
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
domingo, 27 de fevereiro de 2011
Kierkegaard explica-te
Um rapaz apaixona-se por uma princesa e todo o conteúdo da sua vida reside nesse amor, o relacionamento é contudo de tal espécie, que é impossível ser concretizado, é impossível ser traduzido da idealidade para a realidade. Os escravos da miséria, os sapos imersos no pântano da vida, naturalmente que gritariam: um amor destes é uma loucura! Um bom partido, sólido em termos práticos, é a rica viúva do cervejeiro. Deixemo-los em paz a grasnar no pântano. Não é assim que age o cavaleiro da resignação infinita; não desiste do seu amor, nem por toda a glória do mundo. Não é pateta nenhum. Em primeiro lugar, assegura-se de que este amor é realmente o conteúdo da sua vida, e a sua alma é demasiado sã e orgulhosa para se entregar à mínima prodigalidade em estado de embriaguez. Não é cobarde, nem receia que esse amor se insinue por entre os seus mais remotos e recônditos pensamentos, e se enrede em infindáveis enleios por entre todos os ligamentos da sua consciência – viesse o amor a ser infeliz, e nunca chegaria a desembaraçar-se dele. Sente um ditoso prazer em deixar que esse amor lhe ponha todos os nervos a vibrar e, no entanto, a sua alma tem a solenidade da alma de quem esvaziou a taça de veneno e sente como o suco penetra em cada gota de sangue – pois este instante é de vida ou de morte. Quando assim absorveu todo o amor e nele mergulhou, não lhe falta coragem para tentar e arriscar tudo. Examina o conteúdo da vida, reúne os pensamentos apressados que como pombas amestradas obedecem a cada um dos seus gestos, agira sobre eles a sua varinha, e eles lançam-se em todas as direcções. Mas quando ora todos regressam, todos eles como mensageiros da aflição, e lhe explicam que é uma coisa impossível, fica então imóvel, afasta-os, isola-se e empreende então o movimento. (…) Em primeiro lugar, o cavaleiro terá então força para concentrar todo o conteúdo da vida e o significado da realidade num único e só desejo. Falte a um homem esta concentração, este ensimesmamento, fica-lhe logo de início a alma dispersa na multiplicidade e nunca chegará então a fazer o movimento, conduzir-se-á na vida com a inteligência da gente de dinheiro que coloca o seu capital em títulos todos eles diferentes entre si para ganhar num quando perde noutro – em suma, não é assim que é o cavaleiro. Em seguida, o cavaleiro terá força para concentrar o resultado de todas as operações do pensamento num único acto de consciência. Falte-lhe esse ensimesmamento, logo de início fica-lhe a alma dispersa na multiplicidade, e nunca há-de encontrar tempo para fazer o movimento; continuará a tratar das coisas da vida, nunca entrará na eternidade; pois no preciso momento em que estiver mais próximo, ocorrer-lhe-á subitamente que se esqueceu de qualquer coisa e tem que voltar atrás para ir buscá-la. No momento seguinte pensará que é possível, o que também é inteiramente verdade; porém, com semelhantes observações nunca se chegará a fazer o movimento – contando com elas, antes nos afundaremos ainda mais no lamaçal. O cavaleiro faz então o movimento (…)só as naturezas inferiores encontram regras para as suas acções em terceiros, e as premissas para as suas acções fora de si mesmo. (…) Quem isto entender, seja ele homem ou mulher, nunca será enganado, pois apenas as naturezas inferiores imaginam que são enganadas. Nenhuma rapariga que não possua este orgulho entenderá na verdade o que é amar, mas, se o possuir, nem a astúcia, nem o engenho do mundo inteiro poderão enganá-la.
Soren Kierkegaard, in Temor e Tremor, Relógio de Água
Soren Kierkegaard, in Temor e Tremor, Relógio de Água
sábado, 26 de fevereiro de 2011
A primeira mulher

