sábado, 15 de julho de 2017

Vão lá ler, vá

Numa simplificação caricatural, dir-se-á que a nova aproximação ao mundo tem uma fixação afectiva em tudo quanto provenha da Apple e tenta libertar-se do mobiliário IKEA que comprou em jovem. Simpatiza naturalmente bom Barack Obama e vê em Steve Jobs um ícone inspirador ou, melhor dizendo, um modelo de sucesso cool que lhe serve de lenitivo para as frustrações e os desaires do quotidiano. Há muitos anos, excitou-se com o Filofax, mas tudo indicia que estabilizou em definitivo no Moleskine. Desconfia se será aceitável eleger Murakami como um «grande escritor» e, às escondidas, chega a ler Nicholas Sparks, por causa dos «sentimentos». Em matéria de transportes, justifica o recurso à Uber com o argumento da falta de educação e de higiene da comunidade taxista. O uso de relógios Swatch desvaneceu-se há muito, por mais que a marca se tente reinventar. Sobressai uma demanda vertiginosa e sôfrega, quase demencial, de novidades. Sempre que algo se torna demasiado vulgar, sofre uma depreciação abrupta, sendo descartado como banal, popular em excesso.

António Araújo, Da Direita à Esquerda, editado por Saída de Emergência 

7 comentários:

  1. Pensava que isto só se passava no mundo da música, mas o fenómeno é mais abrangente. É por toda a vida.

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  2. Mas... isso é a eterna descrição da adolescência utilizando termos contemporâneos.

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  3. A ideia é mais ou menos essa, é. A infantilização da sociedade.

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    1. Mas... a caricatura, aquele agradável pedaço de prosa, resume o zeitgeist num único saco de demência e sofreguidão, do qual ele próprio faz parte, pincelando ao de leve a superfície das coisas.

      o indivíduo confere uma salutar diversidade à sociedade. essa diversidade assusta poderes instituídos. é sempre difícil 'gerir' diversidade.
      é por isso que nos lugares reservados aos génios das ciências sociais que deveriam gerir aqui o burgo se sentam sempre rapazinhos pragmáticos dos partidos.

      e a primeira ideia que nos pretendem impor é que somos todos iguais.
      a segunda ideia destina-se aos descontentes, e é a ideia de que estes, os descontentes é que são diferentes do resto da "manada", aqueles poucos que escapam à rede do desvio padrão.

      e no entanto faz tudo parte do mesmo sistema. separar para vender. vender a felicidade estampada em cores caleidoscópicas.

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  4. No caso, o texto refere-se às supostas elites. Parece-me que essa "salutar diversidade" está em profunda crise. De facto, somos todos muito mais parecidos uns com os outros (especialmente se nos restringirmos ao panorama nacional) do que aquilo que gostamos de pensar. O próprio sistema, com três ou quatro fontes de opinion making, tende a provocar a hegemonia.
    O livro é interessante, sobretudo, pelo retrato social despretensioso das elites lusas. (Não é imparcial, claro. A direita é apresentada com cores muito mais bonitas do que a esquerda)

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  5. (Note-se que eu revejo-me naquela caricatura. Exceção feita ao Sparks, evidentemente)

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