quinta-feira, 22 de abril de 2010

A propósito do circo




Tudo começou um dia, ia eu pelos meus seis anos, já linda, maravilhosa e com grande sentido de estilo, quando chegou um circo à minha cidade natal.
Até então, a minha única referência em matéria circense era mesmo o circo do Monte Carlo, religiosamente exibido na televisão, no dia de Natal.
Não esperei qualidade inferior.
Depois de duas tardes inteiras com uma carrinha azul equipada com um poderoso altifalante a anunciar as maravilhas exóticas do Circo Ribeiro, lá chegou a noite da estreia.
Também a minha referência em matéria de assistência ao circo era a família Grimaldi.
Mais uma vez, não esperei qualidade inferior.
Exigi o meu vestido de veludo azul-escuro, as minhas melhores meias de renda e uma fita prateada no cabelo.
O circo Ribeiro tinha uma tenda remendada e cheia de nódoas, de tamanho inferior a algumas que já tinha visto em exposição nas feiras de campismo de Leiria. Ainda assim, não desconfiei de nada. Sabia que o negócio desta gente é o ilusionismo e naqueles cem metros quadrados poderia caber o tal exótico maravilhoso mundo anunciado pela carrinha azul.
Poderia...
Haviam trinta cadeiras de plástico umas em cima das outras, um homem gordo com um fato coçado a servir de dono do circo, umas colunas de som manhosas, lâmpadas de várias cores e uma minúscula arena onde desfilariam as maravilhas.
A coisa começou miseravelmente mal com uma morena deslavada, mascarada de chinesa, agarrada a um varão que, sei-o hoje, não será muito diferente do das casas de meninas. Foi anunciada como a Ling, vinda directamente da China.
E meia hora depois, logo a seguir à loura vestida de cor-de-rosa que fazia um número com uns caniches pulguentos a guinchar por um banho, a mesma chinesa deslavada apareceu mascarada de russa e foi-me apresentada como a Nikita, grande e poderosa domadora de feras.
Não vou comentar o facto de as feras poderosamente domadas serem dois doberman famintos num estado de espírito partilhado com os caniches. O que foi demais para mim, foi o facto de a russa Nikita não se ter dado ao trabalho nem de apagar o risco dos olhos de quando era chinesa, nem de lavar as purpurinas douradas da cara.
Como nunca gostei de me sentir enganada, expliquei em pânico à minha mãe que estávamos a ser ludibriados por “aquelas pessoas”.
A minha mãe estava claramente perdida para a magia do circo.
- Raio da miúda que é esquisita que se farta e que até do circo diz mal e porque é que nos havia de calhar uma criança assim e põe-se logo a reparar em tudo e nunca mas nunca está contente com nada e os outros todos entusiasmados e esta sempre à espera de mais e melhor e a quem é que ela sai e vê mas é o espectáculo e cala-te.
E eu vi.
Depois da falsa Nikita regressou a loura dos caniches, previsivelmente apresentada como a Lola vinda de Espanha, a servir de assistente a um mágico com ar infeliz.
Não houve pombas sacadas de chapéus, mas haviam uns lenços vermelhos que a loura exibia com ar triunfante.
Dez minutos depois, o mágico tinha despido a capa e estava agarrado a umas argolas de ginasta. Sem a capa, perdeu a nacionalidade argentina e foi rebaptizado como Herinch.
Por fim, tudo acabou com o apresentador gordo no seu natural papel de palhaço pobre.
Não houve cachet para o fato de palhaço rico e os outros membros da família já estavam demasiado ocupados a remendar os trapos para a noite seguinte.
Enquanto o público explodia em palmas eu iniciava um silencioso processo de ódio pelas maravilhas exóticas do circo e respectiva mágica capacidade de me decepcionar.
Com o Circo Ribeiro percebi duas coisas:
Pode-se nascer na santa terrinha com o Mónaco dentro da alma.
Tudo o que não tem a capacidade de nos iludir só nos desilude.

1 comentário:

  1. "Meninos e meninas...!"

    "Cuidado, muito cuidado, seu pai morreu neste número!"

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