Pandora é a primeira mulher. Foi criada por Atena e Hefesto com a contribuição de todos os outros deuses a quem Zeus ordenou que a habilitassem, cada um, com um dom distinto.
Quando Pandora chegou à terra trazia consigo uma caixa que se destinava a servir de presente de casamento ao seu futuro marido e que continha todos os bens e virtudes do Olimpo. Movida pela curiosidade, e ignorando as instruções recebidas, Pandora decidiu abrir a tampa da caixa. Os bens e virtudes que esta continha, à excepção da talvez mais lenta esperança, escaparam da caixa aberta e, antes que a desastrada Pandora tivesse tempo de voltar a colocar a tampa, regressaram ao Olimpo.
Foi assim que a nós, na terra, nos restaram os males e a esperança.
Pandora, a primeira mulher, é uma das minhas personagens mitológicas preferidas. De criação divina resultou de tal forma humana que a primeira coisa que fez quando saiu do Olimpo foi cometer um erro consequente. E só isso já seria suficiente para explicar toda a minha empatia.
Tem sido acusada de ter deixado escapar o bem, tornando-o num privilégio divino. Mas ao fazê-lo, inadvertidamente, Pandora deu à esperança uma dimensão que jamais lhe pertenceria se não se desse o caso de, na terra, o bem e a virtude serem tão escassos.
Se Pandora é a responsável pela perda do bem é também a responsável pela criação da esperança como o bem restante.
E a esperança, sabemo-lo todos, é a única coisa que nos salva do desespero.
Quando Pandora chegou à terra trazia consigo uma caixa que se destinava a servir de presente de casamento ao seu futuro marido e que continha todos os bens e virtudes do Olimpo. Movida pela curiosidade, e ignorando as instruções recebidas, Pandora decidiu abrir a tampa da caixa. Os bens e virtudes que esta continha, à excepção da talvez mais lenta esperança, escaparam da caixa aberta e, antes que a desastrada Pandora tivesse tempo de voltar a colocar a tampa, regressaram ao Olimpo.
Foi assim que a nós, na terra, nos restaram os males e a esperança.
Pandora, a primeira mulher, é uma das minhas personagens mitológicas preferidas. De criação divina resultou de tal forma humana que a primeira coisa que fez quando saiu do Olimpo foi cometer um erro consequente. E só isso já seria suficiente para explicar toda a minha empatia.
Tem sido acusada de ter deixado escapar o bem, tornando-o num privilégio divino. Mas ao fazê-lo, inadvertidamente, Pandora deu à esperança uma dimensão que jamais lhe pertenceria se não se desse o caso de, na terra, o bem e a virtude serem tão escassos.
Se Pandora é a responsável pela perda do bem é também a responsável pela criação da esperança como o bem restante.
E a esperança, sabemo-lo todos, é a única coisa que nos salva do desespero.
Quadro de Jonh William Waterhouse
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
Grandes Filósofos

Sonja, in, Love and Death (1975)
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
Dar férias à vida

