes as minhas analogias!!!!

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