Já quis integrar um circo, isolar-me numa ilha grega, internar-me num hospício, ser actriz de teatro em Paris, jornalista em Nova Iorque, entrar num coma profundo durante um ano, possuir um spot de água de coco no nordeste brasileiro, trabalhar como skiper nas Maldivas…
Este ano, ao cumprir o ritual do exercício imaginário, percebi que se pudesse tirar férias da minha vida aquilo que me apetecia mesmo era aprender a fazer bolos. Grandes. Bem decorados. Deliciosos.
Inicialmente, o resultado do meu exercício de medição de frustração pessoal deixou-me razoavelmente satisfeita.
Mas a ideia de que a excentricidade da imaginária ocupação estival é proporcional ao grau de frustração pode não passar de uma interpretação optimista. A outra possibilidade, bem mais preocupante, é a de a banalidade dos meus sonhos denunciar uma existência quotidiana insuportavelmente excêntrica.
Das despedidas
Preparam-nos para quase tudo. Sabemos antecipadamente que teremos que lidar com eles. Que nos vão testar até ao limite. Que nos vão estender rasteiras inimagináveis. Espetar facas afiadas em omoplatas sempre demasiado expostas. Que se vão queixar uns dos outros e de nós aos outros. Ensinam-nos a formalidade como armadura para todas as guerras. A necessidade de nos fazermos respeitar. A imposição permanente pela tácita ameaça da força que esperamos jamais ter que usar. Sabemos lidar com o gelo, os amuos, as pequenas vinganças, o quase insulto que se adivinha entre dentes, por trás das nossas costas.
Ninguém nos fala do resto. E para o insólito nunca estamos preparados.
Vieram todos, em ordeira fila, de presente de despedida nas mãos, braços abertos e lágrimas nos olhos.
Vieram todos destruir, com o carinho que de tão proibido nem sequer vem nos códigos, a minha frágil réstia de autoridade.
E foi assim, só no último dia, que me deixaram saber que, afinal, há tanto que os tinha ganho.
Ninguém nos fala do resto. E para o insólito nunca estamos preparados.
Vieram todos, em ordeira fila, de presente de despedida nas mãos, braços abertos e lágrimas nos olhos.
Vieram todos destruir, com o carinho que de tão proibido nem sequer vem nos códigos, a minha frágil réstia de autoridade.
E foi assim, só no último dia, que me deixaram saber que, afinal, há tanto que os tinha ganho.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
Lo Eres Todo

Substituí o Puccini pelos boleros e agora não sei o que pensar disso.
Também não sei o que pensar de todo o resto.
Também não sei o que pensar de todo o resto.
Não seria motivo para comunicação ao mundo, não se desse o caso de eu usar de saber sempre o que pensar sobre as coisas.
Mas parece que isso foi antes. Não o antes que se contrapõe ao depois mas o antes que, pelo menos, não é o agora.
Os boleros no carro a ocuparem o lugar do Puccini são um presságio tão assustador como um corvo negro que decide pousar no meu ombro e atar uma pata ao meu cabelo.
Imagino o Puccini sentado num cadeirão de veludo verde gasto a olhar para mim com um ar desiludido.
- boleros, Cuca? Mas… boleros?
E eu a encolher os ombros, desajeitada, sem conseguir articular uma explicação plausível para a traição aos clássicos.
O corvo negro a dar-me uma bicada no pescoço.
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
a ilusão

de andar toda encantada com os aperitivos
quando sabe perfeitamente que o prato principal pode ser de vísceras cruas.
domingo, 20 de fevereiro de 2011
Indignações

sábado, 19 de fevereiro de 2011
Itinerâncias

Com o tempo deixamos de querer que nos contem as histórias deles. Não temos quiosques de eleição. Preferimos estações de serviço. Compramos a mesma marca de perfume para casas diferentes para que possamos fazer de conta que vivemos dentro da mesma. Não ouvimos o ranger da gaveta partida nem substituímos as lâmpadas que deixarão de ser um problema em breve.
Porque em breve haverá sempre outra casa dentro de outra cidade e outras mãos a cozinharem-nos os jantares e outras paisagens a condizer com o café da manhã.
E nesse jogo viciado pela nossa prévia certeza de efemeridade não são apenas as cidades que se tornam temporárias. É a nossa vida que é aprazada. Como uma caixa de ovos com data de validade carimbada. Com o lixo como destino.
Nós, os itinerantes, treinamos incansavelmente a adaptação mas só conseguimos aprender o desapego.
Etiquetas:
Cuca; a oito dias da próxima cidade.
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
Would you dance me?

Dance me through the panic 'til I'm gathered safely in
Lift me like an olive branch and be my homeward dove
Dance me to the end of love
Dance me to the end of love
(...)
Leonard Cohen
Perder-nos nos meandros das racionalizações e das relativizações de sentimentos, do be e do want to be, do be in love e do be in lust é um risco do qual ninguém está a salvo. Nem os auto-conscientes. Sobretudo, esses.
Na qualidade de freak control, obcecada com o sistema de detecção de falhas sistémicas, descobri-me uma técnica infalível que funciona como teste à profundidade da minha própria envolvência:
Dançar.
Por razões que presumivelmente estarão ligadas a uma inata dificuldade em deixar-me conduzir, só consigo dançar decentemente com um homem por quem esteja apaixonada.
Na qualidade de freak control, obcecada com o sistema de detecção de falhas sistémicas, descobri-me uma técnica infalível que funciona como teste à profundidade da minha própria envolvência:
Dançar.
Por razões que presumivelmente estarão ligadas a uma inata dificuldade em deixar-me conduzir, só consigo dançar decentemente com um homem por quem esteja apaixonada.
Como é evidente, desde o momento dessa descoberta acidental, nunca mais corri o risco de dançar com ninguém.
a(m)paro
como se insufla infelicidade numa criança de onze anos? obriga-se a dita a ter aulas de educação visual nas quais faz-se tudo menos desenho livre. e dá-se-lhe um trabalho com caneta de aparo e tinta-da-china. em papel cavalinho.
a destreza que a criança não tem fica retratada nos borrões agravados pelas sofridas tentativas de os corrigir com a borracha azul cáustica. aquela de roda de metal no centro. que não apaga mas arranca camadas do papel. já há choro e ajuda ralada dos pais. que se confrontam com a sua inabilidade para o mecanismo - que possui a subtileza cruel de ter um parafuso rombão para regular a abertura da pena, supostamente transformando-o num instrumento de precisão. e a tinta-da-china, que a esta hora já será qualquer coisa como tinta-d’um-raio. ninguém que não o faça por pelo menos oito horas por dia é capaz de usar com desembaraço o aparo de lata sem sujar meio mundo.
o trabalho é avaliado. e conta para a nota.
a tinta é fraca e também o restante material. que nenhum pai de família em pleno juízo gasta mais que o mínimo em tais inutilidades académicas.
pois que se o filho “dá” para as belas-artes, aos onze anos já “deu” e desenha com qualquer coisa. como o meu avô Pimenta a quem ninguém chamava avô Pimenta mas que a mina avó tratava por Pimenta. para nós, era o Jota. o que espatifou com a ourivesaria por não ter nascido para o comércio e sim para o piano e para a pintura. que não deixaram seguir. que desenhava desde criança. a toda a hora. com qualquer coisa.
mandava-me desenhos feitos com canetas bic-laranja nas cores disponíveis: azul, verde, preto e vermelho. pássaros e outros animais, palhaços, bonecas. pássaros em maior quantidade. remetia-mos em envelopes “via aérea”, debruados de losangos nas cores alternadas azul e vermelha. de papel muito fininho. para a minha querida neta com um xi-coração do Jota. tive alguns a decorar-me o quarto. encaixilhados. muitas vezes acompanhavam encomendas.
bonecas. de trajes das províncias. e eu que não sabia o que eram xi-corações, muito menos províncias... mas adorava a remessa de bonecas. pés colados em rodelas de pinho. e aí, um autocolante. “Beira Alta”. “Douro Litoral”. lugares que só existiam para as bonecas. redoma em plástico. a mais bonita era uma noiva de Viana e o seu vestido preto em veludo, carregada de filigranas de lata dourada. a única que tinha par era a varina. o garotinho vestia um par de calças em padrão xadrês e trazia gorro num tecido que picava muito.
lembro-me de que as bonecas sempre me pareceram muito agasalhadas.
eram péssimos brinquedos pois, como já disse, traziam os pés colados à patela de madeira. e as roupas não se conseguiam despir.
ficaram todas. visitei-as sempre.
a destreza que a criança não tem fica retratada nos borrões agravados pelas sofridas tentativas de os corrigir com a borracha azul cáustica. aquela de roda de metal no centro. que não apaga mas arranca camadas do papel. já há choro e ajuda ralada dos pais. que se confrontam com a sua inabilidade para o mecanismo - que possui a subtileza cruel de ter um parafuso rombão para regular a abertura da pena, supostamente transformando-o num instrumento de precisão. e a tinta-da-china, que a esta hora já será qualquer coisa como tinta-d’um-raio. ninguém que não o faça por pelo menos oito horas por dia é capaz de usar com desembaraço o aparo de lata sem sujar meio mundo.
o trabalho é avaliado. e conta para a nota.
a tinta é fraca e também o restante material. que nenhum pai de família em pleno juízo gasta mais que o mínimo em tais inutilidades académicas.
pois que se o filho “dá” para as belas-artes, aos onze anos já “deu” e desenha com qualquer coisa. como o meu avô Pimenta a quem ninguém chamava avô Pimenta mas que a mina avó tratava por Pimenta. para nós, era o Jota. o que espatifou com a ourivesaria por não ter nascido para o comércio e sim para o piano e para a pintura. que não deixaram seguir. que desenhava desde criança. a toda a hora. com qualquer coisa.
mandava-me desenhos feitos com canetas bic-laranja nas cores disponíveis: azul, verde, preto e vermelho. pássaros e outros animais, palhaços, bonecas. pássaros em maior quantidade. remetia-mos em envelopes “via aérea”, debruados de losangos nas cores alternadas azul e vermelha. de papel muito fininho. para a minha querida neta com um xi-coração do Jota. tive alguns a decorar-me o quarto. encaixilhados. muitas vezes acompanhavam encomendas.

lembro-me de que as bonecas sempre me pareceram muito agasalhadas.

eram péssimos brinquedos pois, como já disse, traziam os pés colados à patela de madeira. e as roupas não se conseguiam despir.
ficaram todas. visitei-as sempre.
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brinquedos que não dão para brincar,
genealogia,
medusa
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
Dos efeitos abrasivos do tempo sobre as superfícies metálicas dos cilícios
Ao telefone:
- podemos jantar hoje?
- não.
- por alguma razão?
- precisamente porque já há vários anos não sobra nenhuma.
- podemos jantar hoje?
- não.
- por alguma razão?
- precisamente porque já há vários anos não sobra nenhuma.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
Love is Evil
Saberão os três leitores deste blogue que Cuca vive em guerra contra o amor.
Coerentemente, não simpatiza com efemérides que dão pretextos às pessoas, até às civilizadas, para oferecer objectos em forma de coração.
Tinha decidido atribuir a este dia a importância que ele merece relegando-o a um desprezivo silêncio. Mas depois lembrei-me das sábias palavras do grande Slajov Zizek, cuja existência só recentemente descobri mas de quem já me tornei seguidora, e decidi partilhá-las na esperança de salvar uma alma.
Coerentemente, não simpatiza com efemérides que dão pretextos às pessoas, até às civilizadas, para oferecer objectos em forma de coração.
Tinha decidido atribuir a este dia a importância que ele merece relegando-o a um desprezivo silêncio. Mas depois lembrei-me das sábias palavras do grande Slajov Zizek, cuja existência só recentemente descobri mas de quem já me tornei seguidora, e decidi partilhá-las na esperança de salvar uma alma.
domingo, 13 de fevereiro de 2011
Não sei como dizer-te
Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.
In Herberto Helder, Excerto do poema «Tríptico»
Poesia Toda
Lisboa, Assírio & Alvim, 1990
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.
In Herberto Helder, Excerto do poema «Tríptico»
Poesia Toda
Lisboa, Assírio & Alvim, 1990
il gattopardo

dei-lhe o Sartre. simplesmente, dei-lhe. e todos os outros que ela pediu.
o medo de que ma descobrissem era tal que passei a assumir, em tudo, tudo diferente.
enquanto ela arranhava o soalho do corredor com os meus slingbacks cor de tabaco eu sofri de cãibras pelos quilómetros em que usei sabrinas de camurça. ela dançou os meus boleros. e eu comprei música que não consigo ouvir até ao fim. tudo fingido. para que não ma descobrissem. ela arranjou-se com a minha maquilhagem e eu deixei-a usar tudo: as sombras escuras e o rímel espesso de que gosto. enquanto isso eu explicava, de cara lavada, alergias a águas muito calcárias. de tudo se foi apossando. os vestidos. até certa roupa interior. o jeito de olhar e aquela forma particular de sorrir. e de chorar. ela foi ficando com tudo. as gargalhadas. eu não me importei pois que era tudo doado de vontade livre. para não saberem que éramos uma só. até ganhei peso. ao ritmo que ela emagreceu. éramos uma e continuamos a ser. e só ela sabe que assim é.
o medo de que ma descobrissem era tal que passei a assumir, em tudo, tudo diferente.
enquanto ela arranhava o soalho do corredor com os meus slingbacks cor de tabaco eu sofri de cãibras pelos quilómetros em que usei sabrinas de camurça. ela dançou os meus boleros. e eu comprei música que não consigo ouvir até ao fim. tudo fingido. para que não ma descobrissem. ela arranjou-se com a minha maquilhagem e eu deixei-a usar tudo: as sombras escuras e o rímel espesso de que gosto. enquanto isso eu explicava, de cara lavada, alergias a águas muito calcárias. de tudo se foi apossando. os vestidos. até certa roupa interior. o jeito de olhar e aquela forma particular de sorrir. e de chorar. ela foi ficando com tudo. as gargalhadas. eu não me importei pois que era tudo doado de vontade livre. para não saberem que éramos uma só. até ganhei peso. ao ritmo que ela emagreceu. éramos uma e continuamos a ser. e só ela sabe que assim é.
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heterónimos ambiciosos,
medusa,
uma certa qualidade de maçãs
conseguiu lembrar-se

ela não é de contar contos.
tenho nas pernas aquele formigueiro do entorpecimento, não sei se de tanto andar se de tanto não andar. e se eu descobrisse que não ando há anos? era como se não fosse nada porque quanto a isso já nada podia fazer.
é como a rinite.
não sou capaz d’escrever e resvalo. que pena, eu bem gostava descrever qualquer coisa de digno. mas eu sou de surrealismos foleiros de bairro.
e depois vem o espelhinho, aquele que não tenho em casa. não tenho mas ele faz-se convidado. muito educado, toca à campainha. é aquela visita de Domingo à tarde que ninguém espera muito menos quer. que não se pode ignorar porque já viu luz nas janelas. que traz presentes e doces para o lanche. doces enjoativos. e uma compota feita por ele. puta que pariu para ele. instala-se e só vai embora depois de me nausear o bastante. ódio de lágrimas.
acho que vou antes aderir ao tumblr.
a verdade é que.
há noites em que ela nem tem noção. do medo.
tenho nas pernas aquele formigueiro do entorpecimento, não sei se de tanto andar se de tanto não andar. e se eu descobrisse que não ando há anos? era como se não fosse nada porque quanto a isso já nada podia fazer.
é como a rinite.
não sou capaz d’escrever e resvalo. que pena, eu bem gostava descrever qualquer coisa de digno. mas eu sou de surrealismos foleiros de bairro.
e depois vem o espelhinho, aquele que não tenho em casa. não tenho mas ele faz-se convidado. muito educado, toca à campainha. é aquela visita de Domingo à tarde que ninguém espera muito menos quer. que não se pode ignorar porque já viu luz nas janelas. que traz presentes e doces para o lanche. doces enjoativos. e uma compota feita por ele. puta que pariu para ele. instala-se e só vai embora depois de me nausear o bastante. ódio de lágrimas.
acho que vou antes aderir ao tumblr.
a verdade é que.
há noites em que ela nem tem noção. do medo.
sábado, 12 de fevereiro de 2011
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